(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

27.9.11

Viver de ouvido…

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Cabeça de tartaruga
- “ Mãããeee!!!”
- “ Diz baby…”
- “ Mãe!! A tartaruga perdeu a cabeça!!”
   Desatei a rir. Fui ver, caso contrário a gritaria não iria parar. Tal como eu esperava, um dos muitos animais lá de casa estava apenas, como qualquer cágado normal (desculpem não ir pelo acordo ortográfico mas trata-se de uma palavra sensível…) com a cabeça enfiada dentro da carapaça, quem sabe a dormir uma merecida soneca.
  Depressa sosseguei o catraio: - “ Amor, o cágado não perdeu a cabeça: ela está enfiada na carapaça, vês? É natural!”
  Enquato o pobre, já refeito do susto, voltou às suas frenéticas e indizíveis ocupações de traquinas graduado, eu fiquei a olhar para o engraçado cágado (ou cágada, não sei…) e a rir de mim para mim, imaginando se, naquelas ocasiões em que perdemos a cabeça, ela também se nos sumisse por entre os ombros…
  Quanto mais visualizava tamanho disparate, mais me ria! Mas até faria algum sentido,  ao perdermos a cabeça, se ela nos desaparecesse para dentro do torso… evitavam-se palavras ofensivas, partilha de stresses e outros disparates que, depois da cabeça mais fria, verificamos terem sido excessivos!  Quem sabe, até, se essa ida da cabeça até ao interior do corpo não nos obrigaria a uma introspecção e a uma análise mais cuidada sobre o verdadeiro valor do motivo da cabeça perdida…  Pensem lá comigo: haverá realmente algo merecedor de nos fazer perder a cabeça? Não, pois não? Também me parece que não…
  Por isso, quanto a vocês não sei, mas eu, da próxima vez que me apetecer ficar de cabeça perdida, vou assegurar-me de que tento fazer como o sábio cágado… enfio a cabeça (pensamento e atitude) dentro do meu interior… e após a dita introspecção sei que vou lembrar-me que o lugar da minha cabeça é, sã e erguida, em cima do pescoço!!!
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    Escrevi esta crónica há uns tempos e, ao relê-la no meio das minhas bem recheadas pastas, achei-a merecedora de vir parar a esta página.
   Gosto de “brincar” com estas ficções e criar fantasias e analogias que me ajudam a encarar a vida com um olhar mais divertido e sensato. Recordo outra crónica, que não vou aqui transcrever, na qual preconizo que quando estamos num confronto, perante as ofensas alheias, as devemos encarar como projéteis incapazes de nos atingir. Nessas ocasiões devemos tentar imaginar-nos como super heróis ( o Neo do Matrix, por exemplo, é ideial para esta visualização) detentores de superiores capacidades que nos permitem passar pelas fases negras da vida com o corpo incólume, a mente imperturbável e  a alma imaculada.
   Usar a fantasia é um mecanismo tremendamente útil e sensato na arte de bem viver. Além de nos devolver a inocência da infância, recorda-nos que para quase tudo há solução, quanto mais não seja a aceitação resignada do que não se pode mudar.
   Por dentro,  podemos transformar-nos naquilo que a nossa imaginação conseguir alcançar: podemos ser um cavalo selvagem se nos tentam limitar a intrínseca liberdade com preconceitos e falsos valores; podemos ser um monge budista na mais profunda meditação se a melhor “arma” for o desarmante silêncio. Podemos ser um guerreiro da idade das trevas ou um simples jacaré se tal imagem nos ajudar a perder o medo e reencontrar a coragem; podemos ser uma princesa (ou príncipe) cuja intrínseca bondade impede o efeito nefasto de alheias invejas e pragas.  Podemos ser uma poderosa onda, um rio ou uma estrela e até podemos viajar pelo espaço “montados” num qualquer cometa, com as perninhas a abanar e o cabelo ao vento, se isso nos inspirar.
   E é no seguimento de todas estas visualizações imaginárias que outra ideia me nasce… Chamemos-lhe “ viver de ouvido”…
    Imaginem a vida como uma grande canção que vamos cantando enquanto vivemos. Tentem ver-se como parte integrante de uma grande orquestra universal na qual cada um toca o que sabe e canta como pode, criando a infinita e intemporal  melodia que soa  no planeta desde os primórdios da humanidade. Parem um pouco e ouçam o vosso contributo: estão fora de tom e de ritmo, a desafinar a imensa melodia? Ou estão a dar um válido contributo para que a grande orquestra soe cristalina e bela?
  E é exactamente aqui que entra o conceito  “viver de ouvido”… acompanhem-me o raciocínio: não são apenas os indivíduos com grande formação musical que se tornam grandes músicos; há excelentes criadores e intérpretes    que não têm qualquer formação na área, daí dizer-se que tocam de ouvido!   Mas vou um pouco mais longe: e se, ao tocarmos e cantarmos a canção da nossa vida, desistíssemos um pouco das pautas e regras e orientássemos  a nossa performance pelo que nos soa realmente bem? Porque ninguém nasce músico e ninguém nasce a saber dominar a arte de bem viver. A canção da vida, tal como a própria vida, merecem de nós mais verdade e improviso, merecem a voz cristalina da vontade audaz do nosso coração.   A sinfonia universal para a qual todos damos um valioso contributo apenas poderá melhorar se seguimos o instinto e começarmos a viver mais…  de ouvido… Será? Parece-me que sim mas, por agora, apenas vos posso sugerir que percam a cabeça como o cágado, a mergulhem no vosso interior, e meditem sobre o assunto!
Ana Dias

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