(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

5.11.13

Eponímia

Eponímia

Entrou no carro. Queixou-se que tinha fome porque eu não lhe tinha mandado o lanche.
- Estás louco, ou quê? Vê a bolsa da frente. Tem que estar aí!-
- Ahhh, pois está...-
Um minuto de silêncio.
- Mãe, o que é "eponímia"?-
Engoli em seco, balbuciei, encostei o carro e consultei o Google, mesmo no telemóvel.
- É quando atribuímos um nome próprio a um comum...- Achei o exemplo das unidades da Física, como volt ou ampère, um pouco incompreensíveis para ele, por isso pensei depressa: - Quando chamamos "Tareco" a todos os gatos ou "Bobby" a todos os cães, por exemplo.-
- Ahhh...-
- Percebeste? -
- Sim, percebi muito bem!-
- Mas onde aprendeste essa palavra, amor?- não estava mesmo a ver onde teria ele desencantado o neologismo.
- Ouvi num programa e perguntei ao professor... Mas tu explicaste melhor.-
Fiquei encantada com a experiência de estar a alargar o meu léxico devido à curiosidade do catraio.
- Mãe? Deves-me cinquenta cêntimos!-
- Desculpa?!?-
- Não te lembras de teres dito que cada palavra que eu ou o Tomás te ensinássemos valia cinquenta cêntimos?-
Rendi-me. Estendi-lhe um euro em adiantamento para a próxima.

Mais tarde vi-o a "namorar" um MP3 bastante humilde.
- Queres um, filhote?-
- Compras, mãe??-
- Claro. Escolhe também uns fones capazes, vá!-
Quis ir depressa para casa, para eu lhe encher o aparelho de música.
Simply Red, Scorpions, Rui Veloso, Marisa, Era, John Mayer, Dionne warwick, Bruce, Coltrane, Beatles, Frank, Jorge Palma, Caetano, Elton John, Andrés Cepeda, Ana Carolina, Bárbara Streisand, Compay, Aerosmith, Amy, Michel Fugain, Jovannotti... Eu ia escolhendo as canções, uma por uma, com um sentido de responsabilidade quase solene! O exultante encantamento de educar uma criança, caminha de mãos dadas com escolhas bem conscientes, mesmo quando tomadas de acordo com o instinto.

Fui levar-lhe o MP3 à cama para que adormecesse com música. Enquanto o aconchegava e lhe dava os últimos mimos do dia, admirei o seu semblante de conquistador infalível. Ocorreu-me então que chamar "Don Juan" a todos os engatatões também é uma eponímia... e confirmei que cada ensinamento filial vale muito, mas muito mais do que apenas cinquenta cêntimos.

Ana Amorim Dias

Berbere do Sul

Berbere do Sul

Amanheci com a chegada dos dois pestinhas à minha cama. Recuperar a mimalhada de uma semana inteira não é fácil. Quando consegui "libertar-me" daquelas duas cabeças, aninhadas no meu peito, levantei-me e escolhi qualquer coisa para vestir.

- Tu pareces uma Berbere do Sul! - disseram-me várias pessoas, durante a viagem.
- Do Sul? Porquê? - queria eu saber.
- Os do norte são mais clarinhos...-
Encarei a coisa como um delicioso elogio. Conheci bastantes e são de uma humildade, generosidade e capacidade de sobrevivência a toda a prova. Além do mais sou do Sul e tenho uma costela bem nómada.

Calças de ganga e botas altas. Uma blusa bem engomada e uma mala em vez da mochila. Ao descer as escadas comecei a rir: como me posso sentir tão cosmopolita, vivendo no meio do campo?
Abandonei o perfil "indiana", de botas trekking e calças de bolsos aos lados. Deixei de lado a atitude exploradora e a pose militar com que enxotava os árabes todos. E voltei a ser a Ana escritora, cosmopolita apesar de morar nos montes, que leva a vida a colecionar estórias e a respirar paradoxos.

Olhei para os meus filhos quando os deixei na escola: terei feito mais dois berberes do Sul? A verdade é que, do Sul ou do Norte, nómada ou sedentário, qualquer que seja o credo, origem e tom de pele, o que importa é a forma como cada um de nós sabe deixar a marca desta passagem por cá...
E agora, depois de ter lido um pouco sobre a palavra "berbere", não posso deixar de sorrir, completamente encantada: é que eles chamam a si próprios "Imazighen", ou seja, "homens livres"!

Ana Amorim Dias

Receção continental

Receção continental

Enquanto esperávamos pelo autocarro de Tarifa para Sevilha, o Ricardo apontou-me o mar com o dedo e fez aquele ar reguila. Vi as horas: sessenta minutos eram mais que suficientes para um banho e duas tapas. Nem foi preciso responder-lhe àquela provocação. Caminhámos a passo largo, trocámo-nos em plena praia e entregámo-nos à fresca e transparente receção com que a Europa nos brindou.

Pensava que tinha levado excesso de bagagem. O pareo e o biquini estavam imaculados. Mas as viagens costumam ter o condão de nos surpreender até ao fim. É claro que temos que deixar que isso aconteça. O privilégio com que se sente um acolhimento continental desta estirpe é quase tão emocionante como perceber, quase no último instante, que afinal sabemos andar por aí com a bagagem correta.

Ana Amorim Dias

O dia das quatro cidades

O dia das quatro cidades

Cheguei a Casablanca por volta do meio dia. Estava avisada de que a cidade não merecia a visita, mas quis comprovar por mim mesma, talvez devido a alguma esperança vinda do romântico peso do nome. Infelizmente a geral opinião estava certa por isso, após uma visita à imponente mesquita, convenci o Ricardo a fugirmos dali depressa.
Apanhámos o comboio no derradeiro segundo e rumámos a Rabat. Assim que saí da estacão senti-me imediatamente bem na cidade. Bonita, minimamente cuidada e, claro, cheia de obras, como Marrocos inteiro. Com as nossas passadas determinadas e velozes (resquícios genéticos de conquistadores antepassados?) em pouco tempo estávamos na Medina, nos fantásticos cemitérios sobranceiros ao mar e no Kasbah dos Oudaias, uma preciosidade a não perder. Uns petisquitos de rua, um barzinho a dar para o mar, os jardins andaluzes, e então:
- Ricardo?-
- Hum?-
- Já estou farta de Rabat, vamos para Meknés? -
- Mas tu hoje estás armada em heroína de Júlio Verne,
é?!?-
- Vá lá! Se corrermos ainda apanhamos o comboio das seis e doze!-
- Impossível! Vamos apanhar um táxi!-
- Com este trânsito? De taxi é que era impossível! Vamos!-

E mais uma vez foi à justa. Chegámos à linha ao mesmo tempo que o trem. E, enquanto a noite escurecia e eu viajava para Este, lembrei-me do que diria o meu pai...

- Mas o que é que tu consegues conhecer a esse ritmo alucinante? Não é assim que se viaja, filha! Há que saborear!-
E depois lembrei-me do seu pai, que nunca conheci, mas que também gostava de estar sempre de partida e cuja frase mais célebre era o "vamos embora?". Fiquei a matutar... Talvez haja algo mais profundo em cada um de nós que nos ritma o compasso dos dias, das viagens e da vida. Talvez o ritmo alucinante potencie, por si só, uma intensidade que compensa esta espécie de bulimia incontrolável. Sim, deve ser isso.

- Não percebes, pai? Só estou a ir ao meu ritmo. Talvez um dia volte aos sítios que mais gostei ... e me saiba bem abrandar.

Ana Amorim Dias

Do lado do sol

Do lado do sol

O autocarro das oito e meia, para Essaouira, estava cheio. O próximo seria três horas mais tarde. Ainda tentei a minha sorte, esperando que alguém se atrasasse e me deixasse dois lugares vagos, mas foi em vão.
Revi as opções: esperar tantas horas imóvel por algo que posso visitar mais tarde? Ou mudar completamente os planos, ir à estacão de comboios (mesmo ao lado) e apanhar o primeiro trem que saísse, fosse ele para onde fosse?...


- Mas, e Essaouira? Não devíamos ter esperado as três horas? É mais bonito que Casablanca... - começou o Ricardo, um pouco desconsolado, ao entrarmos para o combóio.
- Essaouira não sai do sítio e eu odeio os "devíamos" e os "e ses", por isso vamos acabar já com a conversa!-
- Bruta!-
E tem razão, não deve ser fácil aturar-me... Especialmente depois do que aconteceu a seguir!

Sentámo-nos do lado esquerdo, no sentido da marcha, e o sol batia com força.
- Vamos mudar para o outro lado, que deste bate o sol!- Disse ele.
- Teríamos que mudar de carruagem porque nesta já estão cheios e, além do mais, o sol vai bater é do outro lado!-
- Não! Vai bater é deste!-
- Caramba, Ricardo! Nem pareces um homem do campo! Vamos de Sul para Norte e é de manhã! Temos de ir do lado oeste, que é este!!-
Fez uma espécie de birra e eu resolvi aceder, sabendo de antemão o que se iria passar depois: saímos daquela carruagem, entramos noutra mais à frente e sentámo-nos do lado que ele cismou querer. Resultado: mal começou a viagem ficámos com o sol de "chapa"! Como boa esposa que sou, e perante aquela carinha embirrada, troquei de lugar com ele porque suporto melhor o sol. Sim! Vou ao sol e de costas! Mas o meu sorriso trocista e o gozo com que lhe vou repetindo "que bem que se está à sombra..." compensam absolutamente tudo!

Moral das histórias? Ter que tomar decisões de repente é fácil. Tomá-las acertadamente talvez já não seja assim tanto. Mas respeitando o nosso ritmo e maneira de ser, e usando um pouco a cabeça, dá-me ideia que ficamos com muito pouco a lamentar.

Ana Amorim Dias

Pepitas de ouro no deserto

Pepitas de ouro no deserto

- Olha! Pepitas de ouro no chão!-
- Louca...-
- A sério! Repara como brilham...-
- Ana: aquilo é bosta de camelos, já em decomposição. Brilha por causa da incidência do sol.-
Comecei a rir, em cima do meu camelo a quem baptizei de "Zé" (o de trás ficou o "bambo") e não resisti a responder-lhe:
- Mas Ricardo, enquanto as pessoas normais, no deserto, vêem miragens de água, eu vejo de pepitas de ouro, o que é que queres?-
E depois calei-me. Fiquei a ouvir o absoluto silêncio apenas entrecortado pelo roçar da mochila nas costas e pelos esporádicos arrotos do "Zé" e do "Bambo".
A visão das dunas, com os seus laminados recortes dourados pelo sol poente, trouxeram-me a imaginária melodia das bandas sonoras de épicos filmes e consegui então entregar-me inteira ao momento.

São sete da noite no deserto. A tagine já cheira. Escrevo no acampamento, sentada sobre almofadas no chão. Enquanto as estrelas se vão acendendo, às centenas lá no céu, recordo a gigantesca duna que subi, para ver a vista, assim que me desmontei do camelo. Duzentos e tal metros à pressa, porque o sol estava a tombar. Cheguei ao topo estafada, admirei a paisagem e tirei fotografias, mas foi só quando me apercebi quão depressa a noite aqui cai, que me empolguei no regresso. Só que o raio da colossal duna tinha uma tal inclinação que, a ser no ski, seria uma pista vermelha. E então decidi fazer como faço lá na neve: descer a encosta aos "ss" para atenuar o efeito vertiginoso da inclinação. Cheguei cá a baixo mesmo à justa, a já não ver quase nada. E agora, antes de me entregar às estrelas, só me resta concluir que todas as experiências acumuladas (qual fortuna de pepitas de ouro), nos vêm a servir mais tarde sem que estejamos à espera.
E depois de hoje... Bem, depois de hoje, saberei para todo o sempre distinguir bosta de camelo de pepitas de reluzente ouro.

Ana Dias

No meio do Alto Atlas

No meio do Alto Atlas

- És mesmo burra! Em vez de estares em casa sossegada, vens para estes fins de mundo repletos de perigos!-
- Já te calavas!- respondi a mim mesma enquanto Hassan, o guia berbere-Fitipaldi, punha a música "marrocaine" mais alta e dava gás à viagem.
- Afinal porque é que aqui estás, no meio do Alto Atlas, a ir sabe-se lá para onde em busca não sei do quê? Vá, responde!-
- Só podes estar a gozar!!-
- Claro que estou, parva!- conclui de mim para mim, com uma gargalhada em surdina, para rematar a questão.

Saímos com quatro horas de atraso devido a uma greve qualquer. O guia avisou que seria perigoso tentar furá-la pois podíamos ser vítimas de ataques. Comecei logo a "espingardar" com aquele tipo de folclore, mas não havia nada a fazer. O resultado foi que, depois de visitar vários locais (entre os quais o encantador Ait Ben Haddou onde filmes como o Indiana Jones, Gladiador ou o Príncipe da Pérsia foram filmados) chegámos a Ouarzazate ao fim do dia e, não bastasse o pouco tempo ali passado, ainda fizemos todo o caminho até às Gargantas do Dadès de noite. Como não vou voltar pelo mesmo percurso, perdi a oportunidade de ver a paisagem e isso, se inicialmente me irritou, depressa teve o condão de me fazer ver algo com toda a clareza. Percebi que quando viajamos de noite não podemos apreciar convenientemente a paisagem! Frase tão óbvia que até é apatetada, não? Então deixem-me alterar ligeiramente a fórmula desta equação...
Imaginem que a escuridão são os nossos medos, pessimismos, revoltas, stresses, recalcamentos, raivas e afins, e imaginem que a paisagem são os dias que se sucedem uns aos outros sem descanso. Na escuridão de toda essa porcaria, que permitimos invadir-nos, deixamos de ver a vida tal como ela é; tal como podemos fazer com que ela seja: uma paisagem encantadora; um cenário surpreendente!

Atravessei o Alto Atlas de dia, deslumbrada com a paisagem, com a música e com o embalo dançante das curvas sobre as vertiginosas ravinas. A última etapa do dia, apesar de feita à noite, aconteceu com a habitual claridade interior que me sabe iluminar o caminho...
- És uma caçadora de histórias!- disse a mim mesma.
- Hã?-
- Sim: perguntavas ainda há pouco porque é que estás aqui, a ir sabe-se lá para onde, em busca não se sabe de quê... O objetivo é bem claro!
- Escrever!! - disse eu, comigo, em coro.

Ana Amorim Dias

Concessões em Marraquesh

Concessões em Marraquesh

Entrar em Marraquesh ao som de blues pode parecer um completo disparate, mas garanto que a culpa desta vez não foi minha; era o que estava a passar no transfer para o hotel.
Cheguei à hora mais perfeita a que se pode chegar a qualquer que seja o lugar: o almoço esperava por mim; só me restava descobrir onde. Um sumo aqui, um petisco ali, uma prova mais adiante...e deliciei-me sem receios nos locais que os nativos frequentam.
Ao fim de pouco tempo passado nas praças, ruelas e souks, já não conseguia aturar as constantes investidas.
- "Vien ici". Española? Brasilêra? Compra siñora!-
Estes tipos são mestrados na arte da persuasão. Mas eu já tinha decidido não me render à qualidade de "vítima", agindo sim como discípula, por isso adotei uma postura de moura (o aspeto ajuda, claro) e deixei de passar cartão a quem quer que fosse. Ao perceberem que caminhava como uma autista, depressa desistiam do massacre e eu podia, então em paz, observar e aprender.
Por outro lado, e para uma cidade que se quer embeber de uma atmosfera mais europeia e cosmopolita (porquê, porquê?!?), falharam por completo um detalhe: por onde pára a cerveja?!? Será mais importante manterem-se genuínos e fieis aos seus princípios, ou ajustarem-se um pouco às necessidades de um setor que lhes traz tanto dinheiro?
Nunca pensei que, entre cobras, macacos, cheiros intensos e milhares de sons diferentes, conseguiria ter divagações tão profundas causadas pelo desejo ardente de uma cerveja gelada (nem costumo ter estes "ataques" de sede mas asseguro-vos que o ambiente pede mesmo!). Devem ou não, estes mouros, render-se e permitir que os turistas bebam uns canecos? Mais: devemos manter-nos genuínos ou fazer concessões a quem nos ajuda?

Eram umas oito da noite quando encontrei, no terraço de um prédio, um bar deslumbrante. Luzes baixas sobre cores quentes, decoração luxuriante e uns sons de lounge oriental a dar para o new age que me arrepiaram por dentro. Está bem que os preços me fizeram suspeitar que estava em Paris...mas havia cerveja e eu estava feliz! E foi ali, enquanto apreciava a magia do tempo a parar, que entendi que as concessões não roubam a genuinidade; pelo contrário, normalmente até lhe trazem um redobrado sentido.

Ana Amorim Dias

Uma mochila a dois terços

Uma mochila a dois terços

A cada nova partida vou tentando levar menos bagagem: aquilo que é realmente importante cabe dentro de nós e em dois terços de uma pequena mochila. Uma das coisas, contudo, que convém nunca deixar para trás é a expetativa feliz daquilo que se conseguirá trazer no regresso.
Não são malas cheias ou vazias que determinam o sucesso das viagens. O que faz delas mais um marco é o deslumbrado encantamento com que conseguimos enriquecer por dentro.

Ana Amorim Dias