(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

29.3.14

Mais que só casca

Mais que só casca

Vínhamos tão entusiasmados no nosso debate que, quando o miúdo entrou no carro, nem lhe dissemos nada.
- O jantar com os meus amigos foi muito bom, obrigada por perguntarem!
Continuámos a conversar, cada vez mais acesos, ignorando tudo o resto.
- Se espremeres uma laranja, não há-de ser só casca!
- Ouviste isso nalgum sítio, ou inventaste tu agora?
- Obrigada por me ignorarem! - tornou o Tomás.
O João, esse, já dormia, rendido ao cansaço do dia.
Apressei-me a anotar a frase no telefone. Entendi o sentido com que a utilizou: há algum sumo, por pouco que seja, em todas as pessoas, em todas as situações.

Acordei demasiado cedo. Rebolei na cama com as laranjas no pensamento. "Laranjas, laranjas, casca, sumo... Hum, vou entrar em campo e ver o que as laranjeiras me dizem!"
Chapéu, óculos, saco para as laranjas, e lá fui eu. Mas a vida de uma destemida escritora campestre é mais dura do que se imagina: chegada ao pomar, percebi que havia umas 6 espécies de citrinos diferentes. "Hohow, trouble! E agora como é que eu sei quais é que são as mais doces e sumarentas?" Olhei à volta, cocei o queixo, tirei umas fotografias com cara de enjoada (a incompreensão deixa-me assim) e decidi apanhá-las segundo a sua "pinta".
Fui às mais cheinhas e de cor mais escura. "Olha, será que é pelo instinto da escolha das laranjas que temos também tendência a achar mais atraentes as pessoas mais bronzeadas? E será que as pessoas mais cheinhas são as que têm mais sumo??"

Apanhei algumas, de três árvores diferentes e logo depois de me encontrar com o porco e com as cabras, apareceu o Ricardo, que me explicou a teoria do umbigo. - Na parte de trás, as laranjas têm este umbigo, vês?
- Se é na parte de trás, é o rabo!
Ignorou-me e prosseguiu.
- Quando o umbigo está aberto, assim como esta, a laranja está boa. Quando são estas assim, só com um pontinho, significa que são de outra espécie e que só estão doces no verão.
Não lhe disse nada mas quase me escangalhei a rir, ao compará-lo com o engenheiro Sousa Veloso, que apresentava o TV Rural.
O certo é que quem sabe, sabe. E o Ricardo sabe não só quando as laranjas estão boas como que todas, sem exceção, são sempre mais que só casca.

Ana Amorim Dias

Crepes para a alma

Crepes para a alma

- Mãe, na sexta feira fazes crepes para a minha turma toda?
- Desculpa? Repete lá!?!
- Vamos fazer uma festa, por causa da centésima aula de português... E eu disse que tu podias fazer crepes para todos...
"Este gaiato leva-me sempre à certa. Bem, e é a centésima aula da melhor disciplina de todas."
- Está bem, Tomás. Mas pedes aos teus colegas para me mandarem bilhetinhos com temas para as minhas crónicas!
- Mamãhã... Tu não vai fazer o teu filho lindo passar vergonhas, pois não?

Se há meia dúzia de anos me dissessem que um dia eu me levantaria mais cedo e iria fazer crepes para toda a turma de um dos meus filhos, eu teria dado uma daquelas sonoras gargalhadas de boca aberta que envergonham toda a gente. Mas a vida é isto: o constante melhoramento das nossas performances.

Costumam dizer-me que sou muito simpática. Sorrio e respondo que é por ser escritora. Quer dizer, sempre fui bastante expansiva e dada a simpatias, mas antes de me saber escritora era diferente. Agora tenho muito mais responsabilidades: como poderia ser coerente com a positiva forma de encarar a vida, que todos os dias proclamo do alto do púlpito dos meus escritos, se fosse uma pessoa apagada e amarga? No fundo trata-se de uma pescadinha de rabo na boca: sou mais feliz e vivo mais para que as crónicas sejam mais felizes e vivas e elas são assim porque é assim que eu vivo. De verdade, sem disfarces nem fingimentos.

Enquanto hoje fazia as dezenas de crepes, conclui que encaro a escrita com um encanto maternal. Sinto-vos a todos um pouco como meus filhos e talvez seja daí que nasce todo este amor. Ora uma uma mãe nunca está pronta, nunca é um produto acabado. Estamos sempre a aprender novas formas de amar, educar, encantar e servir de exemplo. E é esta odisseia de melhoramento constante que me apaixona os dias e me faz servir-vos, feliz, estes crepes para a alma.

Ana Amorim Dias

A professora do lobo

A professora do lobo

Mandei-lhe uma mensagem, a querer saber como está. Depois dos serviços fúnebres, em honra do pai, calculei que não estivesse nada bem.
"Estou a perceber que além de chefe da matilha, também sou órfão...e é muito duro."

Fui à net: "Para os nativos americanos, o lobo é um símbolo espiritual poderoso. Eles são considerados professores "descobridores de trilhas". Os índios respeitavam a bravura do lobo como caçador, sua determinação, e a maneira como ele se movia silenciosamente pela paisagem. O lobo é o grande professor. O lobo é o sábio que, após muitos invernos no caminho sagrado e buscando os caminhos da sabedoria, retorna para compartilhar seu conhecimento com a tribo."

Este Lobo tem sido, para mim, muito mais que um professor. É um mentor que se tornou presente nos meus escritos, nas minhas atitudes e na maneira mais corajosa como agora vejo a vida e os seus constantes desafios.
"O medo é um luxo que não nos podemos permitir.", diz ele, muitas vezes.
"E a sensação de orfandade é uma ofensa perante quem nos deu a vida.", contraponho-lhe eu hoje. "Os teus pais, onde quer que estejam, querem o teu sorriso orgulhoso e não as tuas lágrimas, percebes?"

Não há fórmulas certas para encarar a morte. Não há receitas infalíveis para minorar o sofrimento, nem pílulas milagrosas que nos arranquem a dor da saudade. Mas há o pensamento correto: aquele que nos recorda o privilégio do tempo partilhado com quem já partiu. Há o sentimento eficaz: aquele que nos permite entender que o legado fica para sempre, que a sua vida não foi em vão, e que, enquanto os recordarmos e honrarmos, a sua existência se perpetua e continua a marcar o mundo.

É isto que terei que fazer o Eric entender: pode ser agora o chefe máximo da sua matilha, mas jamais será órfão. Porque quem foi amado pelos seus pais permanece para sempre com o mais poderoso dos escudos: o do amor parental. Este não morre nunca.

Sim, hoje serei eu a professora do Lobo.

Ana Amorim Dias

Ter pulso

Ter pulso

O João chegou à minha cama gelado. Aqueci-o com o meu corpo.
- Então, amor? Dormiu destapado?
Com os olhos fechados e um sorriso nos lábios, respondeu-me:
- Mãe, hoje sonhei com motas!
- Muito bem, meu amor!
Passei o resto do dia a lembrar-me do ternurento episódio e da minha entusiasta resposta. Há uns tempos, na mesma situação, eu teria começado a transpirar de preocupação, perante a perspetiva de vir a ter filhos motards. Agora penso apenas que terei de lhes dar melhores e mais experimentados conselhos, e que teremos que ir escolher bons capacetes, casacos com proteções, luvas e joelheiras.

Ocorreu-me também que talvez a expressão "ter pulso" tenha nascido sobre duas rodas.
"Oh Ana, sempre foste uma pessoa com pulso, porque é que não o és também a dar gás às motas?", perguntei-me assim que a analogia me apanhou de surpresa. Mas pus-me a pensar um pouco e concluí que ter pulso nem sempre é ser intransigente e levar tudo à frente para cumprir as nossas vontades. Ter pulso não é andar constantemente "a abrir", é saber sim moderar a velocidade das nossas atitudes por forma a respeitar tanto o nosso bem estar como o alheio.
Podemos ter pulso em relação a tudo e todos e devemos de facto fazer uso dessa capacidade para nos conduzirmos pela vida. O que convém não esquecer é que o mais amplo sentido de se saber "ter pulso", consiste tão somente em perceber o montante exato de pulso a usar em cada situação concreta.

Ana Amorim Dias

O gato maléfico

O gato maléfico

- Sai da minha frente, gato maléfico!
Está bem que o acordar do Tomás não é dos mais fáceis mas, ontem de manhã, estranhei-lhe a falta de doçura em relação ao gato pois normalmente mima-o sem estribeiras.
- Então, amor? Quem trata assim o gato sou eu, não és tu!
- Mas mãe, o Laranjinha foi acordar-me às cinco da manhã, a pedir para ir à rua...outra vez!
- Quando trouxeste o gato para casa, não prometeste que ficava aos teus cuidados?
- Sim.- Ainda ensonado, foi-se embora com a tigela dos cereais.- Vá, anda cá, gato maléfico.

O gato no fundo é muito esperto. Primeiro porque já percebeu que só os sismos é que me acordam (e têm que ser dos fortes), e segundo porque sabe que se me conseguisse acordar se ia meter em sarilhos dos sérios.
Quanto ao Tomás, não faço ideia de como vai resolver o seu problema com o maléfico Laranjinha, mas uma coisa é certa: é quando os seres que amamos se tornam ligeiramente maléficos que o nosso amor por eles é realmente posto à prova.

Ana Amorim Dias

O som do amor

O som do amor

Entrei em casa e pousei a mochila. Ninguém. Resolvi ligar.
- Então? Onde andam? Já cheguei!
Fiquei a saber que o jogo de basquete do Tom se tinha atrasado.
Olhei à minha volta. Em pouco mais de vinte e quatro horas os "meus" três homens conseguiram deixar as camas todas por fazer, a cozinha inundada no caos, a sala virada do avesso e uma das casas de banho transformada em cenário de guerra.
O gato roçou-se nas minhas pernas com uma miadela queixosa. Alimentei-o, tomei um banho e, durante a hora seguinte, transformei aquele pardieiro num lar de harmonia. Depois fiz o jantar.

Quando estou fora mais tempo, a preciosa colaboração da Guazinha (nome com que o Tomás, em bebé, batizou a avó paterna) faz com que a ordem feminina continue a reinar mas, desta vez, como era tão curta a minha ausência, deixámos os três entregues ao seu feliz caos.

Quando entraram, ruidosos, em casa, por volta das oito da noite, entregaram-me uma prenda. Pu-la logo ao pescoço.
- É o símbolo do "Om"... - explicou o Ricardo com uma humildade amorosa repleta de significado.
Nessa manhã eu ligara a dar-lhe os parabéns.
- Parabéns? Porquê?
- Oh tontinho! Faz hoje vinte e quatro anos que começámos a namorar, por volta das oito da noite.
- Ahhhhh!! Parabéns!!

O "Om" representa, no hinduísmo, o som do Universo. É o primeiro dos mantras e a ponte para atingir todos os outros. Tenho, pendurado ao pescoço, o símbolo do som do Universo que, para mim, independentemente do caos ou da ordem, se resume simplesmente ao som sublime do amor.

Ana Amorim Dias

O brinde

- Sabem porque é que eu adoro estar com vocês?
E nem esperou pela resposta.
- Porque consigo ser mesmo eu. Verdadeiramente eu.

Não estavamos todas juntas, debaixo do mesmo teto, há uns dezoito anos, desde o tempo em que partilhavamos residência na época da faculdade.
Não é que tenhamos estado todos estes anos ausentes da vida umas das outras, nada disso. Mas assim, com um tempo só para nós, nunca tinha acontecido.

Suspendi a minha atenção à conversa e tentei reunir mentalmente o máximo de situações possíveis que me pudessem revelar se normalmente eu sou sempre eu.
Tenho ideia que, se é verdade que somos, na essência, sempre a mesma pessoa, também não é mentira que interagimos de maneiras diferentes com as diferentes pessoas com quem lidamos em todas as "personagens" que encarnamos.
Até que ponto somos sempre verdadeiramente nós mesmos? Onde se situa a fronteira entre a fidelidade constante à nossa essência mais intrínseca e a cedência a quaisquer outros valores?

Olhei para estas três mulheres que há tantos anos fazem consistentemente parte do meu universo. Sorri orgulhosa: quanto ao facto de eu ser verdadeiramente eu, esteja com quem estiver, isso é inegável e imutável. Mas percebi naquele momento que o que me dá mesmo um prazer indescritível é saber fazer com que os outros sejam muito fieis a si próprios sempre que estão ao meu lado.

Ana Amorim Dias

Oitos

Oitos

Pus-me a ver fotografias de mulheres motard na internet.
- O que estás a ver, mãe?
- Colegas, João.
- Ah. Mas algumas estão bikini porquê?
- Essas são as falsas, não são verdadeiras bikers, só estão aí para tornar as motas mais apelativas aos olhos dos homens.
Fomos passando as fotos e dizendo "esta é verdadeira" ou "esta é falsa". Depois mudámos para o YouTube e pusemo-nos a ver acrobacias de mota.
- Tu não vais fazer isto, está bem, mãe?
Comecei a rir ao lembrar-me dos oitos mal amanhados da aula de mota dessa manhã.
- Está descansado, meu anjo, a mãe nunca vai fazer isto.

Não tenho mesmo a mínima intenção de andar de mota em pé, nem virada ao contrário a fazer cavalinhos, nem sequer sentada no depósito da gasolina com as pernas sobre o guiador. De momento tudo o que me desafia são os oitos perfeitinhos, com o rabiosque bem assente no selim da mota.
Já percebi como se faz, tanto que já fiz alguns. Mas o domínio do equilíbrio e do jogo de embraiagem não são assim tão óbvios. É preciso respirar fundo e olhar não para o passeio mas para o ponto para onde queremos dirigir a viatura. É preciso confiar nos três dedos da mão esquerda e adiar ao máximo a cedência à tentação de colocar algum pé no chão. É preciso vontade e concentração. Depois consegue-se.
Acredito cegamente que, num futuro não longínquo, os oitos não guardarão perante mim qualquer mistério. Mas, enquanto os domino e não domino, encanta-me a sensação de desafio. Sei que, comparada com os magos das duas rodas, posso parecer uma patética naba. Mas também sei que as acrobacias com que diariamente brindo as palavras são o produto de algum jeito e, sobretudo, de muita prática e foco. O encanto disto tudo? É saber que, não desistindo, não há metas impossíveis.

Ana Amorim Dias

Festivais

Ponderei ser irónica em relação a esta questão, mas até a ironia merece ser melhor usada. Terei que ser apenas, contra o que é meu costume, cáustica e arrasadora.

Pimba! Quando se pensava que o país já tinha batido no fundo, vem a canção (ou deverei dizer a ganidela?) vencedora do festival e traz-nos uma nova dimensão ao conceito de sofrimento nacional. Sei que a minha indignação talvez seja algo exagerada, tendo em conta a importância relativa das coisas mas, mesmo assim, só me apetece dizer palavrões.
Aquilo está tudo mal, sem ponta por onde se pegue. Nem o pimba de garagem consegue ser tão mau quanto este.
"Quero ser tua", grunhido por alguém de nome Suzy, vestida daquela maneira e com aqueles movimentos tão originais é, no mínimo dos mínimos, uma profanação ao sentido estético de um país que, embora em maus lençóis, continua a ter valores artísticos elevados. Qualquer mulher, por mais "cabeça no ar" que seja, deve saber que conjugar uma mini-saia a dar pelos pêlos púbicos, com um decote de meio metro quadrado, é a receita perfeita para lhe perguntarem "quanto é?", sobretudo se andar berrar "quero ser tua" para um objeto de fálicas formas.
E a letra? Rimar "brilhar" com "mar" e "beijar" com "amar", tudo em carreirinha, é tão básico que nem putos de cinco anos apostariam nisso. Mas a parte em que "paixão" vem rimar com "coração"? Caramba, genial!! Tivessem acrescentado também "amor" a rimar com "flor" e completava-se uma obra a ser recordada nos séculos vindouros!(Desculpa lá ironia, acabei por ter que te usar.)
Já os "uauauéuaué" e os "hohooooho", repetidos com insistência, devem ser para a malta não reparar nas desafinações da "artista" em cada subida de tom, e para distrair as atenções do facto de a letra não caber na patética melodia que de melódica nada tem.

Há muitas coisas que me entristecem neste maravilhoso país. Não havia era necessidade de se denegrir lá por fora toda a excelente arte de que somos capazes. Valha-nos o facto de já ninguém ligar a estes "festivais".

Ana Amorim Dias

Excessos

Excessos

Eu estava recostada no sofá da sala de estudo à espera deles.
- Tomás, João! Não vos volto a chamar! - como se o meu tom ameaçador os assustasse muito.
O João lá apareceu, a aparentar tanta vontade como a de quem entra no consultório do dentista. Lá abriu os livros e começou a trabalhar. O Tomás é que nem vê-lo.
- João? Que cheiro é este?
- Parece perfume, mãe.
- Muiiito perfume! - comentei horrorizada.
E o Tomás apareceu, precedido por uma nuvem de bom cheiro de tal forma intensa que, à sua chegada, o ar se tornou irrespirável.
- Credo Tomás! Vai tomar banho!!
- Eu já tomei, mãe.
- Filho, essa quantidade de perfume é insuportável. Daqui a três minutos estamos todos cheios de dor de cabeça!
- Ai é??
Curiosamente o Joãozinho tinha-se alheado da conversa, demitindo-se de opinar com as suas valiosíssimas pérolas.
- Por favor Tom! Ouve-me bem e nunca mais te esqueças disto: nunca, jamais, em tempo algum utilizes mais do que duas borrifadelas de perfume.
- Ok, mãe.

Dei as instruções ao miúdo e, embora não lhe tenha explicado as razões do meu conselho, ele nunca mais se voltou a perfumar tão profusamente. Sinto, no entanto, que fiquei a dever a explicação de que nada de bom vem dos excessos e que há muito mais encanto no misterioso que no óbvio.
- Por muito bom que seja o cheiro, se for demasiado intenso afasta as pessoas. - explicar-lhe-ei esta noite. - Mas se o cheirinho for bom e discreto, vais atrair as miúdas para bem pertinho de ti, percebes?

- Mãe!!! Tu não devias ter escrito isto!- até parece que já o estou a ouvir, mais logo, depois de ler a crónica.
Vou sorrir e vou snifar o pescoço discretamente perfumado do meu teenager preferido. E ele vai-se render aos excessos dos meus mimos e dar-me a aprovação orgulhosa de sempre.

Ana Amorim Dias

Pai que sabe ser pai

Pai que sabe ser pai

Liguei-lhe a meio da tarde.
- Olá mami, faz-me um favor, manda-me fotografias minhas com o pai.
- Ah, mas não estou em casa...
- Não tenho pressa, é só para amanhã.
Percebeu de imediato as minhas intenções.
Mais tarde, chegam-me algumas fotografias, acompanhadas com a mensagem: "Aqui tens o que consegui arranjar. Foi só uma hora à "cata" de fotos. Como o pai era o fotógrafo de serviço, tem poucas fotos dele. Beijinho"
Deu-me vontade de rir. Ainda não se usavam iphones nem o exercício da selfie com o braço esticado.

Ok, tenho poucas fotografias a sós com o meu pai. Mas tenho incontáveis imagens em que registou todo o meu crescimento e tenho algo muito mais importante: a imagem que me deixou de integridade e proteção.
Sempre que um pai sabe ser pai deixa marcas inexoráveis nos seus filhos: a sensação de ser amado, de pertencer ao clã e de, aconteça o que acontecer, estar protegido para sempre.
Sempre que um pai sabe ser pai, mas pai de verdade, deixa um sentimento de presença impossível de apagar, deixa valores e exemplos.

Ontem, ao longo do dia, pensei algumas vezes sobre o que iria hoje escrever. Buscava um episódio belo e imbuído de alguma mensagem ainda não narrada. Foi só enquanto lavava os dentes, mesmo antes de ir para a cama, que me lembrei de um bilhete que escreveu a todos os filhos, faz hoje uns vinte e tal anos. Nunca mais vi o tal cartão, mas lembro-me perfeitamente como terminava (eu sei, é incrível): "...e sigam nem sempre o meu exemplo mas sempre o meu conselho."

Continuo a crescer. Todos os dias. Continuo a lutar por me tornar não só na pessoa que o meu pai gostaria que eu fosse, como na pessoa que ambiciono ser. Tenho, cada vez mais, os preciosos e elevados valores que soube transmitir com os seus conselhos. E continuo a viver com todo o amor, proteção e confiança que as suas ações transmitiram. Pai que sabe ser pai é isto que deixa. Por isso pouco me importa ter poucas fotografias com ele: a imagem que deixou vale todas as fotos do mundo.

Ana Amorim Dias

Esperar sentado

Esperar sentado

O António conheceu a Estefânia em casa dela. Foi lá entregar um sofá e ela pediu-lhe ajuda para mudar outros móveis. Ele ajudou, riram-se muito e ele ficou a pensar nela. Um mês depois decidiu fazer algo. Ligou para a rádio Cadena 100 e pediu ajuda pela rúbrica "quien te tienta a las nueve treinta", que tenta marcar um jantar romântico entre quem para lá liga e a pessoa que o/a tenta.
Eu andava a fazer zapping radiofónico enquanto guiava, e dei por mim a parar nesse canal e a ouvir com atenção, "torcendo" para que a Estefânia aceitasse. Percebi que um sorriso enorme se me colou à cara...

Dizia-me ontem uma amiga que gostaria que a sua vida fosse mais parecida à minha e que os seus dias fossem mais preenchidos pela labuta diária do que vividos entre quatro paredes, à espera que algo aconteça. Fiquei um bocado gaga. Como se muda o ponteiro da inércia para a ação? Não faço mesmo ideia porque acho que o meu encravou derradeiramente no "on". Como sempre diz um homem que vejo como um pai: "tu não és de capinar sentada, minha filha!" Não sou mesmo, e muito menos sou de esperar sentada. Mas como posso "passar" este "estado" a quem o precisa de aprender?

"A vida acontece enquanto esperamos por mesa", disse-me uma vez o Pedro Abrunhosa. Reconheci de imediato o provérbio Nova-Iorquino. Discordei. Há muitas coisas que podem acontecer quando menos as esperamos, contudo é nosso dever colocarmo-nos a jeito. Quem não semeia dificilmente poderá colher. Quem não joga, seguramente não ganhará. E quem não faz por concretizar sonhos e projetos, depressa começa a acreditar que nem vale a pena sonhar ou projetar.

Hoje vou explicar à minha amiga que, sentados à espera dela, a vida raramente acontece. Temos que nos manter ativos, inventivos e alerta. Temos que utilizar todos os expedientes ao nosso dispor para a conquistar ao minuto. Temos que alimentar os dias com o oxigénio da nossa vontade e o rastilho de cada tentativa de conquistar o que queremos. Só assim a nossa existência deixa de ser a novela aborrecida a que assistimos de sofá e passa a ser o filme épico em que, como heróis principais, partimos em aventuras incríveis!

P.S.- A Estefânia aceitou ir jantar com o António.

Ana Amorim Dias
Realidades complexas

Ia começar a semana com algumas palavras sobre preocupação das autoridades peruanas com uma estranha crescente tendência. Parece que alguns turistas gostam de se fotografar nus nas ruínas de Machu Picchu. Mas depois lembrei-me que o referendo sobre a secessão da Crimeia resultou em mais de 90% de votos a favor do seu regresso à Rússia; e que o avião da Malásia continua sem rasto; e que a situação na Venezuela prossegue sem airoso fim à vista.
A questão é só uma: o que é que sabemos? Qual é afinal a percentagem de informação que temos? Quanto do que lemos, vemos e ouvimos, é de facto real? E o que é que é manipulado, alterado, embelezado ou desfeado? Podemos confiar nos sentidos e em quem traz a informação? Ou somos meros opinadores facciosos, emprenhados por tudo aquilo que não colocamos em causa?
Embora os valores sociais, éticos e humanitários sejam muito simples, a maior parte das realidades são tão complexas que, sem o devido conhecimento histórico e contextual, não podemos arrogar-nos o direito de os julgar com a justiça devida.
É por isso que, embora a preocupação com o nudismo de alguns turistas me faça rir, prefiro documentar-me bem antes de comentar outras coisas.

Ana Amorim Dias



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Estanguinhadeira

Estanguinhadeira

Garanto-vos que, às vezes, quase me chego a preocupar. "Terás inspiração para sempre? Para todos os dias?", pergunto-me. "Enquanto houver dias, existirão acontecimentos. Há sempre tema enquanto há vida e, havendo tema, inspiração não faltará!"

Acordei com o instinto predador do costume. Vesti-me de caçadora de histórias e comi os cereais no alpendre a ouvir os sons do campo.
- Queres vir comigo tratar dos animais?- o Ricardo convidou-me sem esperança, já que nunca o acompanho.
- Sim.
Ele não acreditou e saiu.
Segui-o.
- O inesperado afinal sempre acontece!- riu-se.
Fomos recebidos nos estábulos com a barulheira feliz dos animais que, prevenidos pelos gansos, se agitaram para receber os manjares.
O balde dos restos caseiros para as cabras; milho para as galinhas; palha para as éguas; farelos para o porco. E recolher o ovos, claro.
Depois segui o Ricardo e as éguas, cerro acima, para as deixar a pastar, com uma vista deslumbrante.
- Adoro fazer isto contigo!- sorriu-me. Sabe que a minha essência cosmopolita ainda confere mais valor a estas cedências esporádicas.
- Vou chamar os miúdos para irmos ao mercado. Vens?-
- Claro!
Ele só podia estar a estranhar tanta participação, mas eu precisava de mais acontecimentos e mais fotografias.

Cada um agarrou-se à sua alfaia, debitando disparates sobre o que faria com elas. Gargalhadas. Até que o Tomás segurou numa demasiado estranha. O vendedor explicou tratar-se de uma estanguinhadeira, que serve para tratar das oliveiras. Liguei o tio Google no iPhone e escrevi a estranha palavra: nada! Que sensação fabulosa. O tio Google afinal não sabe tudo? Isso quer dizer que ainda há conquistas possíveis para surpreender os meus leitores!
Festejamos com minis. E com pratinhos de enchidos. E frango assado e mais minis. Até comprei um chapéu à Hemingway só para me sentir mais artista, mais exótica. Valeu bem, esta caçada: não é todos os dias que consigo conquistar algo que sirva para ensinar algo a alguém!
E então lembrei-me das palavras do Ricardo: "O inesperado afinal sempre acontece!", nem que seja numa insuspeita manhã de domingo em que nos disfarçamos de caçadores de histórias e partimos dia fora cheios de sede de vida!

Ana Amorim Dias

Os chocolates perdidos

Os chocolates perdidos

- É verdade, é! Tenho três chocolates Oreo escondidos, mas nunca os conseguirão encontrar!!- exclamei, trocista.
- Oh mãe!!
Já desisti de colocar as guloseimas bem à vista, nas prateleiras. Em nome do salutar travão aos excessos de açúcar, trato de as esconder sempre em locais insuspeitos, distribuindo-as, depois, com regras e moderação.
"Eu e a minha grande boca!" Suspirei enquanto os patifes partiram na feliz aventura da caça ao chocolate. Mas continuei com o meu ar de gozo por estarem bem longe do alvo.
- Tomás, Tomás! Encontrei dois chocolates brancos!- creio que o João exultava mais pela adrenalina da vitória do que pelos chocolates.
- E João, olha! Uma caixa de bombons, aqui nesta gaveta!
"Mas que raio? O que é que se passa aqui??" E então lembrei-me que me tinha esquecido de guloseimas deixadas em alguns dos esconderijos por inventar sempre novos!

- A tua memória é impressionante.- comentou o meu irmão, sentado ao meu lado no carro.- Como é que te lembras, com essa precisão toda, de coisas que aconteceram há tantos anos e eu nem me lembro do que almocei ontem?
Nesse momento ocorreu-me que os melhores esconderijos são os da nossa memória. Aqueles esconderijos que nunca ninguém encontrará a menos que os queiramos mostrar. Os mesmos a que podemos aceder em qualquer altura e desde qualquer lugar para alcançar recordações mais doces do que qualquer chocolate!

Ana Amorim Dias

Com devoção

Com devoção

Fiquei catatónica uns segundos. Não, não podia ser! Mas aparentemente era verdade que, e passo a citar: "Francisco Javier Martinez, arcebispo de Granada, Espanha, deu conselhos às mulheres crentes para evitarem cair em pecado ao praticarem sexo oral com os seus parceiros." Segundo ele, "as mulheres podem praticar fellatio com os seus maridos sempre que eles pedirem. Mas, quando o fizerem, devem pensar em Jesus para não se tornarem pervertidas."
Lembrei-me logo daqueles decretos-lei que impõem proibições só para as poderem levantar mediante o pagamento de valores monetários. E claro, veio-me também à lembrança o velho chavão do "Ajoelhou, tem que rezar."
Ao recuperar do choque, quando o cérebro voltou a funcionar normalmente, percebi que se nunca os homens laicos saberão o que passa pela cabeça de uma mulher ao "orar de joelhos", muito menos um que pertença ao clero terá capacidade para sequer o imaginar (quanto mais para dar instruções quanto ao que devem pensar).
Por outro lado perguntei-me se não terá ocorrido ao senhor arcebispo que talvez possa, com estas afirmações, ter aberto caminho para a esquisita situação de converter Jesus num sex symbol. Estranho. No mínimo. Porque Jesus continua a ser, tanto para crentes como não crentes, um exemplo fantástico de humanidade e bondade, não tendo por que estar no pensamento feminino em situações onde não é chamado.
O que os membros do clero fazem, na sua intimidade, desde que não prejudicando ninguém, não nos dizem respeito. E era bom que alguns, antes de debitarem disparates, percebessem que no mundo laico há muitas coisas que acontecem sem pecado ou perversão, no simples contexto da devoção amorosa. O problema é que fiquei com vontade de lhe ligar a perguntar em quem devem pensar os homens, na situação inversa...

Ana Amorim Dias

Nitro

Nitro

Comecei logo o dia com uma consulta ao "tio" Google. A culpa foi do João que ontem, ao virmos da escola, começou com as coisas dele.
- Sabes o que eu gostava mãe?
- De quê? - preparei-me para anotar mentalmente a pérola que estava para vir.
- Que tivesses uma patilha, aí nesse sítio (apontou para a manete das mudanças) e que se abrisse uma tampinha com um botão lá dentro...
- Um botão de que cor? (Estes detalhes importam)
- Vermelho! E se carregasses nesse botão ligava-se o 'nitro' e o carro andava "muita" depressa!
- Nitro? Nitro quê, filho?
- Sei lá, aquele da velocidade!

Ora bem, de acordo com o que li no "tio" Google, nitro pode ser uma banda de hard rock, uma personagem da Marvel, um canal de TV, óxido nitroso ou nitroderivados. Na parte que me pareceu importante, descobri que o óxido nitroso (N20) "é sempre usado na forma gasosa e normalmente manuseado na forma líquida em cilindros de alta pressão ou tanques criogénicos." Já foi conhecido como gás hilariante e serve para aumentar a potência em motores de combustão.

- E para que queres mais velocidade, filhote? Não vamos bem assim?
Fiquei sem resposta. E a lembrar-me de quando falo com o Ricardo sobre a sensação de andar de mota:
- Bolas! Viste a velocidade daquele?- comentei, certo dia, alarmada.
- Aquela velocidade nem se sente, numa boa mota.- respondeu, com a tranquilidade sorridente de experiente motard.
E eu, claro, fiquei a olhar para ele como se fosse um alienígena muito estranho.

O instrutor parou o carro e fez-me sinal para encostar a mota.
- Ana, vamos pôr o objetivo nos cinquenta quilómetros por hora, tens que acelerar um bocadinho!!
- Mas Rodrigo...
- Vá, bora!

Devo ter nascido sem Nitro. A minha paixão por estar sempre em movimento é inversamente proporcional ao amor por velocidades. Será que isto faz de mim uma pessoa lenta? Ou será que o óxido nitroso me veio todo para o cérebro sem que nada sobrasse para a locomoção? Não me podia importar menos! No jogo das minhas deslocações motorizadas quem dita as regras sou eu! E a velocidade ideal é sempre a que nos dá segurança.

Ana Amorim Dias

As teorias do crepe

As teorias do crepe

- Meninos! Vão ao galinheiro buscar ovos se faz favor.
- Espera.
- Ok. Não faço os crepes, então!
E eles voaram, porta fora, com um torpedo nos pés.
Há uns quantos domingos, ao fim da tarde, fiz tantos crepes que acabou por ser isso o jantar. Com patê, com queijo fresco, fiambre, mel ou nutella, cada um comeu como quis e até querer. No fim, muito consolados, exclamaram que o jantar de domingo bem podia ser sempre aquele.

(Teoria número um: sem regras.)
- Ai Ana, que bons! Como os fazes?
Ora bem, como é que se explica o que se faz sem receita?
- Então, ponho leite, farinha...
- Em que quantidade?
Pronto, a pergunta mais tramada!
- Sei lá, um alguidar pequeno quando somos poucos e um alguidar maior quando há visitas, como hoje.
- E mais?
- Acrescento uns quantos ovos...
- Quantos?
Arre!!
- Uns quantos, já disse. E uma pitada de sal, um pouco de açúcar, de azeite e de canela. Acho que está tudo.
- Não sei como fazes as coisas sem respeitar quantidades.
Mas eu respeito as quantidades! Não sei é quais são! Além do mais não me parece boa ideia embarcar em qualquer tipo de criação (até a culinária) espartilhada por regras, medidas e pesos. Para onde iria o prazer e a criatividade? Deve ser por isso que nunca sigo receitas.

(Teoria número dois: aumentar o desafio)
Mas há mais. Quando fazemos vinte, trinta, quarenta crepes, não nos safamos com uma frigideira apenas. Comecei por usar duas, ando a usar três e, estou em crer, brevemente passarei às quatro. É claro que os miúdos se riem quando me ouvem dizer: "E agora ainda mais perigoso, este número de circo!"
- Olha, pai, olha! A mãe parece uma malabarista!

No fundo as teorias do crepe resumem-se a uma só: diz-me como fazes crepes e dir-te-ei quem és!

Ana Amorim Dias

A escolha

A escolha

Nem acreditei quando aquelas palavras me saíram...
- Os sentimentos têm algo de matemático!
Ai vida, onde é que eu me estava a meter?
- Há denominadores comuns a todas as pessoas em certas situações.- prossegui.
- Então porque é que, perante o mesmo problema, uns sucumbem ao sofrimento e a outros passa-lhes ao lado?- perguntaram-me.
Aqui a resposta era óbvia. Usei-a.
- Simples: inteligência emocional! E esta resume-se a uma regra básica: "Eu posso escolher o que sinto."

Às vezes acho que sou demasiado dura com quem sofre. Mas depois lembro-me logo que há dois momentos em cada sofrimento. Digamos que existe a dor legítima, que podemos permitir-nos sentir, e a dor ilegítima, aquela teimosa, que já não faz sentido nem cura. E esta há que bani-la nem que seja a toque de chapadão. O sofrimento ilegítimo é perigoso porque é patológico e viciante; é vicioso até, na medida em que o usamos para inspirar a pena alheia sem saber que, no meio do processo, nos deixamos prender pelas garras do monstro da autocomiseração.
Ter pena dos outros é coisa feia. Mas ter pena de nós? É a maior agressão com que nos podemos ofender.
E depois vêm queixar-se de solidão. Pudera! A tristeza afasta mais que o mau cheiro, enquanto a alegria atrai os outros como borboletas à luz. Sim, é matemático! Deve ser por isso que dou prazo às minhas dores e as converto depois na força locomotora de uma evolução consciente. Deve ser por isso que dou um tempo às dores de quem me pede ajuda e depois, quando o sofrimento se torna ilegítimo, parto para os abanões verbais com uma certa dureza.

O mundo não gira em torno das dores de ninguém! As desgraças que se abatem sobre cada um são riscos inerentes à existência e não uma conspiração direcionada. E enquanto não percebermos que podemos de facto escolher o que sentimos, não seremos capazes de usar as cicatrizes interiores com a mesma alegria e beleza com que se pode envergar um sensual par de calças rasgadas.

Ana Amorim Dias