(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

9.11.12

Nevoeiro



  Entro com o carro por um nevoeiro cerrado.  – Nevoeiro é quando as nuvens caem ao chão… - deixo escapar, a meia voz.  No banco de trás, os miúdos riem-se da minha definição infantil. E voltam à conversa tranquila (espanto!) que estão a ter entre si, deixando-me entregue a dez quilómetros de conjeturas.
   O Pablo vai soando na aparelhagem do carro,  “ … me llaman loco por dejar tu recuerdo quemarme la piel…”. Não me deixo levar por “recuerdos” nostálgicos, mas chegam-me  ao pensamento claros episódios dos sonhos da madrugada. Um restaurante deslumbrante onde nunca tinha estado. Algumas pessoas à minha espera lá dentro. Sou muito bem atendida  por uma senhora e dois senhores que me aguardam à porta. Tiro a toalha que me envolve os cabelos molhados e entrego-a, com toda a naturalidade, a um dos homens. Sacudo a melena sobre os ombros semi-desnudos. Volto atrás. Dois euros de gorjeta ao simpático senhor. Será bastante? 
    Continuo a conduzir. Em piloto automático extremamente atento. “ Que raio, Ana… como é que arranjas estes sonhos?”. Trespasso as nuvens caídas no chão e penso que tal como o lugar delas não é ali, também a realidade se encontra alterada. O Mundo mudou. As escolhas que pareciam certas na minha juventude não fazem agora grande sentido. Um bom emprego. Um ordenado certo ao fim do mês. Segurança. O que os meus pais queriam para mim; o que todos os pais queriam para o futuro dos filhos, pertence a uma realidade que já é quase irreal. Segui outros caminhos bem mais arriscados. Em boa hora o fiz.
   Olho de frente para o nevoeiro. Olho para trás pelo retrovisor e observo as duas crianças a quem tenho que ensinar a realidade. Como os preparo para o futuro?  O lugar das nuvens não é só no céu. E o “certo” pode ser de uma incerteza gritante…  Digo-lhes para se nortearem só pela segurança ou para ousarem ser originalmente inventivos?  Digo-lhes que uma escolaridade sólida é o suficiente ou incito-os a aprender todos os truques da natureza e a saber viver dela? Digo-lhes que saber história, geografia e fórmulas matemáticas é mais importante que saber pescar, amassar pão, depenar uma galinha ou distinguir as ervas do campo que se podem comer?  Não sei. Por isso, e por via das dúvidas, decido que o imaginativo sonho desta noite e as nuvens caídas no chão são sinais.  Sinais da mudança dos tempos. Sinais de que as crianças de hoje têm que ter, mais  do que  conhecimentos teóricos, sabedorias pragmáticas e, acima de tudo, a noção de que talvez um  dia venham a precisar de algo que os adultos lhes estão sempre a querer amputar: a capacidade de usar a fantasia e a imaginação como ferramentas bem reais.
Ana Amorim Dias