(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

17.11.13

Amar e deixar viver

Amar e deixar viver

- Sabes onde estou??-
- Sei. Algures em Itália, numa esplanada, a beber uma cerveja com os teus amigos...-
- Vá lá! Tenta! Se acertares, levo-te uma prenda!-
Fiquei realmente feliz com todo aquele entusiasmo.
- Desisto, diz-me tu.-
- Estamos na praça de São Marcos, em Veneza!
Os amigos, ao fundo, confirmavam o facto.
- Ohhhh pááá... Que bom!!!- exclamei, com um sorriso rasgado.

No dia anterior, depois de aterrar em Bolonha, o Ricardo ligou-me com uma vozinha triste:
- Está a chover... Tenho saudades tuas. É tão bom viajar contigo... És tão divertida... é diferente.
- Deixa de ser parvo! Temos o resto da vida para conhecer o Mundo. Agora vai divertir-te e aproveitar a companhia dos teus amigos, palerma!-

Amar é deixar viver. É potenciar as experiências do outro mesmo quando não estamos nelas. É ficar feliz com o enriquecimento do outro como se acontecesse connosco.
Poderia dizer também que amar bem é deixar partir, mas estaria a falhar uma das premissas mais básicas: ninguém é dono de ninguém para se arrogar o direito de permitir ou proibir o que quer que seja.
Amar é deixar viver. E é proporcionar um apoio feliz a cada nova partida. Só assim o nosso par entende todo o nosso valor e regressa não só mais rico e belo ... como a morrer de saudades.

Ana Amorim Dias

Sem facebook

Sem facebook

No fim da tertúlia sobre redes sociais, houve um senhor que rematou com uma pergunta incisiva:
- E quem seria, hoje, a Ana Amorim Dias sem o Facebook?-
Como já não havia tempo (e eu queria pensar bem no assunto), garanti-lhe que a resposta chegaria na crónica de hoje.

Quando, há quatro anos, comecei a escrever, percebi rapidamente que, nos meses em que não estava a escrever nenhum livro, sentia um vazio profundo nos meus dias. Nos primeiros meses de 2011 entrei para o facebook e, sem ter uma ideia precisa do que iria acontecer, habituei-me a escrever e publicar uma crónica quase todos os dias...

Raras são as coisas que não têm alguma sombra a acompanhar-lhes a luz. Redes sociais incluídas. Mas, da mesma maneira que manejar um carro ou um fogão implica riscos, também os novos veículos de comunicação podem ser perigosos, a menos que tenhamos maturidade e inteligência para os converter apenas em nossos aliados.
Escrever faz-me feliz; usar constantemente a criatividade reconecta-me à vida; aceitar o desafio de escrever sempre, e sobre tudo, obriga-me a uma atenção, curiosidade e coragem, que me conferem um maior entendimento de tudo. Mas é o retorno que os leitores me dão que tem feito de mim melhor pessoa; que me tem humanizado de uma forma muito prática e consistente. Não sei se inspiro, se dou o exemplo ou se sou formadora de opinião. Apenas sei que vocês, que aí estão desse lado, me transmitem talvez mais do que eu vos dou a vocês.
Agora já lhe posso responder, Jorge, que a Ana Amorim Dias, sem o facebook, talvez fosse apenas uma Ana Dias mais incompleta, mais imatura e menos preocupada em ser uma pessoa melhor.

Ana Amorim Dias

Princesa atómica

"Princesa atómica"

Arranjei finalmente meia hora para "pensar" no que vou dizer no debate de logo à tarde (a importância das redes sociais sob a perspetiva de uma escritora) e na palestra de amanhã (testemunho de uma empreendedora enquadrado na ousadia e na criatividade).
No caso da palestra de amanhã à tarde, no Teatro Municipal de Portimão, tenho que me render ao óbvio: precisaria de umas dez horas para conseguir fazer justiça ao tema, o que significa que, para o espartilhar em menos de uma hora, terei que escolher os tópicos mais importantes...

Gosto de me preparar bem para as coisas e tenho uma certa inclinação para a busca do perfecionismo, o que sempre me obrigou à rigorosa preparação de todas as intervenções deste tipo. Mas, desta vez, algo me tem estado a travar.

Passei pelo facebook ainda há minutos e li dois comentários à crónica de ontem. Espero que não se importe, querida Liceria Lobo, que os transcreva agora, aqui: "Bom dia (PRINCESA, atómica)! Tenho quase a certeza que faz tudo certo para ser feliz... Não imagina como me dão força para acreditar, as palavras com que nos presenteia e falam de si :)!" ; "Fiquei na dúvida se devia apagar o (Princesa atómica) mas saiu-me tão natural como se estivesse a falar com os meus filhos ou netos... Espero que não se ofenda... Foi a especial ternura que sinto pela sua escrita!"

Li isto e derreti. Ser chamada de "princesa atómica", de forma espontânea e, ainda por cima, como se faz a filhos ou netos, é uma espécie de três-em-um divinal. E o mais maravilhoso é que, com isto, me chegou também a resposta ao dilema que tinha em mãos: não vou prepara-me racional e exaustivamente para a palestra de amanhã. A vida e a atitude que optei ter perante ela têm-me preparado o suficiente para dar um testemunho absolutamente genuíno e espontâneo que, acredito, terá um impacto muito mais produtivo no que considero ser a minha missão de "princesa atómica": inspirar!

Obrigada, Liceria, pela resposta que, tão carinhosamente, me trouxe!

Ana Amorim Dias

Despertares

Despertares

Acordei a refilar.
- Mas o que é que tu tens?- perguntou o Ricardo, apesar de estar habituado a certos humores matutinos.
- Quero muito ouvir duas músicas, mas não as consigo encontrar porque não me lembro nem dos nomes das canções nem dos nomes dos cantores!!-
Assim que terminei a frase, como que por magia, fez-se luz na minha cabeça e gritei bem alto: "Le Vent m'a dit"!!
Ele deu o habitual suspiro (resignado à excentricidade?) e eu fiz soar a cantiga.

Meia hora depois, ao entrar no café, não quis acreditar no que estava a acontecer... a outra música que eu desejava ouvir, "Sex on Fire" dos Kings of Leon, estava a soar na rádio. Fiquei com um sorriso tão estupidamente rasgado que me devem ter tomado por louca.

Quando cheguei, há pouco, a casa, tinha uma encomenda de um amigo virtual (Obrigada, Luís Quinta, pela encantadora obra!): um livro de fotografia com uma dedicatória deliciosa. E, logo a seguir, atendi um telefonema: - Olá querida- disse-me aquela voz doce que reconheci de imediato. Fiquei a pensar quantas pessoas serão assim tratadas pela assistente do dentista, a confirmar a consulta.

Enquanto guio, lembro-me da sinceridade encantada com que o João ontem me disse "Tu és tão bonita, mãe!"; lembro-me também da magnetizada admiração com que o Tomás me olhou, enquanto eu cantava completamente feliz, a letra inteira de "Lá vem o alemão" dos Mamonas Assassinas (música que, até segunda à tarde, lhe era desconhecida)...

Os pequenos, mas colossais, milagres sucedem-se, e deixam-me a pensar na plena consciência matinal que nos traz à memória coisas que queríamos lembrar e não conseguíamos. Será que existe nisso algum exemplo escondido de que podemos praticar diariamente um "acordar" mais consciente para a vida e para a atitude que devemos ter perante ela?
Olhando para tudo o que me acontece, só me resta acreditar que devo andar a fazer bem as coisas: todos os dias acordo com a consciência fresquinha e pronta... e todos os dias desperto um pouco mais para a maneira mais eficiente de encarar a vida. Deve ser por isso que ela me traz todas as "melodias" que desejo.

Ana Amorim Dias

Leitinhos

Leitinhos

- Mamãhã...-
- Diz Tom.-
- Tens que comprar mais leitinhos, já estão mesmo no fim!-
- Ai isso é que não estão! Olha aqui: um pacote inteiro!-
- Eu sei que esses estão aí, mãe. Mas esses são os de reserva... até comprares mais, gastam-se!

A minha avó tinha uma expressão engraçada, que usava quando via alguém a comer com apetite voraz: "Assim mais vale manter um burro a pão-de-ló!" Tenho a leve impressão que o diria se conhecesse os meus filhos. Felizmente!
As pessoas que não gostam de comer causam-me um certo transtorno. Respeito quem não gosta de comidas quase nenhumas. Aceito quem apenas ingere o estritamente necessário para se manter em pé. Mas o certo é que não me consigo sentir plenamente à vontade com pessoas assim. Diz-se que quem não presta para comer, não serve para trabalhar. Nunca confirmei se isto é ou não verdade porque normalmente lido com "bons garfos". Aliás, receber em minha casa (sentido lato, entenda-se: de casa e quinta de eventos) "passarinhos" que apenas debicam, com ar enjoado, as iguarias que apresento, deixa-me com uma irritação apenas explicável por já ter compreendido que sou uma "alimentadora" nata. Gosto de empanturrar quem me rodeia. Tenho um prazer enorme em alimentar, de comida e vida, todos os que, de forma mais permanente ou mais passageira, fazem parte dos meus dias. Fico feliz ao ver os outros comer e, se o fazem com prazer, ainda mais realizada me sinto.
A leitura destes factos é, no fundo, muito simples: o profundo amor que sinto por (quase) todas as pessoas, revela-se nesta necessidade de lhes colocar comida na boca e lições no coração. Posso não saber cozinhar como um Chefe gourmet e posso não ter muito para dar, mas hei-de abraçar sempre este impulso de nutrir corpos e almas... talvez na constante esperança de que não só se alimentem como saboreiem também.
E desengane-se por favor quem pense que isto é muito altruísta pois tenho a certeza segura de que, ao alimentar os outros, me alimento ainda mais a mim!

Agora vou desenhar um asterisco na mão para não me esquecer de comprar mais leitinhos!

Ana Amorim Dias

Somewhere we belong

Somewhere we belong

O ritual do despertador com quinze minutos de avanço tornou-se uma instituição. Só assim é possível chamar a filharada toda para a grande cama e ficar por ali, uns momentos, a distribuir mimos pelos três como se não houvesse amanhã.
Hoje decidi que acordariam ainda com mais loucura: dei um salto da cama, pus a tocar o "wake me up" dos Avicii, e comecei a dançar pelo quarto.

Inventamo-nos todos os dias. Ou pelo menos temos a possibilidade (e obrigação?) de o fazer. A todo o momento temos a escolha nas mãos: sentirmo-nos felizes pode passar por uma decisão consciente.

"Não sei onde acabará esta viagem, mas sei onde começámos-la" (...)
"A vida passará por mim se eu não abrir os olhos" (...)
"Estive todo este tempo a encontrar-me...Sem saber que estava perdido" (...)

Eu ia dançando, sentindo a música, traduzindo e apreciando o poder daquelas palavras. Enquanto isso, os miúdos iam regressando à consciência, com um sorriso nos lábios.

Quase no fim da música, uma personagem diz a outra:
- Acorda e faz a mala!-
- Para onde vamos?-
- Para onde pertencemos...-

A música foi a repetir-se todo o caminho até às escolas. Há quem continue sem saber onde pertence. Mas eu tenho sorte: sei que pertenço àquela cama de mimos...e à missão de ir lembrando, todas as manhãs, que nos está a ser dada uma nova hipótese de acordar!

Ana Amorim Dias

A balada de Hill Farm

A balada de Hill Farm

Se me perguntassem qual era a série policial da minha vida, só poderia responder: a "Balada de Hill Street". Nenhuma outra chegou a ter o mesmo sabor, som e valor. Nenhuma outra marcará tanto.
Foi aliás esta série que me ambientou muito depressa a Lisboa quando, com 18 anos fresquinhos, fui para lá viver sozinha. As sirenes, que em Faro nunca se ouviam, traziam-me um emocionante travo a ação que me encantou desde o início.
Quando finalmente, alguns anos depois, aterrei pela primeira vez no JFK e me dirigi para Manhattan, o som da balada acompanhou-me por dentro...

Creio que foi há duas noites que um helicóptero voou mesmo por cima da Quinta do Monte. Eu estava a deitar-me quando o aparelho rasou tão perto que toda a casa estremeceu.
- Mãe? Ouviste isto?-
O Tomás apareceu, alarmado.
- Sim, era um helicóptero. Volta a dormir, está tudo bem.-

Na Quinta do Monte ouvem-se os animais e a brisa a soprar nas árvores, ouvem-se carros a chegar e partir, ouvem-se as vozes felizes, a música, os aspersores a regar a relva e camião do lixo às segundas e quintas à noite. O que não é costume escutar são sirenes nem aeronaves rasantes.

A vida também é som. A sua compreensão e nuances também são feitas pelo sentido da audição. E há pequenos ruídos que nos transportam não só ao passado como ao entendimento do que levamos dentro, guardado bem cá no fundo. Amo os sons do meu dia a dia, mas não posso negar que os sons da ação me despertam os sentidos e me devolvem a consciência deste amor pela aventura.

Termino esta crónica a sorrir com a coincidência. HILL, em português, é colina, mas também pode ser Monte. Escrevo ao som das baladas: não de Hill Street, mas de Hill Farm!

Ana Amorim Dias




Enviado do Writer


Enviado via iPad

Unhas de gel

Unhas de gel

Tinha decido debater comigo mesma a razão pela qual nunca fiz unhas de gel. Ter um gosto tendencialmente monocromático e não apreciar perder o meu tempo com "mariquices", são justificações menores. O verdadeiro motivo para nunca ter cedido a esta crescente tendência é outro: não gosto de usar nada que não possa controlar e tirar eu mesma!
Não digo que não as haja bonitas, porque realmente há! Mas o problema surge quando os dias passam e a imaculada obra inicial dá lugar a um desmazelo ao qual a pessoa não sabe acudir por si só.

Vi na internet as notícias sobre o furacão Haiyan, um dos mais fortes alguma vez registados. Horrorizada com os números de vítimas e as imagens da calamidade que se está a viver nas Filipinas, perguntei-me por que raios haveria eu de, logo hoje, escrever sobre algo tão fútil como unhas de gel.

Neste momento o sol brilha. Pelo menos onde eu estou. Oiço as vozes despreocupadas dos comensais que hoje vieram fazer a sua festa aqui à quinta. Penso no desespero e traumas de quem, lá longe, terá que aprender a viver com a devastante experiência e suas consequentes perdas. De que me serviria não escrever sobre as fantásticas unhas a que nunca me rendi só porque não as sei corrigir e controlar? A verdade é que, perante forças como a natureza ou o destino, nada podemos. O que podemos sempre tentar controlar é a nossa vontade de não nos tornarmos demasiado insensíveis a todos os lutos do mundo. O que podemos tentar controlar é a nossa tendência de dar problemáticas importâncias a coisas que não importância rigorosamente nenhuma!

Se calhar um dia destes ainda experimento as tais unhas de gel (de uma só cor e sem desenhitos!): é que a decoração das unhas é algo com uma importância tão reduzida que nem vale a pena tentar controlar.

Ana Amorim Dias

O homem que não quer nada

O homem que não quer nada...

Nos raros dias em que não tenho algo que me inspire a crónica, vou ao bloco de notas do telemóvel e espreito os pequenos apontamentos que vou registando sempre que algo me faz pensar.

Nota de 3 de Setembro:
- Quanto é que vamos ganhar por esta merda?- disse um.
Lembro-me que anotei as falas de uma cena de um filme, na qual dois bandidos contratados iam fazer alguma maldade.
- Um homem que não quer nada é invencível!- respondeu o outro.

Normalmente registo o que não entendo à primeira; ou o que pode ser alvo de várias interpretações; ou ser base de analogias; ou me faz rir, emocionar... Bem, vocês estão a perceber a ideia.
Já tinha lido o apontamento das falas deste filme várias vezes, mas a sua hora não tinha chegado... Até ontem.

- Mãe, o que é isto?-
O João estava entretido numa das suas "expedições de armário" e apareceu-me com vários desenhos e pinturas na mão.
- Quem é que fez este cavalo mãe?-
Abri um sorriso.
- Eu.-
- E dás-me? Para pôr no meu quarto?!?-
- Claro, amor.-

Desenhei o "cavalo espantado" quando tinha onze anos, há vinte e oito, portanto. E ainda consigo lembrar-me, com todo o pormenor, do que senti ao fazê-lo: exatamente o mesmo explosivo prazer que se produz em mim durante cada processo criativo. Quando se precisa deste género de alimento, passem os anos que passem, nada muda!

Nunca me passou pela cabeça quanto é que vou receber por um livro, uma crónica, um poema. Sempre que crio, estou sintonizada no mais absoluto prazer e não em projeções de lucros.
É claro que quero sucesso, mentiria se não o admitisse. Mas sucesso sem consistência, arte e prazer, nada mais é do que uma bola de sabão.
Ocorre-me, à semelhança do que disse o enigmático bandido do filme, que se um homem que não quer nada é invencível, aquele que apenas quer o prazer criativo talvez consiga ser imortal.

Ana Amorim Dias

Muitos milhares de manhãs

Muitos milhares de manhãs

Tentei conter-me e não comentar as observações infelizes da escritora cor de rosa. Criticar e julgar não são as minhas actividades favoritas; gosto de dar o benefício da dúvida, reclamando que, se calhar, se explicaram mal ou houve alguma falha no entendimento. Perante o "tareão" que a colega estava a levar, até senti vontade de a defender... mas primeiro quis ver a tal entrevista.
Realmente a culpa do estado da nação não pertence só aos cabecitas (ia escrever cabecilhas mas nem vale a pena) de agora. Vem de há muitos, muitos anos, e reparte-se por tanta gente que, a serem responsabilizados, teríamos que criar muitos mais "postos de reclusos VIP". Mas um escritor (UM ESCRITOR!!!) acreditar na falta de civismo e inteligência de quem reclama os seus direitos??? A incredulidade invadiu-me! A questão ultrapassa classes, a meu ver. Mesmo quem é privilegiado, por sorte ou trabalho árduo, e continua a ter alguma qualidade de vida, não pode fechar os olhos, inerte, a tanto desgoverno e injustiça! Pelo contrário, é quem tem mais voz e alicerces que se deve insurgir e apoiar quem se insurge.
Estou com todos os que, sacrificando-se um pouco mais, aderiram hoje à greve. Estou com todos os que, sem se poderem sacrificar mais, optaram por não a fazer. Mas não posso defender quem, do alto do seu conforto, se "borrifa" para as pessoas! Sobretudo se é escritor(a); sobretudo se pertence àquele conjunto de seres para quem as PESSOAS devem ser o princípio, o meio e o fim de toda a sua existência.

Dou-me conta que, em breve, chegarei ao milhar de crónicas. Tenho-as escrito diariamente ao longo dos últimos anos, quase sempre de manhã. E hoje acordei a lembrar-me da Xerazade, que contava as suas histórias à noite, todas as noites, para salvar as suas compatriotas.
Quantas manhãs terei eu? Quantas mais crónicas escreverei? Alguma vez me faltará voz à pluma? E que efeito têm elas, essas palavras sentidas que a cada amanhecer me dão um renovado entendimento de tudo? Talvez não salvem a vida a ninguém, como acontecia com as histórias da Xerazade... Ou talvez ajudem muitas pessoas a ser um pouco mais felizes, não sei...
As pessoas e a vida, são o barro dos escritores, mas apenas as pessoas são o derradeiro destino das obras que deles nascem. Como pode um escritor não saber ser tolerante, compreensivo e amante de cada Ser? Não entendo. Ainda. Porque, pelas minhas contas, tenho pela frente muitos milhares de manhãs!

Ana Amorim Dias

Uma noite no deserto

Uma noite no deserto

Ainda há pouco, quando estava a pôr queijo nos croissants matinais das minhas tropas, vieram-me à memória os dois triângulos de queijo creme que comi há uma semana, mais ou menos à mesma hora...

Eram seis e dezassete quando o Moha chamou por nós.
- Se querem ver o pôr do sol, têm que se despachar!-
Eu tinha caído no mais profundo dos sonos, depois de todas as emoções do dia anterior. A resistência de ambientação àquele entorno agreste e à humilde tenda que nos acolheu, depressa cedeu lugar a uma forte lição de vida que recebi com gargalhadas.
- Ainda bem, ainda bem, ainda bem!!- dizia o Ricardo, sem parar, ao ver onde iríamos passar a nossa noite no deserto.
- Mas "ainda bem" o quê?-
- Ainda bem que foste tu a marcar isto... porque se tivesse sido eu já tinha a cabeça desfeita com tantas reclamações.-
- Eu já te expliquei que mudei, Ricardo! Mudei muito!!- disse, a rir.

A noite não foi fácil. Pernoitei vestida, imóvel, a ouvir as tenebrosas rajadas de um impressionante vento que parecia querer levar tudo pelos ares. "Depois disto qualquer hotel vai ser bom!", comecei por pensar. E depois o pensamento mudou, satisfeito por ter um abrigo a proteger-me dos elementos: "...estou bem e vou ficar ainda melhor, mais forte e preparada para tudo...", ocorreu-me antes de cair no habitual sono de defunta.

Na noite anterior, enquanto jantávamos a deliciosa tagine que o Ricardo ajudou o Moha a preparar, conversámos os três muito tempo.
- Vou contar-vos algo incrível.- disse o Moha - Os japoneses ofereceram-se para fazer um túnel a atravessar o Alto Atlas...com a condição de ficarem com tudo o que encontrassem no subsolo!-
Fi-lo repetir aquilo para ver se tinha entendido bem.
- E Marrocos aceitou?- quis eu saber.
- Não.-
Não sei se é verdade ou não, o que o meu amigo berbere nessa noite nos contou, mas fiquei impressionada.

Enquanto distribuía os croissants pelas "tropas", antes de sairmos de casa esta manhã, dei com o sentido daquilo que o queijo me trouxe à memória: quando estamos dispostos a escavar túneis na dura rocha da nossa resistência ao desconforto, descobrimos os minérios interiores que nos compõem. Tenho agora a certeza que foi aquela ventosa noite no deserto que me revelou alguns dos diamantes que trago dentro: a capacidade de aprender com tudo; neste caso com a humildade do chão de uma tenda que me protegeu de uma tempestade de areia. Há coisas que, parecendo nada valer, são de um impressionante valor!

Ana Amorim Dias

Ps- Quando forem para os lados do deserto de Merzouga, não se esqueçam de passar pelo site do Moha : www.nirvanacameltreck.com
e marcar uma noite no deserto... pode muito bem suceder que também descubram preciosos minérios em vós!

Pontualidade e paisagem

Pontualidade e paisagem

O treino do Tomás começava só às seis, mas às cinco e pouco já ele estava a dar-me pressa.
- Não podes ir mais depressa?-
- Temos mais de meia hora para fazer três quilómetros. Estamos a ir de carro: importas-te de não ser tão histérico com as horas?-

Sei que em parte (ou será totalmente?) a culpa é minha! Tanto me empenhei em incutir-lhe a pontualidade que o pobre rapaz agora sofre com o todo o excesso que integrou em si.

Parei o carro junto ao ginásio e vi-lhe um esgar de aflição.
- Oh pááá... Esqueci-me da mochila do treino na escola, mãe!-
- Sem stress, baby. Vamos buscar.-
Fizemos o caminho de volta, entre Vila Real de Santo António e Castro Marim, para depois regressar. E ele, muito atrapalhado com o transtorno que pensava estar a causar-me, ia alternando as desculpas com resmungos contra si próprio.
- Importas-te de parar, filho? Já te disse que não há problema: vamos buscar a mochila, regressamos a tempo e ainda me deste um presente!-
- Hã? Um presente?-
- Olha para a esquerda, amor...-

Adoro passar nesse bocadinho de estrada, especialmente naquele sentido e à hora do pôr do sol. Há qualquer coisa inexplicável na felicidade que sinto ao percorrer aquela mágica distância em que o sol se reflecte na água, emoldurada por colinas ao fundo. Desisti de tentar justificar o fenómeno, optando apenas por subir ligeiramente o volume da música e me deixar levar pelo estado nirvânico.

No regresso estendi-lhe o iPhone.
- Tira fotografias, Tom, para a crónica de amanhã.-
E ele tirou, talvez rendido também ao misticismo do sol a esconder-se no sapal.

Tenho que arranjar maneira de lhe arrancar o sofrimento do excesso de pontualidade. Ser pontual é uma riqueza pessoal, desde que não nos deixemos tomar pela sua escravidão. Há muitas situações em que uns minutos de atraso são mais que justificáveis pela alegria sentida ao observar a paisagem...

Ana Amorim Dias