(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

11.10.13

Avô surfista

Avô surfista

- Mãe?-
- Hum...-
- Eu já posso ter sido outra pessoa?-
- Se considerarmos a reencarnação como uma hipótese válida, sim.-
- Hã?-
- Os budistas, por exemplo, acreditam que cada Ser vai voltando em novas vidas, uma e outra vez, até aprender todas as lições.-
- Mãe?-
- Hum?-
- Eu posso ter sido teu pai?-
- Não João, que disparate. Não te lembras de brincar com ele? Como é que podiam estar os dois vivos ao mesmo tempo?-
- Pois.-
Repousa numa meditativa pausa e recomeça.
- Mãe? Tu não tinhas um avô escultor?-
- Sim, o pai do meu pai.-
- Hummmm, então é por isso que eu também sou escultor: eu já fui o teu avô!-

Vá lá que agora já se esqueceu, mas quase desesperei ao longo dos dias seguintes...

- Mãe traz-me água!-
- Vai tu buscar.-
- Tens que fazer o que eu digo porque eu já fui teu avô!-

Ana Amorim Dias


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One way ticket

One way ticket

O destino não é longínquo. Nem sequer muito exótico. Não deixa a antecipação entusiasta da excitação, mas não deixa de ser interessante (quando "embarcamos" no/com o espírito certo, tudo pode revelar interesse).
Como tornar, então, uma primeira ida a Marrakesh, numa experiência um pouco mais desafiante e enriquecedora? Ir na companhia de alguém leve, divertido, minimalista, e de espírito aberto. E ir sem data nem bilhetes para um regresso que será, em si mesmo, a viagem. Não sei quando volto, nem como, nem por onde. Nem me importa.
E isto leva-me à questão da preparação. Segundo o meu pai, por exemplo, as viagens têm que ser preparadas, estudadas, planificadas ao máximo. Eu costumava achar o mesmo. Mas fui descobrindo que o excesso de planificação lhes rouba a espontaneidade, a possibilidade de súbitas mudanças de rumo; desvirtua-lhes muito o sabor por espartilhar sem razão, e pode conduzir-nos à perda de experiências únicas. É preciso partir, preparado e conhecedor sim, mas leve de bagagens e imutáveis planos.
As viagens continuam a ser, para mim, um dos melhores temas para as analogias à vida. Tento não espartilhar demasiado a minha, não a formatando com os planos que vejo toda a gente fazer. Não quer dizer que os novos desafios e mudanças de rumo que aceito tomar não me coloquem um frio no estômago, acelerando o coração. Mas penso sempre que, depois de transposta cada nova barreira, outras maiores podem vir que saberei superá-las, construindo-me um pouco mais.
Se pensarmos bem, a vida é um bilhete só de ida em que o "regresso" ao grande desconhecido é a própria viagem. E não posso impedir-me de pensar que, por mais que a tentemos preparar, ela só faz sentido se nos prepararmos a nós mesmos para o mais absoluto imprevisto.

Ana Amorim Dias


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Precisava do livro

Precisava do livro rapidamente. Encomendei na wook e paguei a taxa de urgência. De imediato recebi por mail a confirmação de pagamento e a informação de que estava a ser expedida.
No dia seguinte, quase às dez da noite, ligam-me dos ctt de Albufeira.
- Tentámos proceder à entrega de uma encomenda para a morada (...) , mas precisamos do número da porta e nome da rua.
- A morada está correta e completa. Isto é uma quinta, não tem nome de rua e muito menos número de porta.- respondi.
- Dê-nos o seu contacto telefónico para nos prestar mais informações amanhã.-
- Meu senhor... Está a ligar para mim. Certo?-

Uma semana depois, e ainda sem o livro, continuo a tentar perceber o que se passou, apesar de me explicarem desta forma os factos:
"Acusamos a receção da sua mensagem que desde já mereceu a nossa melhor atenção.
No seguimento do seu contacto relativo à encomenda nº 1945254 verificamos que a mesma foi expedida no dia 01/10 com o nº de objeto EA651416675PT; existiu uma tentativa de entrega sem sucesso nos dias 02 e 03/10 por motivo de "Endereço incorreto ou insuficiente".
Nesta situação, o procedimento a ser efetuado pelo estafeta, de acordo com os parâmetros do serviço ?tipo de envio" deverá ser proceder à devolução imediata; a encomenda não fica avisada na estação na estação dos correios, um vez que o estafeta não teria conhecimento do local onde deixar o aviso na caixa do correio.
Pelo exposto, a encomenda encontra-se em processo de devolução; quando chegar às nossas instalações será notificado por e-mail relativamente ao procedimento de reenvio."

"Morada incorreta e insuficiente"? Querem ver que ando, há anos, a receber correspondência e encomendas devido às artes divinatórias de quem as entrega??
"Parâmetros de serviço"? De que me interessa essa merda se, mesmo pagando a taxa de urgência, estão a proceder como se eu estivesse escondida num mosteiro perdido nos confins do Nepal?

Há muita gente a exercer as suas funções com esforço, competência e diligência, mas também há muitos que apenas gozam com as entidades empregadoras e seus clientes.
Não faço ideia quem foi o estafeta/besta que não "conseguiu" entregar uma encomenda numa morada correta e completa, mas sei que, se trabalhasse para mim, hoje já poderia dormir até mais tarde.

A incompetência natural é triste. Mas a incompetência propositada, essa, é um flagelo contra o qual nunca devemos deixar de lutar!

Ana Amorim Dias


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Em modo criança

Em modo criança

A gritaria que vinha da casa de banho estava a ser abafada pelo alto som da aparelhagem da cozinha.
Enquanto eu partia o pão, o Tomás passou a correr, todo nu. O João chamou-me, da banheira. As gargalhadas eram agora mais sonoras que a música.
- O que foi João?-
E então, ao entrar na casa de banho em derrapagem, percebi que mais valia ter calçado as galochas...
- O Tomás anda a "pregar-me" sustos...- respondeu, com o chuveiro em riste, meio escondido atrás das cortinas.
- E tu defendeste-te com chuveiradas, já vi!- chão, paredes, móveis: tudo parecia ter estado numa tempestade.
Tive que pensar depressa. "Passo-me ou não??"
E, de repente, vi-me em versão criança, a saltar convicta nas poças que a chuva deixava...
- Vá, já chega de banho. Vistam-se e venham para a mesa.- "É só água, e a água seca!"

Muitas vezes a melhor forma de lidar com crianças é lembrarmo-nos de quando o éramos plenamente; entrar no seu mundo e ficar um pouco por lá. Talvez seja por me ter lembrado bem disto que, ainda há pouco, consegui convencer o João a despachar-se num ápice: fiquei à porta do seu quarto com ar de desafio. Quando tive a sua atenção, tirei, com ar teatral, um carrinho do meu bolso e passei-o pela porta.
- Tu! E eu! Daqui a cinco minutos no chão da sala! Escolhe o teu carrinho, que o meu já está escolhido!-
Os olhos dele brilharam.
- Mas só se estiveres completamente pronto para ir para escola...-

Sim, a melhor maneira de os "vencermos" é mesmo juntarmo-nos a eles!!

Ana Amorim Dias

Segunda de manhã

Segunda de manhã

Gosto de fórmulas simples para medir coisas complicadas. A fórmula de segunda feira de manhã é uma delas. Talvez a leitura do que se segue vos venha a deixar com algum aperto no coração mas, pelos meus cálculos, se ficarem a pensar no caso, é bem possível que, num futuro mais ou menos próximo, isso venha a dar alguns frutos.

- O que é que queres fazer todos os dias da tua vida?- é o que, ultimamente, ando a perguntar a toda a gente.
- Hã? Que raio de pergunta é essa?-
- Vá, diz lá. Qual seria a ocupação que te faria levantar feliz cada manhã?-
- Olha... Não sei...-
"Pois, o problema é esse!"
- Então despacha-te, descobre e começa a lutar por isso!-

Às vezes tenho a sensação que sou uma réplica de Hércules. O trabalho nunca me assustou e abuso. Abuso e abuso. Abuso feliz porque não trabalho, vivo! Há labutas que me ocupam os dias e que trazem o dinheiro. E há labutas que me ocupam os dias não trazendo qualquer rendimento. Faço tudo. Feliz. E, fartando-me de trabalhar, nunca tenho a sensação de o fazer.

Mas desculpem! Devem estar curiosos. Voltemos à tal formula!
"Quem vive a segunda feira de manhã com o mesmo júbilo da sexta à tarde, não anda a desperdiçar a vida!" É simples!

Assim que saí da faculdade e casei e precisei de começar a sustentar-me, percebi que teria de lutar heroicamente para conseguir criar as condições certas para ganhar dinheiro sendo feliz. Felizmente tal princípio nunca deixou de nortear os meus passos, as minhas escolhas. Considero-me sábia, corajosa e sortuda por isso.
É mesmo preciso coragem... e estar preparado para enfrentar a escassez. É preciso nunca perder a noção do real valor do dinheiro; saber viver com quase nada; saber perder... Mas, bem feitas as contas, no balanço destes dezasseis anos de vida ativa, posso garantir que sempre adorei as segundas feiras. E as terças. E todos os dias da semana. Sempre adorei as manhãs, as tardes e as noites. Posso ter muito, pouco, ou estar no limiar do colapso financeiro, mas não me afasto nunca do fundamental: ser feliz no que faço. Posso comandar equipas e brilhar em competência, ou posso enfrentar a sós, só com uma pá e vassoura, centenas de metros quadrados de chão, mas faço tudo com a mesma felicidade inebriante de quem se deleita com cada passo do caminho.

Desculpem se vos deixo alguma angústia, mas é para e pelo bem! É que ser capaz de adorar cada manhã de segunda feira, é uma das maiores conquistas da vida. Fiquem a pensar nisto, por favor!

- Diz lá: o que é que queres fazer todos os dias da tua vida?

Ana Amorim Dias

Uma casa de pantanas

Uma casa de "pantanas"

Percorro o corredor com preguiça. Espreito o quarto do Tom e abano a cabeça à desordem. Continuo a andar e passo pelo quarto do João. Estremeço com o caos. Finalmente, ao chegar ao meu, começo-me a rir.
"O teu está quase tão mau como o deles, Ana!"
"E depois? Que se lixe a arrumação! Hoje é domingo e haverá paz...mesmo com tudo de "pantanas"!"
Atiro-me para cima da cama desfeita e suspiro, feliz. O que me importa é que, dentro de mim, seja domingo ou outro dia qualquer, costuma estar tudo arrumado...

Ana Amorim Dias


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Como funciona

Como funciona

Estava a conduzir e fui atingida. O pensamento chegou como o primeiro relâmpago de uma forte trovoada.
" E se tivesses que explicar como funciona o Mundo? "
" Hã!? "
" Sim. Imagina que estavas a ser entrevistada por um extraterrestre e tinhas que explicar, em poucas palavras, como é que o Mundo funciona!"
" Ai caneco!..."

A tempestade começara! Continuei a guiar sabendo que já não podia sair dela. Entrei na rotunda, com atenção e cuidado, dei pisca, saí e, com a consciência plena das ações do meu corpo, permiti que a imaginação fosse para o espaço.

O extraterrestre tinha um ar bastante simpático e o ambiente era confortável. O único problema era a questão que me estava a ser colocada.
- Ana Amorim Dias, muito obrigada por ter aceite o nosso convite. Gostaríamos que explicasse ao nosso povo como é que o vosso planeta funciona.-
- Eh... pois. O nosso planeta...-
" És mesmo maluca! Tu metes-te em cada uma...!!

Reparo que todos os carros me estão a ultrapassar. Volto ao ritmo normal.

- O nosso planeta funciona com as mesmas regras físicas e químicas que o vosso. É um planeta muito belo em que a natureza, ao sair dos eixos, tem os seus próprios e eficazes métodos de regressar à harmonia...-
- E a vossa espécie? Como funciona?-
- A história da humanidade está quase toda na internet, é só irem lá consultar, o que posso fazer é dar uma opinião muito geral...-
- Parece-me bem. - comentou o encantador ser.
- A humanidade anda esquecida de como ser feliz. Desligou-se da natureza e higienizou-se demais, tornando-se muito indefesa. Os Homens vendem a vida em profissões de que não gostam, a troco de dinheiro que usam para comprar coisas de que não precisam e que, ao adquirir, lhes acentuam a sensação de vazio. Vendem a vida por dinheiro sem tentar sequer perceber qual é o ofício da sua alma. Trocam o SER pelo TER e, com isso, ganham inimigos, guerras, doenças e mutilam o seu íntimo com sentimentos absurdos. Passam o tempo a sonhar com o "depois" à espera que a plenitude lhes chegue, na forma de algo ou alguém, e ignoram por completo a responsabilidade de serem plenos no "agora"...
- Oh céus... Precisam da nossa ajuda? Ainda há esperança para vós?-
E aí vem-me o sorriso.
- Há cada vez mais gente no Mundo a saber tudo isto com uma certeza ancestral. E depois temos um poderosíssimo aliado!...-
- Quem!?-
- O amor. O mais puro e profundo amor, a nós mesmos e ao próximo!-
- Waow!!!- disse o extraterrestre enquanto eu estacionava o carro, sã e salva, cá na Quinta.

Ana Amorim Dias

O espaço da paixão

O espaço da paixão


Saímos do restaurante e eu vinha a fazer um teatro tão cómico que ele, instintivamente, abraçou-me.

- Estou cada vez mais apaixonada por ti!- digo-lhe, de vez em quando, ao admirar este pequeno matulão com quem sinto uma cumplicidade enorme e crescente...
Se for pensar bem no caso, faz-me um certa confusão como é que um Ser, concebido há treze anos por esta altura, já me passa o braço por cima dos ombros e me fala com uma voz que começa (também ela!) a tomar corpo.
- Eu sei, mãe!- costuma responder com orgulho.

Uma coisa é certa: não fazia a mínima ideia da maravilhosa experiência que é ser mãe de um adolescente. Nunca, nem nos meus mais utópicos sonhos, considerei a hipótese de viver um relacionamento tão intenso, significativo e enriquecedor. Sinto-lhe o orgulho e encantamento por mim. Sinto-lhe a compreensão de quem sou, do que quero e da forma como funciono. Sinto uma conexão forjada em genes e alicerçada num diário "trabalho" de criação de uma relação abençoada.
Dizem que o ambiente familiar é crucial para se crescer feliz. Sem dúvida. No meu caso, a nossa vida a quatro tem que ser sólida e amorosa para se conseguir algo assim. Mas começo a perceber que o tempo que cada progenitor passa a sós com cada um dos seus filhos é também fundamental para a construção de cada um!

Às vezes fugimos só os dois, o Tomás e eu. Não importa para onde nem durante quanto tempo nem a fazer o quê. Fugimos para o porto seguro um do outro; para aquele espaço só nosso, onde, com gargalhadas soltas e olhares cúmplices que dispensam palavras, vamos construindo esta paixão que cada dia é maior.

Corro o risco de ser invasiva mas, ainda assim, atrevo-me a sugerir a quem tenha filhos, que experimente "fugir", a sós com cada um deles, para um espaço temporal só dos dois: para aquele espaço mágico em que as paixões ganham forma.

Ana Amorim Dias

Para nos lembrar

Para nos lembrar

Quando me apercebi, aquele telefonema já não era apenas o breve momento em que ela me perguntava pelas novidades.

- Ai, Ana! Fico tão feliz! Ainda bem que pude ajudar.- disse-me, toda contente.
Conhecemos-nos desde miúdas e, embora longos períodos passem sem que as nossas vidas se cruzem, não quer dizer que não se toquem. E que não nos emocionemos com isso.
Avançámos para o habitual mar de disparates, piadas e gargalhadas em que tão bem nadamos juntas... até que a conversa ganhou novos rumos, como que com vida própria.
- A melhor maneira de começares a arrebitar, querida, é perguntares a ti mesma: "Como quero que seja a minha vida?", "qual é a minha missão?"- disse-lhe eu.
- Pois. Isso eu ainda não descobri...-
- Nem tu nem oitenta por cento da população mundial. Por isso não fiques triste. Mas também não desistas da busca...-
- E tu, Ana? Como queres a tua vida?-
Rompo em gargalhadas. Como começar a explicar-lhe??
- A minha grande vantagem é saber isso com uma nitidez de alta definição! Quero escrever e emocionar-me, escrever e emocionar-me, emocionar-me e escrever!! Quero poder fazê-lo e partir por aí, pelo mundo, tendo sempre para onde voltar; quero conhecer muita gente porque é esse o meu barro; trabalhar com pessoas despertas e criativas... O que me move não é o dinheiro, e muito menos a fama. Mas batalho todos os dias por conseguir habitar, cada vez mais, numa vida emocionante e repleta de novas experiências.-
Nesta altura já não conseguia parar. A grande vantagem de ter interlocutores inteligentes é o facto de nos desafiarem a descobrirmos-nos enquanto falamos.
- A verdade é simples, Diana: ser rico não é ter muito dinheiro, é viver os dias todos como se fossem a realização dos nossos mais incríveis sonhos; é ter a força anímica de lutar para que assim seja; é desejar aprender sempre mais, conhecer sempre mais. E, se me perguntares, a pobreza mais profunda é a da imobilidade. Quem se rende ao desânimo, à inércia e à falta de curiosidade, pode ter todo o dinheiro do mundo mas é como se já estivesse morto... -

Bastante tempo depois, ao desligar o telefone, prometemo-nos voltar a falar em breve. E eu prometi-me lutar por nunca esquecer que estou aqui para nos lembrar...

Ana Amorim Dias

Chaves universais

Chaves universais

- Obrigada mais uma vez por este bocadinho, Ana!-
- Mas porquê?- perguntei-lhe espantada.
- Uma pessoa com uma vida tão cheia, que anda sempre a mil à hora, e que vem tomar um café, assim demorado, com alguém que nem conhecia... Fico grata.-
- Nada disso, eu é que fico!-
..." Quem usa o seu tempo a ler o que escrevo e a conhecer um pouco de mim e das minhas ideias, merece conhecer-me em pessoa. Faz sentido." Pensei.
- Sabes Dani, isto significa tanto para ti como para mim! Enriquecemos as duas! - só não lhe expliquei foi porquê...


- Explica-me lá outra vez o que são chaves universais.-
E o pai explicou-lhe.
Fiquei a ouvi-los a debater os usos de tais chaves e, instantaneamente, assumi que todos temos uma dentro de nós. Uma chave colossal. Universal. Mestra. E que pode fazer de nós mestres. Uma chave feita de alma e coração, de energia e atenção. A nossa chave mestra é feita de tempo e vontade. É a chave do olhar e da entrega.
A chave com a qual conseguimos entrar no coração dos outros.
A chave mestra capaz de fazer de nós mestres...

Ana Amorim Dias


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Canais

Canais

À tarde já tínhamos falado bastante mas, à noite, apeteceu-me ligar-lhe de novo.
Falámos de tudo e de nada. De coisas importantes e de outras, sem importância alguma. Rimos. Partilhámos. Namorámos.

- Estive a dar muito mimo à minha mãe...-
- E porquê?-
- Faziam anos de casados hoje, ela e o meu pai... Foi como um presentinho dele para ela, sabes? ... Através de mim. - um curto silêncio uso a mais sentida voz de beicinho: - ...tenho saudades dele...-
- Como te entendo. Mas não te esqueças: mimares a tua mãe é como mimá-lo a ele!-

Sei que sim. E sei que muitas vezes apenas somos canais de mensagens fortes que inspiram a um novos alentos. Quer saibamos ou nem por isso, fazemos parte de uma vasta cadeia de transições amorosas que talvez apenas digam: "Não me vês mas estou aqui. E Amo-te...tanto como sempre foi e será."

Ana Amorim Dias
(Foto: Nelspruit, lua de mel)


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Super vilã

Super vilã

Ter que castigá-lo estava a partir-me o coração. Íamos ao centro comercial, o que alicia qualquer consumista criaturinha e, ao ver-se na iminência de ser obrigado a ficar em casa, usou de todos os expedientes para me demover da decisão.
- Já disse que ficas de castigo e não vais, João! E é bom que entendas as razões! No fim de semana passado deixaste os trabalhos da escola para segunda de manhã e este fim de semana nem sequer trouxeste os livros da escola para casa?? Tens que compreender que estás no mau caminho e é bom que te habitues à ideia de mudar depressa essa tua postura!-
- Mas mãe...- e abraçava-me muito, o pequeno manipulador!
- Já te disse, amor: não vais porque tens que começar a sentir as consequências das tuas más escolhas!-
- Pois fica sabendo que TU és uma Super Vilã!!!-
Quando se deu por vencido e lhe estalou o verniz da esperançosa simpatia, tive que me conter muito para não romper em gargalhadas.

Encantou-me a imagem de super vilã, confesso. E fui pronta na resposta:
- Sabes quem faz os Super Heróis, meu amor? São os Super Vilões! Estes é que lhes despertam os seus super poderes! Por isso agora põe-te a estudar e até logo!-

Não consigo manter muito tempo a minha capa de super vilã... Mas sei que a envergarei sempre que ela se revele crucial para activação dos surpreendentes poderes dos meus mais amados heróis!

Ana Amorim Dias


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Horário de voo

Horário de voo

Domingo. Dez da manhã. O Gordon Haskell canta-me "al capone" diretamente aos ouvidos para abafar o som dos cartoons com que os putos se entretêm, a "jiboiar" no sofá.
Estou a trabalhar no computador desde as oito e pouco. Tenho sono mas ignoro-o. Olho pela janela. Perco-me no verde banhado pela luz do outono. Perco-me na graça que vejo nos irónicos episódios com que os dias nos presenteiam...

- Já decidi: vou definir o meu horário de trabalho. Por exemplo, das nove às cinco, como qualquer pessoa normal, e depois fico livre!-
- dizia-me, ontem, o Ricardo.
- Pois, somos ambos livres de o fazer, realmente... Mas como se pode espartilhar o horário de voo de um pássaro?...
- É uma simples questão de organização, Ana.-
- A vida é tua, o horário é teu, acho bem. Quanto ao meu, não posso nem quero alterá-lo: desde que acordo até que adormeço!

- Baixem o som da televisão, não volto a repetir!!-
A música do iPad também me está a irritar. Noto que o vidro está sujo. "Admite, Ana: estás com birra de sono!"

Ele entrou no quarto um pouco depois das duas.
- Não chega, já?- perguntou cuidadosamente, para não despertar a fera que por vezes nasce em mim quando me arrancam do limbo da criação.
Ignorei. Continuei. Não me apetecia parar. "Dormir é para os fracos".

Volto a olhar pela janela. Várias aves bailam, completamente felizes, por entre suaves sopros de chuva.
"Não se pode condicionar o voo das aves livres, mas elas quando têm sono, dormem, Ana!"

Ana Amorim Dias



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Trabalho e sorte

Trabalho e sorte

- Sabes? Eu não acredito muito nisso da sorte...-
- Como assim?-
- As pessoas não chegam ao sucesso e à concretização pessoal por sorte; chegam lá com esforço e muito trabalho!-
- Sim, está bem, mas a sorte ajuda!- contraponho.
- Não percebes que sem trabalho, a sorte não acontece?-
Não respondo, fico a pensar.
- Aquilo a que as pessoas chamam de "sorte" é necessariamente a soma do trabalho, do génio e das hipóteses que se agarram! - continua ele.
- Mas por exemplo, tudo o que temos criado juntos... Deve-se à sorte de ter visto um dia a tua fotografia! Se não fosse isso não havia biografia, nem documentários, nem entrevistas, nem o futuro filme...- replico.
- Lembras-te de já te ter falado da teoria do azar concorrente, do Lezama Lima, certo? -
- Sim, claro...-
- Veres a fotografia não foi sorte. Milhares de pessoas já a viram e não fizeram nada, percebes? O que já criamos juntos vem de todo o meu trabalho e da tua grande dedicação e busca permanentes; vem das nossas escolhas e ações; vem dos nossos génios!-
- Eric?-
- Hum?-
- Agrada-me essa ideia... e sinto-me tão criativa que vamos estar cheios de sorte! Obrigada!
- De nada, "cerebrozito fértil".

Ana Amorim Dias


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