(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

28.9.13

Viagem ao centro dos Mundos

Viagem ao centro dos mundos

Para onde se fazem, afinal, as maiores viagens?
Não estou a falar das mais espectaculares, nem das de maior estilo, ou aventura, ou custo. Não me refiro às viagens mais longas nem sequer às que melhor guardamos na memória...
As maiores viagens fazem-se sempre por dentro e para dentro. De nós, claro. Podemos ir ao cabo do Mundo, ver coisas de assombro e gastar astronómicas quantias. Podemos à vila mais próxima e não ver nada de novo, gastando muito pouco. E pouco importa. As grandes e mais marcantes viagens são sempre feitas cá dentro.

- A tua viagem de volta Mundo, sabes, eu fi-la em Paris...-
- Ah oui? -
- Sim. Em Janeiro de 2011, quando aqui estive sozinha: foi o meu ponto de viragem; o renascer das cinzas; a compreensão acabada do sentido da minha vida e início do derradeiro regresso a mim... Tal como te começou a acontecer a ti, algures entre Kiev e Vladivostok. Dessa viagem nasceu o livro "ZOIA" e renasci eu, reinventada por mim.
- Que sorte! Conseguiste fazê-lo tão perto?-
- A verdade é que poderia tê-lo feito no sofá da minha sala... As grandes viagens são sempre ao centro do Mundo, do nosso mundo interior. E eu tenho sorte. Todos os dias viajo e me reinvento...Sou escritora.

Ana Amorim Dias

Sent with Writer.

Concretização

Concretização

Comemos mais ou menos em silêncio. Eu, pelo menos, abstraio-me um pouco da conversa técnica e voo para dentro. Tenho as ideias muito bem definidas no pensamento e nas várias páginas de rascunhos, escritas em três línguas diferentes, cujos rabiscos apenas eu consigo decifrar. É de suma importância que os meus planos para o documentários sejam aceites. Sei qual é o caminho para criar um produto que inspire, emocione e deixe as pessoas a pensar. Faço-o constantemente em poucas palavras escritas e mais fácil será fazê-lo com imagens, música, entrevista e movimento.
"Porque tens essa maldita mania de que a tua visão é a mais eficiente?", pergunto-me. "Terei em mim assim tanto de ditadora?"
- Ana?-
- Oui?...-
Tenho que regressar do limbo dos pensamentos. Começo por explicar que é imperativo que paremos de divagar e comecemos a assentar finalmente toda a estrutura do que se vai fazer. Se os consigo aliciar a seguir o caminho que quero tomar? Não sei. Mas que tenho de nos fazer a todos partir para a concretização, disso não tenho quaisquer dúvidas.

Ana Amorim Dias

Ps- A longa reunião terminou sem que eu tenha conseguido publicar a crónica, o que me dá agora a oportunidade de acrescentar: foi tudo aceite...acho que acabarei de escrever o meu primeiro documentário exatamente como quero!! Yesss!

Sent with Writer.

Ver a vida passar

Ver a vida passar

- Merci! - Digo ao músico de rua enquanto lhe ponho dinheiro no chapéu.
Sentada num banco, numa ponte sobre o Sena, delicio-me uns momentos com as músicas dele. Era imperativo agradecer-lhe.
Sigo o meu caminho sozinha, renovadamente encantada com a maravilhosa atmosfera. Devia estar a escrever, a preparar os textos para as reuniões de amanhã, mas tudo o que me ocorre é o que vos quero dizer a vocês. E por isso passeio, completamente sem rumo, tomando aleatoriamente as ruas e condensando em mim emoções e impressões enquanto me vai nascendo a crónica.

- Porque os anos passaram e não os vi passar!...- Dizia-me esta manhã o Eric.
- E já pensaste que se estivesses cheio de atenção, a observá-los a passar, não terias vivido nada? Se calhar é mesmo esse o truque: estarmos tão empenhados em viver intensamente quem nem vemos a vida a passar. Isto soa-me maravilhosamente, se queres que te diga!- respondi-lhe.

Observo as parisienses, impecavelmente arranjadas, e pergunto-me se algum incauto ser me tomaria por uma. Não me parece, sinto-me demasiado selvagem e livre de quaisquer grilhões para poder criar semelhante confusão. E de repente, observando os outros e fazendo o mesmo a mim própria, apercebo-me que, afinal, a viagem da vida pode muito bem conciliar-se com a contemplação da passagem dos anos. De facto isso até a intensifica. Da mesma forma que a música de rua nos traz mais emoção aos passeios.

Ana Amorim Dias


Sent with Writer.

Parada em Paris

Parada em Paris

Uma reunião matinal, na qual a explanação das minhas visões para um documentário quase me gasta a voz. Um almoço leve no Sir Winston e as longas e profundas conversas com a personagem real sobre a qual o meu último livro foi escrito. A tarde passada numa esplanada, sob o sol parisiense, a rever cortes e ajustes na biografia. A certeza de um jantar de trabalho com a directora artística e o produtor do documentário que antecederá o filme sobre a grande viagem do Eric. E, no meio de tudo isto, apercebo-me de que estou demasiado quieta. A cabeça fervilha e a criatividade exulta, mas não estou a passear.
Estar parada em Paris vai contra os meus princípios. Chega-me, entretanto, o ensinamento de que existem valores superiores que alteram as regras. Começo Paris minimamente bem . O que ainda não conheço totalmente são os confins das minhas capacidades e o que me podem levar a atingir. Deixo-me ficar quieta no espaço, tranquila por perceber que, mesmo imóvel, estou a viajar na minha própria expansão.

Ana Amorim Dias


Sent with Writer.

Brincar com pensamentos

Brincar com pensamentos

- Mãe?-
- Hum?-
- Ai, desculpa, estás a escrever a crónica...-
O João é reguila e, quando quer atenção, não desiste de a reclamar, mas tem a engraçada capacidade de respeitar sempre o calado espaço da minha escrita.
- Porque é que escreves, mami?-
- Porque é que brincas, João?-
- Porque gosto e é divertido!-
- Bem, eu escrevo pela mesma razão: gosto e é divertido. É como se brincasse com os meus pensamentos e isso faz-me muiiiiito feliz.-

Estou em vias de trocar de novo o horário da criação e publicação das diárias crónicas para o início da manhã, agora que a "loucura" do Verão me começa a abandonar os dias. Mas a verdade é que o horário da efetiva criação me é indiferente: já percebi há muito tempo que passo os dias inteiros com muita atenção à vida, a "brincar" à criação com pensamentos que dão outro sabor aos nossos (agradeço-vos por isso) dias.
Fico enternecida com a perceção deste filho irrequieto que só sabe parar de falar quando me vê a escrever. E concluo que quando fazemos exatamente aquilo que o Universo nos "manda", todas as forças conspiram para que o façamos mais... e melhor.

Ana Amorim Dias


Sent with Writer.

O corpo que se aguente

O corpo que se aguente!

Terminei o dia de trabalho à uma da manhã e nem me passou pela cabeça recusar a visita de amigas que chegaram pouco depois. Deitei-me algumas (demasiadas) horas mais tarde, com a garganta dorida de tanto rir e falar. E então dormi, mas pouco: acordei cedo, na urgência de ir para o mar que me chamava com um rugido excitante.
À tarde, tombada na cama, ocorreu-me que viver demais cansa o corpo. Viver muito e intensamente, acaba por trazer algumas "faturas" de desgaste e cansaço, é inevitável. Mas enquanto as pálpebras ameaçavam cerrar-se e eu teimava em manter-me acordada, teci outras considerações: será que quanto mais o corpo se gasta, mais a alma se constrói? Não será com algumas doses de insegurança, esforço, desgaste e desconforto físico que a essência mais floresce?

A vida real arrancou-me das considerações e do descanso. E agora, horas mais tarde, recordo parte de uma das muitas conversas de ontem à noite...
- O que temos de mais precioso é mesmo a nossa saúde.- disse uma das minhas amigas.
- Desculpa mas não concordo. - reclamei - O corpo envelhece, gasta-se, desmaterializa-se... Isto é um facto! Eu, pelo contrário, acredito que o nosso bem mais preciso é a alma porque, essa, é indestrutível.-

Percebo que, apesar de cansada, não me apetece deixar que o corpo se renda já ao final de mais um dia: a alma quer divertir-se mais um pouco; o corpo que se aguente!

Ana Amorim Dias

Sent with Writer.

O gene da luz

O gene da luz

Cheguei à Quinta e vi que as luzes da casa de banho do salão grande tinham ficado acesas. Deixei os miúdos em casa, caminhei para lá, desliguei tudo, fechei a porta atrás de mim e dirigi-me para casa. Podia ter caminhado pelo comprido alpendre, completamente escuro, ou pela estrada, iluminada pelo reflexo solar da lua cheia. A escolha foi instintiva: caminhei pela luz. Fiquei com a ideia de que qualquer humano tem em si o gene da luz...daí ter ficado a perguntar-me algo muito simples: se todos temos o instinto de seguir pela luz, porque é que nos empenhamos tanto em "meter-nos" constantemente em "escuridões"? A sério, não percebo!

Ana Amorim Dias

Sent with Writer.


Enviado via iPad

Memória externa

Memória externa

Corri tudo. Vasculhei todos os locais onde ela poderia estar. Subi escadas. Desci escadas. Virei salas, escritório, armários e gavetas. Quando comecei a avaliar as perdas o coração encolheu. Milhares de músicas e fotografias, e incontáveis horas de trabalho.
"Pára, criatura! Respira fundo. Uma memória externa não se desmaterializa!" E, ao parar no meio da sala, olhei em volta e lá estava ela. Em cima de uma prateleira, mesmo em frente à minha cara, a desafiar-me com ar de gozo.
Ora no momento em que a irritação se foi, chegou a reflexão... Sou do tempo (sim, mesmo tendo só 39 anos, com o ritmo evolutivo destas últimas décadas, sinto-me no direito de falar assim!) em que as memórias se guardavam no cérebro (e coração?!) e, quanto muito, tínhamos álbuns de fotografias, blocos de notas e outros artefactos similares para nos ajudarem a reter a vida já vivida.
Nos dias que correm, quando perdemos a memória externa, sentimo-nos lobotomizados, profanados de grande parte da nossa identidade, reféns de uma existência que ficou, mais do que coxa, amputada.
Será inteligente depositarmos partes tão importantes das nossas vidas em pequeninas caixas de megabites? A não ser aí, onde as guardaríamos, então? Na cabeça (e coração) por vezes tantas memórias não cabem, e escorrem, fugidias, para um qualquer limbo perdido, só voltando à consciência quando se vêem as fotos, ouvem as músicas ou lêem os textos.
Quando eu era miúda, tiravam-se fotografias nas ocasiões especiais. Hoje qualquer momento bom é registado. E se temos a possibilidade de ver, tempos depois, milhares e milhares de imagens que nos fazem reviver outras tantas vivências especiais, devemos rejubilar por isso! A memória externa é algo genialmente fabuloso que cumpre bem a função de nos fazer mais perfeitos, por isso vou comprar outra e guardar duplamente tudo para não apanhar mais sustos!

Ana Amorim Dias



Sent with Writer.

Algo bem melhor

Algo bem melhor

Liguei-lhe tão aflita que o pobre rapaz ficou a pensar que eu estava com um problema sério.
- Tem calma! O que foi?- perguntou-me.
- Foi que estive duas horas a entrar em todas as lojas deste maldito centro comercial e não encontrei as botas pretas de que preciso!!-
- Êh pá... Isso é grave!- (ele conhece-me tão bem) - Porque não esperas pela loja de peles que vem sempre à feira de Faro? Lá deves encontrar o que procuras...-
- Mas preciso das botas para levar a Paris, daqui a uns dias!!-
- E porque não tiramos amanhã o dia para as procurar melhor noutros centros comerciais?-

Não é uma rendição à sociedade de consumo, mas como preciso mesmo das botas disse-lhe logo que sim. Passámos a manhã em busca das esquivas botas pretas que tenho em mente e que teimam em não me aparecer, até que as praias começaram a "chamar" por nós. Rendi-me, um pouco dececionada, à evidência dos factos: provavelmente não levarei botas novas.
Regressámos a casa sem as ditas cujas mas felizes devido a um dia maravilhosamente passado. E foi então que me lembrei: as deceções costumam ser apenas uma conspiração do Universo para algo bem melhor!

Ana Amorim Dias

Sent with Writer.

Indomáveis

Indomáveis

Pensando agora mais friamente no caso, percebo que só não lhe bati por me ter revisto nele.

Cinco da tarde. Lanchou e saiu de casa, avisando que ia andar de bicicleta. Eu fui trabalhar um pouco no computador e acabei por cair num sono leve e, não sei porquê, inquieto.
Despertei quase às sete.
- Tomás, viste o João?-
- Não, mãe, ainda não voltou.-
Saí de casa. Chamei e chamei. Nada. Não estava a pescar na barragem, nem na casa da árvore nem sequer na vazia casa da avó. A bicicleta abandonada nos estábulos. Voltei a chamar. Com o coração aos saltos fui procurá-lo de carro e concluí que na Quinta não estava. Algo me dizia que com a avó também não estaria mas liguei-lhe mesmo assim.
- Estou numa reunião,- disse-me ela - mas ia telefonar-te mesmo agora: ligaram-me agora a dizer que o viram para os lados do Montinho.
Segui para lá a voar.
E lá vinha ele, pelo lado errado da estrada, a ouvir música no (inativo) telemóvel, com um cão rafeiro ao seu lado.
- Em que estavas tu a pensar, João? Não te ocorreu que eu podia estar a morrer de preocupação?-
- Então, apeteceu-me passear e fui ao café do Montinho (são quinze minutos a andar pela estrada) beber um sumo...- respondeu como quem acha que não fez nada de mal.
E eu, que estava demasiado assustada para ser racional, decidi dar-lhe de imediato alguns castigos.

- Percebeste agora, João?-
- Sim, mãe, o meu território por enquanto é só a Quinta...-
Acabei de lhe explicar há dez minutos que no Mundo também há gente má (infelizmente teve que ser) e de lhe fazer ver que compreendo e valorizo a sua grande autonomia e sede de liberdade (de quem a terá herdado?) mas que apenas devemos explorar territórios cujos perigos estamos já preparados para enfrentar.
- Se aos dezoito me disseres que queres ir conhecer o Mundo, eu vou deixar-te ir, filho, mas agora é cedo demais, ainda não é sensato! Eu compreendo essa tua sede de viver, mas tu também tens de tentar compreender a minha preocupação!-
- Pronto, mãe, não saio mais da Quinta sozinho.-

Sei que os genes indomáveis da autonomia e liberdade lhe foram transmitidos por mim, por isso amanhã sem falta vou carregar-lhe o telefone!

Ana Amorim Dias



Sent with Writer.