(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

27.12.12

Mini Mundo




- ... E o Mini Hollywood é tão giro que devias pedir aos teus pais para te levarem lá, Jorginho.-
Com os olhos a brilhar e a boca cheia de frango, perguntou-me:
- É muito longe?
- Não! É mesmo aqui ao lado, por trás da Serra Nevada.-
- Não é longe?!? - interrompeu o Tomás, indignado por me  considerar a enganar-lhe o amigo. - Levamos quase cinco horas para lá chegar!!-
Pousei o garfo e olhei-o nos olhos.
- Por favor, filho! Não penses pequenino! O Mundo é enorme. Se me disseres que a Austrália é longe eu aceito, mas tudo o que se situa na Europa é mesmo aqui ao lado, rapaz!-
    Ficou pensativo e sem me dar resposta, até que o almoço chegou ao fim e tornaram à ruidosa agitação das  suas brincadeiras.
      Eu entretanto saí um pouco. Estiquei as pernas da alma ao volante, sob um céu azul aberto. Engoli por sobremesa as melodias de Andrés Cepeda e mastiguei uma espécie de inveja que quase sinto por quem sabe viver em sossego.
- Porque é que não te contentas com limites confinados? Para quê tanta sede de Mundo? Porque não és feliz sempre aqui, quieta e segura? -
  Desconheço a resposta. Tudo o que sei é que o desassossego de partir me atinge sempre com golpes certeiros, acutilantes, esmagadores. A angústia de querer devorar mais Mundo é mais forte que a razão e, quando me toma de assalto, deixa o travo amargurado das  memórias não nascidas. Mas porquê, caramba? Porque terei que viver sempre nesta  ânsia insaciável?
    "La respuesta suele  estar donde no quiseres mirar...", canta o Andrés. Será que tem razão?
  E então, sob o céu azul de Inverno, outra apoquentação me assola: - Raios te partam, mulher! Tens mesmo que começar a semear já isto nos putos?-

Ana Amorim Dias

Voz de herói em causa própria




  Achei inacreditável! O maldito homem estava mesmo a  ultrapassar quatro carros de seguida com um camião a aproximar-se  vertiginosamente em sentido contrário. Ainda por cima a acabar de sair de uma curva e a entrar numa ponte!

    - Could  you please drive us safely? - ouvi-me a perguntar-lhe bem alto com a voz carregada de indignação. - thank you!-  terminei com a pronuncia mais afectada que me conheço.

    É claro que estávamos todos em risco de perder o ferry de Malta para a Sicilia devido à incompetência do senhor que passou pelos hotéis com uma hora de atraso, mas naquele momento isso era a menor preocupação dos cerca de trinta turistas que, como eu, temiam  não viver para contá-la. Recordo-me de uma senhora pequenina que ia à minha frente, agarrada ao marido, a encolher-se toda com um ar muito aflito. E do ar atarantado dos casais canadianos que seguiam do outro lado. Aguentei-me o mais que pude mas aquela ultrapassagem fez-me saltar a tampa. E o giro é que assim que acabei de me ouvir, percebi que havia falado com a voz de todos os homens e mulheres que tinham permanecido calados. O condutor percebeu que mais valia perdermos o ferry que a vida e abrandou e os meus desconhecidos companheiros trocaram comigo olhares agradecidos, mais relaxados por perceberem que tinham quem os protegesse.
        É comum a incompetência estar associada à antipatia. Desconfio que tal casamento resulta da consciência de que se estão a fazer mal  as coisas e dos ressentimentos que tal facto gera.
  O problema maior é quando essa combinação cria situações de perigo e foi isso que nesse dia aconteceu. Mas o maior perigo que enfrentamos sempre é a nossa vergonha e a nossa escolha de silêncio. O maior perigo das nossas vidas não resulta da incompetência alheia e sim da nossa socialmente correta inércia. Em assuntos sem importância, o silêncio é sem dúvida o melhor e mais  eficiente remédio, característico de pessoas de classe e com boa formação, mas quando o assunto é grave, nada melhor que levantar a nossa voz e sermos heróis em causa própria.

Ana Amorim Dias