(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

18.8.13

Território inacessível

Território inacessível

Reparei na forma como estava alheada de tudo, ao seguir, com uma curiosidade espantada, o galope veloz dos meus inesperados pensamentos.
Tentei ver-me pelos olhos de quem me rodeava: o que pensariam os outros da pessoa encostada à ponta do balcão, de olhos perdidos num ponto vazio para lá do tempo e do espaço?
Regressei da emocionante viagem do meu pensamento e tentei imaginar em que estariam todas aquelas pessoas a pensar. Os que estavam a participar ativamente em conversas dificilmente estariam perdidos em grandes considerações. Creio que o momento em que as pessoas falam é dos poucos em que nos aproximamos minimamente do que realmente lhes vai no pensamento. Tudo o resto é insondável: um território inacessível.

Talvez não seja a primeira vez que confesso a profunda admiração que sinto pela minha forma de pensar e pelo fantástico prazer que as alucinantes viagens do pensamento me proporcionam. Tenho plena consciência de que uma das minhas maiores paixões é o meu próprio pensamento. É com uma maliciosa e deliciada traquinice que me lembro amiúde que os pensamentos são aquela parte de nós à qual absolutamente mais ninguém tem acesso! Apesar de constantemente partilhar por aqui alguns excertos daquilo que penso, adoro recordar-me, a todo o instante, que os pensamentos são o meu mais intrínseco, irrequieto e inviolável património! E que sorriso traquinas isso me deixa no rosto!

Ana Amorim Dias

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Namastê

Namastê

Eu lia aquela saudação com algum espanto. Ou eram pessoas a deixá-la ao fim da noite, antes de se desconectarem do mundo virtual. Ou eram situações de saudação direta e, por último, já havia até quem me saudasse assim.
"Mas que raio? Esta gente e a mania das modernices zen!" - pensava.
Não me passava pela cabeça devolver o cumprimento sem antes investigar o seu sentido. Na verdade parecia-me demasiado afetado e pouco legítimo pensar sequer em usar tão rebuscada palavra. Mas acabei por me render à curiosidade e investigar. Entre um sem número de outras especificações e nuances, absorvi o sentido que mais me tocou e que define melhor tal saudação: trata-se de um cumprimento repleto de respeito e reconhecimento no qual a centelha divina de um indivíduo saúda a centelha divina no outro.
Fiquei maravilhada! "Então isto existe de facto? Há mesmo pessoas que usam a sua essência divina para saudar as essências divinas dos outros?" Ocorreu-me que assim é muito mais fácil não desistir nunca deste sonho louco de constantemente tentar recordar os outros de que somos todos divinos.
O fabuloso conceito que esta antiga palavra encerra, encheu-me de uma desmedida esperança. Se há pessoas tão em sintonia com a sua essência e energia divinas que as reconhecem nos outros, o futuro da humanidade talvez se comece a tornar mais risonho. Pergunto-me apenas se bastará dizer "Namastê" com a voz ou se não será mais eficaz colocar tal saudação em toda a energia que emitimos e atos que realizamos.
Namastê!

Ana Amorim Dias

Almas livres

Livres

Normalmente vou sozinha. É como mais gosto. É a melhor maneira de viver aquele momento no seu mais cru esplendor:
A escuridão cristalina.
A passadeira em madeira.
O bafo das noites quentes.
E o mar em mim.
E eu nele.
Mergulhar na emoção.
Boiar com milhões de estrelas por cima.
Nadar no rasto com que a lua pinta o mar.
Ou apenas no breu.
E despir-me.
Despir-me de tudo.
Até ficar só uma essência nua de qualquer ego.
Nenhuma outra nudez é tão sincera e total. Nenhuma outra nudez é tão simbólica e libertadora.
Os solitários banhos noturnos no mar não deviam causar medo a ninguém. Nem deviam ter o peso daquilo que é estranho, raro, coisa de loucos.
Sempre que a noite me apanha, exultante, envolvida no apaixonante abraço do mar, volto a lembrar-me que quem conhece o poder libertador das próprias asas, desconhece a linguagem que nos proíbe de voar.

Ana Amorim Dias

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Equipas

Equipas perfeitas

No meu carrinho de compras não cabia nem mais uma formiga. Atrás de mim e ao meu redor, filas imensas. A rapariga da caixa, bonita e compenetrada, foi faturando tudo, com o mesmo ritmo que eu estava a usar para colocar as coisas na passadeira. Ajudámo-nos mutuamente com uma eficiência inesperada. E no fim não deixei de lhe dizer:
- Fizemos uma excelente equipa!-
- Foi mesmo!- o sorriso rasgado e a boa energia permaneceram com ela quando me fui embora.
E eu levei comigo a sensação de uma fantástica descoberta: podemos fazer equipa com desconhecidos!
Na verdade fazemo-la sempre que, na estrada, deixamos passar alguém que não consegue entrar; fazemo-la quando uma mãe grita, aflita, para o filho regressar das ondas e nos colocamos ao seu lado, acompanhando-o a salvo até terra; fazemo-la sempre que o momento proporciona que nos associemos a alguém em prol de algum bem maior. Fazemos equipa com estranhos a todo o momento, se pensarmos bem nisso. Mas bem mais belo, emocionante e comovente que fazer equipa com desconhecidos, é fazer equipas excelentes. Chamo a isso humanidade.

Ana Amorim Dias

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Proporção e firmeza

Proporção e firmeza

Há já muitos anos que perdi a conta das imensas centenas de caipirinhas que já me passaram pelo pulso. É muito fácil fazê-las mas, como em tudo o que é fácil, a excelência esconde-se atrás dos mais ínfimos detalhes. Para se fazer a caipirinha perfeita existem dois requisitos incontornáveis: proporção e firmeza.
Que leva lima, açúcar amarelo, cachaça e gelo, todos sabem. O que nem todos atingem é a "mão" mágica das proporções certas.
Quanto à firmeza, a justificação também é simples: ou a lima fica espremida até ao tutano e perfeitamente fundida com a cachaça e o açúcar, ou a bebida fica boa para ser derramada na pia mais cercana.
Continuem então a seguir-me o raciocínio enquanto transformo isto na costumeira alegoria. E se fizéssemos tudo como se de uma caipirinha se tratasse? E se nos conduzíssemos pela vida como quem faz a mais perfeita caipira? As proporções certas e a constante firmeza transformariam cada um dos nossos atos em algo digno de ser saboreado com um inegável prazer? E os relacionamentos? E o trabalho? Teria neles alguma influência?
Com as proporções certas de amor, tolerância, cumplicidade, admiração, amizade, sexo, respeito e a firmeza da manutenção do espaço individual de cada um, não há casal que se dê mal.
Com as proporções certas de amor, exemplos, segurança, responsabilização, loucura, educação e a firmeza de certas regras, é bastante provável que os nossos filhos cresçam felizes e íntegros.
Com as proporções certas de esforço, gosto, consciência, competência, dedicação e a firmeza de não desistirmos dos objetivos, a nossa vida profissional deixa de ser o ganha pão e ganha contornos de missão.
É por isto que hoje agradeço a todas as limas, açúcar e cachaça que ao longo dos anos espremi como se fossem a receita da salvação da humanidade.

Ana Amorim Dias

No puede ser tanta suerte

"No puede ser tanta suerte"

O piropo é, acima de tudo, uma forma de comunicação. E se o engate é uma "arte", o piropo é a sua inicial expressão.
Existem piropos para todos os gostos e emitidos pelos mais variados tipos de homens (e mulheres), sendo que o dito piropo e a forma como é proferido, nos podem dizer muitas coisas sobre o seu emissor.
"Ai menina, que me faz cair dos andaimes!", não é, à partida, frase que seja dita por um otorrino.
"Anda cá que eu não te aleijo!", demonstra uma falta de originalidade a toda a prova.
"Éh, gaja boa!!", leva-nos a concluir muito pouco, excepto que a pessoa tem descaramento q.b. e deve estar bem disposta.
Mas o que me levou a escrever esta crónica, não foi divagar sobre espécies de piropos e quem os verbaliza, foi precisamente o oposto: perceber como as mulheres os recebem!
Talvez seja um mecanismo de defesa mas tenho constatado que, por vezes, até as mais bem educadas mulheres se tornam rudes e antipáticas quando confrontadas com robustos piropos.
Como deve então uma mulher enfrentar esse momento sem perder a sensualidade, a segurança e a boa disposição? Como podem as mulheres tolerar certas frases sem se tornarem antipáticas ou perderem a classe?
O mau humor, o ar ofendido e a falta de gratidão de muitas mulheres, costumam deixar-me estupefacta. Reagem a um piropo como alguém a quem é arrancado um pedaço, sem perceber que no fundo se trata, quase sempre e apenas, de um visceral elogio. Mulher que fique ofendida é porque não compreende o rudimentar funcionamento de certos homens cujo cortejo adquire formas algo trogloditas. Mulher que responda mal ou fique indisposta para o resto do dia é porque não tem os níveis de confiança e amor próprio no lugar.
A verdade é que lidar com estas situações com leveza e compostura é muito simples: se o piropo é de mau gosto, basta ignorar por completo e seguir caminho; se é um "clássico" inofensivo, um sorriso divertido de agradecimento fica sempre bem e deixa um rasto de boa disposição; se é uma pérola de originalidade e graça, pode até guardar-se como uma boa memória. E mais: não é o facto de se aceitar o cumprimento com uma simpatia sorridente que torna quem o recebe numa presa oferecida. Pelo contrário, a atitude segura e agradecida, faz os emissores entenderem que o assunto acaba ali.
E tudo isto me faz voltar muitos anos atrás no tempo e recordar uma noite em que, ao sair de uma discoteca em Espanha, um homem se virou para o Ricardo e lhe disse: "No puede ser, tanta suerte!"

Ana Amorim Dias


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Quilómetros e quilómetros

Quilómetros e quilómetros

Quando saímos de casa e entramos para o carro sabemos normalmente a distância que nos aguarda. Podemos sair para percorrer dez quilómetros, duzentos ou mil mas, sabendo ao que vamos, a mentalização trata de tudo. O problema tende a surgir quando estamos preparados para fazer dez quilómetros e afinal temos que percorrer mil. Ou, no caso inverso, quando planeamos fazer cinco mil e a missão é abortada.
Às vezes penso que é por isso que a vida não é mais simples. Ao contrário do que acontece com o número de quilómetros que normalmente sabemos esperarem-nos, com a vida estamos sempre numa absoluta incógnita. Cada manhã, ao regressarmos dos sonhos, não fazemos a mínima ideia da quantidade de quilómetros de prazeres e sacrifícios ou esforços que vamos ter que suportar. Podem ser dez. E podem ser mil. Podem ser bons. E podem ser maus. Podem ter perigos ou fazer-nos crescer. O que é certo é que a distância de vida que em cada dia vivemos é sempre imprevisível. Não há mentalização possível para o que está por vir e teremos que percorrer. Talvez seja por isso que as pessoas que mais facilmente se adaptam ao imprevisto tendam a ser as mais bem sucedidas e felizes.

Ana Amorim Dias

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