(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

31.12.12

Pumba




- Dez...
Não percebo a ideia das passas. Quem é que se lembrou de  obrigar os outros a emborcar aquela porcaria à pressa? Ainda se fossem uvas ou goladas de bom vinho tinto...
- Nove...
Isto de termos forçosamente de nos divertir não dá para mim. Vá lá que a companhia é boa e a festa está animada. Parece-me um excelente presságio.
- Oito...
Caramba, estou mesmo cheia. Porque é que quando as pessoas se reúnem em festa é sempre para comer como se nunca tivessem feito dieta?
- Sete...
Juro que se alguém tentar pôr de novo no canal da casa dos labregos,  lanço uma praga à dona Teresa para ela ficar muda!
- Seis...
Será que ainda vou a tempo de fazer o balanço do ano que  se esgota?
- Cinco...
Não. Já não dá tempo. Mas para que raios me interessa isso agora? Foi o que foi, gastei-o bem.
- Quatro...
Dois mil e treze. Porreiro, nunca vivi um treze e é um número fantástico.
- Três...
Cum caneco, o estado desta casa!
- Dois...
Isto agora está a avançar mais depressa ou é impressão minha?
- Um!!!
Pumba! Já está!
- Viva dois mil e treze!!!

Parou, parou, parou! Stop! Carreguem  no modo "pause". Dá para fazer um grande plano? Obrigada. Antes da avalanche de beijos, palmadinhas, felicitações e abraços, preciso de respirar. Meter uma grande golfada de ar para dentro, olhar o novo ano bem de frente e não lhe deixar margem para dúvidas: vou-te consumir, esticar, gastar, usar, montar, celebrar, vibrar, amar e escrever. O novo ano olha-me, meio assustado. Sabe que lhe vou dar trabalho!
  Depois, com o primeiro segundo do ano ainda congelado, saúdo os meus mortos com um sorriso bem rasgado e brindo aos vivos que amo e estão longe: não vos esqueço, estão cá dentro!
  E pronto, não preciso de mais. Descongelem o tempo e deixem que volte a loucura dos abraços,  a gritaria das felicitações, a romaria de beijos.

Pumba. Já há ano novo.

Ana Amorim Dias

Poética morada




     Descasco as batatas. Corto-as em palitos bem finos. Não tenho a certeza se gosto mais de as comer ou preparar. Há algo de relaxante, quase poético, nestas cerimónias de preparação de uma mera refeição. Talvez seja da ampla vista bucólica que a janela da cozinha  proporciona. Talvez  seja do jazz que me acompanha os movimentos certeiros.
  Voa-me a mente para uma mensagem: "O teu endereço é um poema", escreveu um amigo com quem troquei moradas para enviarmos livros um ao outro. A frase ficou a bailar-me no espírito, como as batatas nas mãos. Nunca tinha pensado nisso, mas é bom saber que até a minha morada parece um poema.
    As batatas estão prontas a saltar para a fritadeira.  Viro a atenção para os agriões, que pacientemente lavo, acaricio, preparo.
    "A culpa é da Annie...", penso. O primeiro filme que vi no cinema, no fundo da rua, aos seis anos, a sós.  Quando cheguei a casa escondi-me atrás das cortinas do quarto e prometi-me solenemente tentar viver uma vida de filme, musicada, poética.
    Prossigo com a dança dos agriões, com um olho na paisagem e um ouvido na melodia. Mergulho as batatas no óleo com um sentimento quase épico. "A poesia está em tudo, todos os dias, se assim o entendemos."  Sorrio para a fritadeira, fazendo do momento um poema. A morada mais poética é mesmo a que o nosso estado de alma decide construir e habitar.

Ana Amorim Dias
Epílogo
Bem sei que as crónicas não admitem epílogos, mas não resisto:
...Chego à mesa com as batatas fritas e a salada de agriões no preciso instante em que o Ricardo está a chegar com a carne grelhada...poético!

29.12.12


A alma das paredes

  Quando se abre um bar, restaurante, ou qualquer outro negócio em que os clientes permanecem no espaço enquanto o serviço está a ser prestado, não se deve esperar um grande sucesso repentino.
  Fico sempre a olhar com piedade para quem tem tal expectativa porque das duas uma: ou fica defraudado pela "casa" quase vazia, ou tem grandes enchentes iniciais que rapidamente se cansam e mudam de poiso.
  Quem abre um estabelecimento deste tipo tem que perceber duas coisas. A primeira é que os negócios duradouros e consistentes precisam de vários anos para se consolidar. A segunda é que o segredo do sucesso está na alma das paredes. Os locais têm que absorver os sons das vozes cúmplices, das gargalhadas sonoras, das confissões meio ébrias. As paredes precisam de assimilar os odores dos perfumes, o cheiro das velas e das iguarias. O chão tem que ser pisado por emoções e partilhas, festejos e tacões altos, envergados com sedução.
    E é só quando as paredes já passaram meses e anos a captar a vida ali vivida, sentida e celebrada,  que o sítio começa a ganhar alma... e pernas para andar.
Ana Amorim Dias


Quem é que te entende?

  Um dia destes dei por mim a pensar nas frases que mais oiço por parte de quem me atura todos os dias e compilei uma curta lista:
1 - Mããããããeeeeeee...anda cá!-
2 - És a melhor mãe do mundo / és a pior mãe do mundo!-
3 - Adoro-te / amo-te / és linda-
4 - Isto vai dar crónica, não vai?-
5 - Estás impossível!-
6 - Quem é que te entende????-

    Cheguei à conclusão que se tivesse que escolher uma frase preferida não teria quaisquer dúvidas em optar pela número seis. É que as pessoas não são para entender, são para aceitar. Certo?? Qual era a piada de sermos absolutamente lineares e legíveis? Onde ficaria o nosso misterioso encanto se nos tornássemos facilmente decifráveis?
  É claro que o "quem é que te entende?" tinha que ser
a minha frase preferida: é que até para mim gosto de ser um mistério!

Ana Amorim Dias

27.12.12

Mini Mundo




- ... E o Mini Hollywood é tão giro que devias pedir aos teus pais para te levarem lá, Jorginho.-
Com os olhos a brilhar e a boca cheia de frango, perguntou-me:
- É muito longe?
- Não! É mesmo aqui ao lado, por trás da Serra Nevada.-
- Não é longe?!? - interrompeu o Tomás, indignado por me  considerar a enganar-lhe o amigo. - Levamos quase cinco horas para lá chegar!!-
Pousei o garfo e olhei-o nos olhos.
- Por favor, filho! Não penses pequenino! O Mundo é enorme. Se me disseres que a Austrália é longe eu aceito, mas tudo o que se situa na Europa é mesmo aqui ao lado, rapaz!-
    Ficou pensativo e sem me dar resposta, até que o almoço chegou ao fim e tornaram à ruidosa agitação das  suas brincadeiras.
      Eu entretanto saí um pouco. Estiquei as pernas da alma ao volante, sob um céu azul aberto. Engoli por sobremesa as melodias de Andrés Cepeda e mastiguei uma espécie de inveja que quase sinto por quem sabe viver em sossego.
- Porque é que não te contentas com limites confinados? Para quê tanta sede de Mundo? Porque não és feliz sempre aqui, quieta e segura? -
  Desconheço a resposta. Tudo o que sei é que o desassossego de partir me atinge sempre com golpes certeiros, acutilantes, esmagadores. A angústia de querer devorar mais Mundo é mais forte que a razão e, quando me toma de assalto, deixa o travo amargurado das  memórias não nascidas. Mas porquê, caramba? Porque terei que viver sempre nesta  ânsia insaciável?
    "La respuesta suele  estar donde no quiseres mirar...", canta o Andrés. Será que tem razão?
  E então, sob o céu azul de Inverno, outra apoquentação me assola: - Raios te partam, mulher! Tens mesmo que começar a semear já isto nos putos?-

Ana Amorim Dias

Voz de herói em causa própria




  Achei inacreditável! O maldito homem estava mesmo a  ultrapassar quatro carros de seguida com um camião a aproximar-se  vertiginosamente em sentido contrário. Ainda por cima a acabar de sair de uma curva e a entrar numa ponte!

    - Could  you please drive us safely? - ouvi-me a perguntar-lhe bem alto com a voz carregada de indignação. - thank you!-  terminei com a pronuncia mais afectada que me conheço.

    É claro que estávamos todos em risco de perder o ferry de Malta para a Sicilia devido à incompetência do senhor que passou pelos hotéis com uma hora de atraso, mas naquele momento isso era a menor preocupação dos cerca de trinta turistas que, como eu, temiam  não viver para contá-la. Recordo-me de uma senhora pequenina que ia à minha frente, agarrada ao marido, a encolher-se toda com um ar muito aflito. E do ar atarantado dos casais canadianos que seguiam do outro lado. Aguentei-me o mais que pude mas aquela ultrapassagem fez-me saltar a tampa. E o giro é que assim que acabei de me ouvir, percebi que havia falado com a voz de todos os homens e mulheres que tinham permanecido calados. O condutor percebeu que mais valia perdermos o ferry que a vida e abrandou e os meus desconhecidos companheiros trocaram comigo olhares agradecidos, mais relaxados por perceberem que tinham quem os protegesse.
        É comum a incompetência estar associada à antipatia. Desconfio que tal casamento resulta da consciência de que se estão a fazer mal  as coisas e dos ressentimentos que tal facto gera.
  O problema maior é quando essa combinação cria situações de perigo e foi isso que nesse dia aconteceu. Mas o maior perigo que enfrentamos sempre é a nossa vergonha e a nossa escolha de silêncio. O maior perigo das nossas vidas não resulta da incompetência alheia e sim da nossa socialmente correta inércia. Em assuntos sem importância, o silêncio é sem dúvida o melhor e mais  eficiente remédio, característico de pessoas de classe e com boa formação, mas quando o assunto é grave, nada melhor que levantar a nossa voz e sermos heróis em causa própria.

Ana Amorim Dias

24.12.12

Como outro dia qualquer


  Faz hoje seis anos. A fim da manhã ela apareceu a correr e chamou-me.
- Ana, depressa, é o senhor João, ele não acorda!-
Corri cerro acima a uma velocidade que não sabia ter. Entrei no quarto e vi-o deitado e sereno, as mãos unidas debaixo do rosto. Percebi pelo seu sorriso de paz que não íamos jantar juntos. Toquei-lhe. Estava frio.
  Passei aquela véspera de Natal a tentar fazer ver a todos o que eu própria entendera daquele sorriso magnífico: há pessoas tão grandes, marcantes e especiais que se despedem com o carisma com que viveram; pessoas para quem a vida era uma celebração tão constante que apenas faria sentido partir assim, num dia de festa, com todos reunidos à mesma mesa a brindar em sua honra.
  Não me lembro deste ensinamento só nas vésperas de Natal. Recordo o avô João tanto hoje como noutro dia qualquer. Como é em todos os "dias quaisquer" que recordo com amor quem já se foi por morte e quem já se foi mesmo ainda estando vivo; é em todos os "dias quaisquer" que habitam em mim os presentes e os ausentes,os que me entendem e aqueles para quem permaneço um enigma indecifrável, os que me amam e os que me guardam raiva, os que já entenderam o sentido das suas vidas e os que ainda estão a anos luz de o encontrar...
    Sento-os todos comigo à mesa esta noite, como os sento noutro dia qualquer, porque só me faz sentido viver se todos os dias forem como hoje: um dia tão festivo como outro dia qualquer.
Ana Amorim Dias

23.12.12

Querido Pai Natal:

Querido Pai Natal:

  Esqueci-me de te escrever a carta!  Não sei se ainda vou a tempo mas quero dizer-te que hoje me portei muito bem. Deve ter sido por saber que te ia escrever que se apoderou de mim um estranho espírito de fada do lar e devo dizer-te que além de a casa ter ficado um brinquinho, já tenho tudo mais que encaminhado para a ceia de amanhã. De caminho decorei a entrada de casa para te receber, é que a lareira vai estar acesa e fico sempre com medo que queimes o rabiosque.
  Bem, mas vamos ao que  interessa! Como hoje me portei bem, o resto do Ano não conta, certo? É que durante o resto do ano fui a patifa do costume: a que grita com os putos, a que se coloca a si em primeiro, a que é desorganizada, impulsiva, irascível e desbocada, mas isso agora não interessa nada.
  Estive a pensar bem nos meus presentes e uma vez que acho extremamente improvável que me tornes numa best seller ou consigas incutir aos estupores dos meus filhos uma consistente vontade de estudar, tenho a dizer-te que este ano não quero nada. Não fiques para aí chateado que  é claro que não estou a menosprezar os teus préstimos, apenas percebi que, tirando as duas supra referidas prendinhas, tenho tudo.
    É certo que te podia pedir aquela cena da paz no mundo e da compaixão nos corações dos Homens, mas decidi dar-te uma mãozinha e lutar também eu, intrépida, não só por isso como por conquistar mais paladinos para tal  inebriante batalha.

  Como de costume guardar-te-ei uma rabanada, beijos, Ana.

Ana Amorim Dias

21.12.12

Nova era



    Sete da tarde. Mudo da TVI 24 para a Sky News e depois para a CNN. Vejo e oiço o que se passa no mundo. Começou o Inverno, anuncia-se mais austeridade, há nevões fortes na Bulgária e no centro dos Estados Unidos, e por aí fora. Mas o que me espanta realmente é a dimensão global que a história do fim do Mundo alcançou. Será que as coisas teriam a mesma brutal divulgação se tivessem anunciado o início de uma nova era em que em todos os corações só houvesse amor e compreensão? Embora tal ocorrência me pareça, para já, quase tão improvável como o fim do planeta Terra, tenho sérias dúvidas que o tema se tornasse tão popular como o armaguedão.  
    Lembro-me do que sentia, na minha infância, quando ouvia a música "The age of aquarious": que ia mesmo começar uma nova era em que tudo faria sentido. E não consigo impedir-me a interrogação: para quando o rumor global do início da mais perfeita das eras?

Ana Amorim Dias

20.12.12

Domesticar o tempo

    Há duas verdades mais ou menos incontornáveis sobre o tempo: ele acelera quando estamos bem e reduz  a velocidade quando estamos mal. Até aqui nada de novo. 
   No entanto há já muitas pessoas que aprenderam a domesticar o tempo. Domesticar. Dom/Esticar. O dom de esticar o tempo.
    É de tal forma simples que chega a ser patético. Um dia maravilhoso pode mesmo estender-se para além de todas as nossas expectativas. Quando aprendemos o truque, cada excelente minuto pode ser muito mais comprido do que a perceção que temos de  sessenta segundos.  O tempo dura mais se saborearmos a vida! Assim de simples!
     E o mais engraçado de tudo é que, se pensarmos bem no assunto, se quisermos acelerar o tempo,  a receita  é exactamente a mesma: saborear! 
     É por isso que não aceito desculpas de falta de tempo: nada mais são que uma máscara para as faltas de vontade!

Ana Amorim Dias

19.12.12

Perigoso sono


                                           
   Ninguém lhe está imune. E quando aparece enquanto se
conduz é que o caso fica preto. Preto e perigoso.
   Quem nunca se viu na aflição de lutar contra o sono com as mãos no volante, tendo apenas a estrada por companheira?
  No outro dia aconteceu-me de novo e decidi tentar inventar algumas táticas para combater o bandido. Comecei por beber golinhos de água. Nada. Ataquei o resto de gomas que estavam num saquinho esquecido junto ao travão de mão. Nada. E então decidi não recorrer a recursos exteriores e usar-me apenas a mim. Tentei fazer com que a língua tocasse na ponta do nariz. Divertiu-me. Mas como não estava a conseguir voltei a tentar e tentar e tentar. Quando já me estavam a doer os maxilares comecei a contorcer o rosto todo para aliviar a tensão. Divertiu-me. Soltei o riso,  entusiasmada com a minha própria parvoíce. E não resisti a passar directamente às caretas. Mais gargalhadas. Estava a resultar. Mas durou pouco porque o maléfico sono  depressa regressou.
   Um pouco de magia era o que me fazia falta; ou para cem quilómetros se fazerem em cinco minutos ou para me manter bem desperta. E então decidi fazer magia. Inventei dois dedos mágicos colocados na têmpora esquerda que me arrancariam o sono. Afinal as minhas magias funcionam sempre...
    Cheguei a casa sã e salva e ainda fui ver um filme! Divertida com as gargalhadas soltas e com a forma como lidei com o caso, acabei por perceber que quem me manteve acordada foram todos vocês... porque vim todo o caminho a descrever-vos mentalmente as formas parvas como se consegue manter afastado o perigo: com imaginação, fantasia e gargalhadas!

Ana Amorim Dias

18.12.12

Como uma dor nas canelas

Sempre que a encaro de frente entra-me um frio na barriga. Faço a primeira subida em silêncio, a medir forças comigo e com a besta. Ou então a falar demais para calar a impressão de perigo que se instala sem permissão.
   Depois de negociações calorosas com os miúdos para os convencer a levar capacete, lá ganho  a batalha, consolada com a pequena noção de segurança que as suas protegidas cabeças me dão. E, enquanto descem as primeiras pistas disparados à minha frente, penso que mesmo que partam algum membro, o principal está salvaguardado. 
   O Tom desce ao seu ritmo, com a desenvoltura de quem o fez toda a vida, mas o bandido do João quer sempre chegar primeiro e tira-me da razão quando vejo aquela mancha amarelo mostarda disparada como um tiro. E então percebo que me esqueço do meu próprio prazer; esqueço-me de ver as nuvens abaixo de mim a acariciar os outros cumes da paisagem; esqueço-me de sentir a força do ar da montanha a entrar-me nos pulmões e do deslizar suave dos skis contra a neve. 
    Ninguém se estreia por si mesmo nestas andanças: vamos sempre levados por alguém que já se apaixonou pela neve. E enquanto deslizo, com um olho nos filhos e outro no caminho a seguir, procuro pela minha paixão. Afinal sou ou não apaixonada pela neve, pela montanha e pelo ski? Faço descidas e mais descidas em busca de uma resposta. Será isto um sucedâneo do amor, que envolve prazer e dor, medo e emoção? Será isto como uma lição de vida, que nos mostra de que fibra somos feitos?
   O dia de ski chega ao fim e respiro de alívio por estarmos todos inteiros.  Ao deixar para trás a montanha concluo que me ensina sempre algo novo.  E desta vez percebi que o seu desafio é uma alegoria aos desafios da vida: como uma dor de canelas que nos fica de uma alma um pouco mais sábia. Já no que diz respeito à paixão... bem, tenho que lá voltar outra vez, como sempre volto apesar do atrito. 

Ana Amorim Dias

15.12.12

No meu Mundo




- Ana. Ana! Anaaaa!- 
- Hã? ... Diz.-
- Não me ouves a chamar-te?-
- Não.- E ponho o ar mais inocentemente infantil que sei envergar, desarmando por completo o interlocutor.
Não oiço mesmo ninguém. Nada mais importa. Deixo de estar onde está o meu corpo. Os meus filhos, por exemplo, já sabem:
- Shhhh, João, não vês que não vale a pena?- Diz o Tomás ao irmão quando me vê a escrever.
- Pois é.- Responde-lhe o pequenino.
Mas agora quando estou acompanhada, só para pôr a funcionar o respeito, optei por  começar a despedir-me:
- Olhem, vou só ali ao meu Mundo e já volto, está bem?-

Ana Amorim Dias

14.12.12

Se…


   A vida está cheia de “ses”. A vida de toda a gente.  “Se eu tivesse dito aquilo naquele dia” ou  “se eu me tivesse calado naquele momento”. “ Se eu tivesse agido assim” ou “se eu nada tivesse feito”. “ Se eu tivesse concordado”; “ se eu me tivesse conformado”; “se eu soubesse o que hoje sei…”
   Os “ses” acontecem a toda a hora, uns maiores outros mais insignificantes. Aparecem a cada passo, em cada cruzamento do percuso da vida. E a realidade é simples: não sabemos fazer melhor. Tudo se resume a cálculos de probabilidades, assunção de obrigações e respeito de  vontades que nem sempre não as nossas. Não sabemos fazer melhor porque por mais  que tentemos prever onde é que aquela escolha nos vai levar, nunca o conseguimos fazer em absoluto e não chegamos a perceber bem onde é que o outro caminho nos poderia ter levado.
  Não gosto dos “ses” mas, por mais que nos desagrade, a vida é um “se” gigantesco que depende das nossas escolhas e da mais aleatória sorte. Se ao menos eu conseguisse deixar de pensar nisso…
Ana Amorim Dias
  

13.12.12

Achas normal?



- Diz-me lá, achas isto normal? – pergunta-me, sobre o  comportamento de alguém.
 Fico em silêncio uns segundos.  Escolho  a verdade.
- Mãe… eu sou a última pessoa a quem deves perguntar se algo é normal! -
- Pois… -
    Não acho normal a crueldade. Só isso. A natureza e os animais não são cruéis, não com malvadez pelo menos. Porque o consegue ser o Homem?  Sim, tirando o que nasce da crueldade, não vejo os comportamentos como anormais. Tirando quem é movido pela crueldade, não me parece que haja pessoas inaceitáveis. Claro que há individuos com fortes transtornos mentais que fazem coisas horríveis, mas esses vou deixá-los de baixa nesta crónica,  por motivos de doença.
   Não julgar é mesmo bom. Liberta-nos. Torna-nos coerentes. Faz-nos  melhores. Arranca-nos à mesquinhez.
   Podemos não aceitar certas coisas, mas se acaso tivermos a capacidade de pelo menos as tentar entender,  nasce em nós uma capacidade enorme de perdoar. E esta é a única fórmula para nos sabermos perdoar a nós mesmos.
Ana Amorim Dias

 

12.12.12

Voo P206




   “ Dzzzzt.   Bom   dia senhores passageiros, fala-vos o vosso capitão.  É um prazer tê-los de novo a bordo do voo P206.  Agradecemos que mantenham os cintos apertados durante toda a viagem.  A temperatura exterior do ar é de nove graus, o tempo está limpo e as condições atmosféricas, no geral,  excelentes. Estamos a voar a uma altitude de zero pés e  aterraremos dentro de dez minutos, à hora prevista,  no Aeroporto Internacional de Castro Marim.  Obrigada mais uma vez por terem escolhido a Ana Airlines  e  esperamos vê-los em breve a bordo dos nossos aviões. Bom voo! Dzzzzt “
   No manhã em que criei a Ana Airlines os putos riram-se imenso e ficaram numa excitação pegada apesar de já terem voado a sério várias vezes, visitando inclusivamente o cockpit. Como a brincadeira teve sucesso estrondoso, agora pedem-me frequentemente para “fazer aquilo dos aviões”.   E eu faço, com prazer.   Podem ir só para a escola, mas vão com uma emoção diferente.
   Hoje ouviram-me e ficaram calados. Já não riram nem pediram para imitar as hospedeiras com as indicações de segurança. Deixaram-se apenas ficar, tranquilos, no banco de trás, a deixar voar as suas imaginações. E eu, a Ana mãe, transformei-me mesmo na Ana capitã do voo P206 da Ana Airlines  e aterrei  no Aeroporto Internacional de Castro Marim com um sorriso rasgado nos lábios.  Gosto mesmo de ter asas capazes de alargar as asas destes dois meninos que um dia voarão por si.
Ana Amorim Dias

11.12.12

Possuídos



        Nenhuma pessoa possui outra. Excepto talvez os escritores.
     Nenhum escravo foi jamais do seu “dono”.  Nenhum amante foi jamais do seu amor. Ninguém pode ser verdadeira e completamente possuído por outro alguém. A menos que tenha o pesado fardo de fazer parte da vida de quem faz da vida as palavras.  Aí sim, é-se possuído. Integralmente e sem defesa possível.
     Não há antídoto capaz de parar tal domínio. Não há apelo, calado ou surdo, que trave o roubo dessas almas que os escritores podem vestir com as vestes que quiserem, nomear com o nome que escolherem ou com o sexo que desejem. Quem convive com um escritor, nasce e renasce, em tantas personagens quantas ele entenda; com tantas nuances quantas as que ele em si veja; com tantas cores, odores e  sabores quantos os que ele lhe sinta.   Quem convive com escritores carrega um  dos mais pesados fardos que um ser humano pode ter: perde o domínio de si.
     Li algures que quem ambicione a imortalidade deve ser amado por um escritor. É a mais pura verdade. A menos que a humanidade se extinga, essas pessoas ficarão para sempre. Para sempre conservadas nos laboratórios da escrita.
- Tem cuidado com ela. Distrais-te um bocadinho e faz mil estórias contigo.  – Comentam,  às vezes,  de mim.    E eu sorrio.
- Tem cuidado com ela. É como  um vampiro  que te vai sugar  as  entranhas.  – É o que me dá a  ideia de ouvir.     E eu sorrio.     Sorrio do meu poder.    Não sou dona de ninguém, mas sei que todos possuo.

Ana Amorim Dias

10.12.12

Beleza



      O deadline aproxima-se. Ter temas impostos e prazos limite é um desafio muito interessante para quem escreve quase sempre ao sabor dos ventos da vontade.   Mas de hoje não passa.
    Depois de alguns dias a ruminar o tema, decido-me pela única abordagem lógica a algo tão subjetivo.
   Como  a beleza é um conceito muito individual, têm levado a cabo várias tentativas científicas de a plasmar  numa fórmula uniformizada.  Decidiram-se pela  simetria: quanto mais simétrico é um rosto, mais deverá corresponder ao conceito universal ( se é que tal coisa pode existir) de beleza.
    Que me desculpem os cientistas, mas a beleza não é mensurável em programas de computador nem com fórmulas matemáticas e geométricas. A beleza é, e será sempre, uma decisão pessoal do observador. Quer estejamos a apreciar uma paisagem, uma obra de arte, um carro ou uma pessoa, a beleza só pode ser plenamente medida por quem olha e “sente” o que está a ver.
   Mas limitemo-nos apenas à beleza humana.  Afinal porque é que consideramos alguém  belo?  Como é que funciona o nosso sistema de apreciação?  Quais são os atributos que determinam a beleza ou a fealdade de outrém?   Serão as caras perfeitas no topo de corpos de fazer parar o trânsito? Ou haverá algo mais?
   É  neste ponto que mudo o rumo da crónica para um tom bem mais intimista  e falo do que conheço bem. Será que eu me sentiria mais bela com um rosto nota cem no teste da simetria e um corpo capaz de desfilar nas passagens de modelos da Vitorias’s Secret? Não me parece. Há algo em mim que supera os feios detalhes dos quilinhos a mais, da celulite, da falta de simetria e das rugas e cabelos brancos que se vão instalando. Chama-se amor próprio. Chama-se auto-confiança. Chama-se emoção e capacidade de sonhar. Chama-se paixão pela vida.
     É disto que a beleza é feita. Ela é o magnetismo emanado pelo nosso interior e pela forma como envergamos a nossa unicidade e o nosso amor por nós mesmos.  São estes atributos que nos tornam realmente atraentes ao próximo.  E quanto mais profundamente  o entendemos e naturalmente praticamos, mais irresistíveis  e belos nos tornamos.  
Ana Amorim Dias
  

   

7.12.12

Chá de Lello


   Pela primeira vez quase me esqueci de sair do avião. É o tipo de coisa que  acontece quando a melhor amiga está sentada ao nosso lado e o Mundo inteiro se resume àqueles momentos que roubámos só para nós.
   Pela primeira vez nos confundem com um casal.
- Desejam o quarto com cama de casal ou camas individuais? –
- Camas individuais. – Respodemos em coro com um ar divertido, rindo-nos da naturalidade com que as diferenças são agora encaradas.
   Pela primeira vez deixamos tudo para trás e verificamos a compatibilidade viajeira de duas pessoas tão diferentes e, ainda assim,  tão complementarmente compatíveis.
  Gastamos as solas das botas como se não houvesse amanhã. Gastamos as palavras como se não quiséssemos deixar palavra alguma por dizer.  Passeamos sem olhar ao tempo, desrespeitando horários alimentares e prestando a devida homenagem a uma amizade de várias décadas.
   E então paramos num dos únicos locais que eu fazia realmente questão de conhecer. Entramos como quem entra num templo. Respiramos o ambiente mágico do espaço. Subimos a escadaria encantada. Convido-a para um chá e sentamo-nos, em plena livraria Lello, uma das mais belas do mundo. Beberricamos o líquido negro e quente, e olhamos uma para a outra num silêncio cúmplice e reverencial.  E é então que percebo que somos mesmo um casal. Um caso de amor amigo, platónico e sagrado. E é então que percebo que há momentos eternos:  tão serenos e perfeitos que se conseguem contruir apenas com chá e silêncio.

Ana Amorim Dias

5.12.12

A Câmara do lado



      Agora parece que é moda.  Esgotam os mandatos e, não se podendo voltar a candidatar, viram-se para a Câmara do lado.  Procuram apoios, forjam alianças, preparam as campanhas  e, com alguma sorte e jeito,  lá se instalam na vizinhança.
    Sempre encarei as autáquicas como uma escolha que não deve depender muito da cor política de cada eleitor.  Trata-se de um caso à parte em que, mais que a esquerda ou direita, o que deve importar são questões como as capacidades e projetos do candidato  e, sobretudo,  a sua  ligação à autarquia.  Ora é exatamente neste último ponto que toda celeuma se me levanta: qual é a legitimidade funcional  de se governar locais e gentes cuja  realidade se desconhece quase na totalidade? Não é essa a essência que rege a própria existência do poder local? Ou será que pensam que a experiência adquirida ao longo dos muitos anos passados noutras Câmaras os prepara para tudo? 
   Descarto da minha escolha os candidatos que já esgotaram os mandatos na vizinhança e se vêm candidatar ao meu Concelho. Não que não lhes reconheça o valor pessoal e político, entendam-me, mas porque continuo a acreditar ( não sei muito bem como) que quem se candidata vem por bem, capacitado e decidido a  resolver os problemas que são, acima de tudo, os problemas da SUA gente.
Ana Amorim Dias

4.12.12

Tão torta!



     
       O João andava impaciente à espera do irmão mais velho.
- Óh mãe, mas onde é que está o Tomás?-
- Já te disse, foi ao treino. -
- E demora? -
- Pelo menos mais uma hora… -
- Mãe? –
- Hã?.. –
- Uma hora é quanto tempo?  -
- Dois episódios do Sponge Bob! –
- Hum… -
   Estranhei a impaciência e só quando o Tom chegou, preparado para meter mãos ao trabalho de fazer a árvore de Natal é que percebi tudo. Tinha-lhes prometido que este ano a missão era só deles. E devo acrescentar que foi com muita resistência que lhes acedi ao pedido. Gosto de preparar tudo eu mesma para o resultado ser, no mínimo, perfeito.  Todos os anos, mais ou menos por estes dias,  decoro a casa com todo o rigor e ao som de músicas de Natal. Delegar foi uma decisão muito difícil e algo dolorosa.
- Tu fazes a árvore e eu o Presépio! – Determinou o pequeno ditador dirigindo-se ao irmão.
- Calma! Hoje a árvore e amanhã o Presépio… e só depois de jantarmos! – Impus.
E assim foi. Enquanto eu arrumava a cozinha,  ia espreitando o desenrolar dos acontecimentos pelo canto do olho, com um misto de apreensão e orgulho. O João aninhou-se no sofá, demitindo-se do poder de participar na montagem e decoração da árvore por pura teimosia, mas o Tom, todo contente, rodeou-se de todas as diferentes decorações e deu largas à sua arte.
- Tomás… os ramos têm que estar mais afastados e farfalhudos, não? – Comentei.
- Que séca! – Queixou-se, apesar de seguir a exigência.
   Momento depois vi-o a culminar a missão, colocando   a estrela no topo da árvore,  e fui ver o resultado.   Tudo numa só cor. As luzinhas bem espalhadas. Ri-me com a escolha dos enfeites: optou pelos  mais fáceis, claro!  Mas a verdadeira cereja no topo deste “bolo” natalício foi a acentuada inclinação da árvore!  Como vou aguentar um mês a olhar para algo tão torto??
 “ Tem calma, Ana… Nem assim ela está tão torta como tu tens o feitio!”  - Disse de mim para mim.
Abracei o meu filho mais velho e dei-lhe os parabéns pelo seu excelente trabalho e, em silêncio, congratulei-me a mim mesma por estar a conseguir delegar algo tão importante, passando à nova geração a solenidade destes grandiosos rituais.
  Agora vou comprar papel pardo para a base do Presépio… pois esta noite  outro ensinamento me espera!
Ana Amorim Dias
  

3.12.12

Luvas para o coração




      Caneco que hoje está mesmo frio!  Já esfreguei  as mãos até quase lhes saltar a pele e não há forma de aquecerem.    A ser verdade o mito das mãos frias equivalerem a coração quente, o meu hoje deve estar  em fogo!
   Mas o que é, afinal, ter o coração quente? É estar apaixonado? É ter o nosso “motor” num estado de delírio amoroso que nos torna capazes das mais insanas loucuras? Ou será, simplesmente, habitar num estado de ausência de maus sentimentos?   Acho que está na hora de desmistificar um pouco este mito urbano de aldeia porque se em concreto o coração está sempre nuns quentinhos 37 graus, na visão mais poética das coisas há corações gelados a habitar corpos cujas mãos também estão frias!
   No fundo o que quero dizer é que aquecer as mãos deve ser tão fácil como aquecer o coração.  Mas como se vestem, então, as luvas ao coração? Primeiro tempos que perceber que os corações  frios  apenas têm falta dos quentes raios do afeto alheio;  os corações gelam pela ausência de amor  e falta de atenções.  Mas também não devemos esquecer que, para se ser amado, é preciso saber viver nesse tipo de vibração, caso contrário nada feito.  
   Corações quentes são os das pessoas que sabem emitir raios de amor em todas as direções, porque de todos os lados lhes chega, assim, o calor, independentemente do frio que tenham ou não  nas mãos.
Ana Amorim Dias

1.12.12

Detalhes


   A minha mãe goza comigo porque nunca coloco a chávena no pires.  Já lhe expliquei que é por motivos práticos que o faço: como estou sempre concentrada no ecrã e na teclas, se após cada golada tentasse acertar no pires,  correria sérios riscos de entornar o café.
   Concluo que é muito sábio  suprimir detalhes secundários para nos mantermos absolutamente focados naquilo que é mesmo importante.  
Ana Amorim Dias