(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

26.2.13

Walking the red carpet

Passadeira vermelha

É todos os anos a mesma coisa: espeto-me em frente à televisão a ver os canais que transmitem em direto a cerimónia dos Óscares. Cheia de boa vontade, penso sempre que ainda não tenho sono e que é desta que vou conseguir ver um pouco mais que as sumptuosas chegadas das divas. Mas a entrega das primeiras estatuetas apanha-me sempre já tombada na inconsciência das madrugadas de sofá, quiçá com um reluzente e sensual fiozito de baba a querer rolar-me no queixo.
E a noite dos Óscares acaba-me sempre da mesma forma: com uma ausência total de glamour, sem perceber quem ganhou o quê e a cambalear casa fora até à cama quentinha.
Mas assim que abro a pestana, vejo no iPhone quem foram os vencedores. Vejo as subidas, as quedas, as poker faces e os agradecimentos. E enquanto visto roupas bem mais simples que as das divas, percebo que tenho uma passadeira vermelha só para mim... e que o dia que agora começa me vai trazer tantos Óscares como outro dia qualquer. É que, desde que tenhamos o caminhar correto, todos podemos a toda a hora, pisar a passadeira vermelha!

Ana Amorim Dias

Ainda aqui

Ainda aqui

A voz dela surgiu sobre a cena como se o sol nascesse à noite. E fez eco em mim com uma tal intensidade que só me restou a rendição a um integral arrepio.
"Este estupor é brilhante!", lembro-me de ter pensado. Consegue sempre compatibilizar as cenas de exagerada e escarlate violência com músicas tão fantasticamente escolhidas que o resultado é invariavelmente o mesmo: arte.
Se calhar a arte é também isto: a capacidade de, mesmo sem que se saiba quem é o autor, conseguirmos identificá-lo pelo estilo e pela marca que deixa em nós. Sim, sem qualquer sombra de dúvida, fazer arte é criar algo que marca; que deixa o outro transformado nas células e emoções; que permanece depois do fim. Arte é aquilo que alguém tem capacidade de criar e entregar, marcando os outros mesmo depois de terminado o consumo da obra.
Guio todo o caminho a ouvir uma e outra vez a voz da Elisa Toffoli a cantar "Ancora Qui". Sinto o crescendo da emoção e, à terceira, as lágrimas rolam, imparáveis. Ancora qui...ainda aqui. Sim, sem dúvida, ainda aqui. Ainda aqui estão as marcas de toda a arte com que já fui amada.

Ana Amorim Dias

Vertigem

Vertigem

Quando se percebe que se ama alguém devia ser obrigatório perceber também que já não se caminha em chão firme e, pelo contrário, cada passo é dado no limiar do mais vertiginoso abismo.
Quando, mesmo contra vontade, se começa a amar, essa maravilhosa alquimia traz implícita a vertigem da queda. Porque passa a haver a necessidade do outro. Porque os humores de repente dependem da eficiência com que esse outro se entrega e revela o seu amor.
Amar é lixado. É um imenso ganho cheio de potenciais perdas. Amar é consentir abertamente que o coração seja arrancado do peito sem anestesias de qualquer tipo. Amar é o sentimento mais louco que pode existir por encerrar no seu âmago as mais antagónicas sensações. Amar é a mais insana e perigosa ação a que a pessoa se pode entregar porque implica delegar a outrem a responsabilidade da mais intrínseca alegria.
Se defendo que não se ame?? Claro que não! Como poderia condenar a mais grandiosa razão da existência; o que faz as vidas merecerem ser vividas? Apenas me parece que, já que amar é viver na vertigem do precipício, todos deviam ter a consciência de manter bem preparadas as asas do amor próprio, para não iniciarem nenhuma queda livre de cada vez um amor chega ao fim.

Ana Amorim Dias

23.2.13

Profundidade

Profundidade

Como se faz autoanálise sem mergulhar profundamente em nós? É possível encontrar os porquês das nossas escolhas e modos de ser ficando a nadar só à superfície? Lançarmos-nos em profundidade no nosso mar interior será assustador pelo medo da escuridão e dos enormes tubarões brancos que lá possam estar? Ou essa incursão é simplesmente demasiado ingrata pela dificuldade de discernimento que a falta de ar sempre implica?
Afinal quantos de nós vamos mesmo ao fundo das nossas motivações para perceber as escolhas? Quantos de nós procuramos conhecer as raízes da árvore das atitudes?
Sempre pensei que sabia ir ao fundo de mim procurar as respostas, mas por vezes surge a dúvida e fico com a sensação de ter a mesma profundidade de uma libelinha esvoaçante à tona de água.
E isso deixa-me a ponderar que, de todos os desafios com que somos brindados, o maior deles é muito bem capaz de ser esse tal mergulho em profundidade. Porque só ao fazê-lo encontramos as respostas e percebemos as soluções para tudo.

Ana Amorim Dias

Mostrar a língua à vida

Mostrar a língua à vida

- Até amanhã, filha. E porta-te bem... se conseguires.- Não percebo porque é que a minha mãe se despede assim de mim tantas vezes. E mal sabia ela ontem, ao desligar o telefone, da loucura que momentos antes eu tinha lançado sobre a casa e todos os seus habitantes.

- Pronto! Acabou-se o sossego! - diz a menina Rita quando me vê chegar. Será porque a estrafego com mimos e beijos e falo alto e a ponho num virote? Talvez e, no entanto, sei que ela adora que o sossego se acabe.

- Mas será que não há quem ponha ordem nesta Quinta? - pergunta a Cristina, num desespero divertido, quando lhe invado a cozinha como se fosse um vendaval. Haver quem ponha ordem até há, mas ninguém quer fazê-lo porque todos percebem que a vida assim é melhor.

Não costumo parar para pensar no que potenciou os constantes ataques de maluquice divertida que espalham a boa disposição ao meu redor. Será um condicionalismo genético? Será que decidi, sem saber, levar a vida a brincar? Ou será devido à possibilidade constante de fazer figuras de ursa sem que grande mal venha ao mundo? E se eu trabalhasse numa conceituada firma de advogados onde não seria bem visto andar com calças de ganga rotas, colares tribais, brincos de penas e onde eu não pudesse andar a atirar borrachas aos colegas ou a imitar sons intestinais ao soprar uma palhinha no sovaco? Sim, como seria a minha vida se eu ligasse aos olhares estranhos que me lançam por dançar em todo o lado e cantar no carro a plenos pulmões?
Duvido que consigam algum dia roubar-me a alegria e as suas estranhas manifestações. Porque se o tentarem fazer eu escondo-me atrás de uma árvore e ponho-lhes a língua de fora! É isso: sempre que o destino voltar a conspirar contra mim, hei-de mostrar a língua à vida!

Ana Amorim Dias

Tão fofos

As birras dos homens

Os homens são mesmo giros! Os homens e as suas birras! Adoram ter uma mulher boazona e sensual, mas ficam aflitos com a perspetiva da aproximação de predadores. Querem uma mulher inteligente mas exasperam-se com os seus bem fundamentados argumentos. Amam mais facilmente uma mulher emocionalmente estável, com a cabeça no lugar e as ideias todas em ordem, mas ficam muito sentidos pela sua falta de paciência para lhes aturar certas "tretas". Desejam uma mulher poderosa, mas temem secretamente o seu poder. Apaixonam-se por uma mulher determinada, ambiciosa e de horizontes bem largos, mas tremem de pavor quando imaginam onde isso as poderá levar.
Ficam algumas reflexões, minhas queridas:
- Quaisquer que sejam os vossos atributos, jamais os abandonem porque por mais que os homens vos inspirem, é de vós que o poder nasce.
- Nunca desistam dos sonhos por amor porque é exatamente esse um dos seus maiores assassinos.
- Desenvolvam a tática da inundação de mimos e da transmissão de confiança, porque é essa a única forma de lidar com estes fantásticos seres, mas nunca deixem passar uma ocasião de os colocar no lugar quando assim tiver que ser.
- Tenham sempre bem presente que o vosso homem é belo e forte por ainda vos aturar, mas jamais se atrevam a esquecer e abandonar as vossas missões e a vossa mais pura essência.

Ana Amorim Dias

Demónios pessoais

Demónios pessoais

Entre umas sessões de abdominais, deitada no chão da sala, detive o zapping num programa de fofocas americano que, naquele momento, falava do suicídio de uma cantora que me era desconhecida. "Não conseguiu viver com os seus demónios pessoais", comentaram.

Atravessei o salão completamente às escuras. O Joãozinho procurou a minha mão e eu apercebi-me dos seus medos. "Dunas! São como divãs..." começo a cantar. Ele faz coro comigo e sinto-lhe os passos mais firmes e destemidos. Está a aprender a minha velha tática para afastar os medos.

Eram sete e meia e eles já não deviam demoravam a chegar. "Mas que gaita! Tenho que fazer outra vez o jantar e não me apetece nada!" Troco a iluminação, ateio o incenso e ligo a música. A preparação do jantar transforma-se num prazer imenso enquanto danço pela cozinha como se estivesse num palco.

Os demónios pessoais podem usar as mais variadas vestes e ter as mais distintas caras, mas acabam por ser sempre os medos que cada um tem em si. Saber exatamente quais são os nossos demónios é meio caminho andado para conseguir lidar com eles. Sorrisos, cantares e danças afastam atritos, medos e tédios. Confiança e amor próprio afastam fracassos e solidão. Mas entre os maiores inimigos dos demónios pessoais estão, sem dúvida, a inocência e a sintonia com frequências de amor. É por estas e por outras que os meus demónios pessoais vivem em constante pesadelo, infernizados por mim!

Ana Amorim Dias

19.2.13

O intervalo entre as nuvens

O intervalo entre as nuvens

Na minha primeira ida ao Brasil andei entre Salvador da Baía e o Rio de Janeiro. Sempre que numa das cidades havia bom tempo eu estava na outra. Apesar de, não sei muito bem como, ter conseguido fazer um pouco de praia a norte de Salvador e na praia do Leblon, a sorte maior aconteceu no momento da visita ao Cristo Redentor.
Enquanto o "bondjinho" me transportava para o cume do morro do Corcovado, as nuvens adensavam-se lá no topo. No entanto, na hora de ver a vista encantadora da cidade maravilhosa, o céu limpou como que por magia, permitindo-me o privilégio de degustar condignamente uma das incontáveis paisagens épicas em que este nosso Mundinho é pródigo. Mas o momento de vir embora chegou e, com ele, voltaram as cerradas nuvens, que me deixaram com dó dos turistas que não tiveram a mesma benção dos céus.
Apesar de já muitos anos terem passado desde esse dia em que o tempo se abriu num presente perfeito, lembro-me disto amiúde. Sempre existirão nuvens e sempre haverá céu limpo, bem como alturas em que a natureza, no momento certo, nos permite ver com toda a nitidez as mais belas paisagens.

Ana Amorim Dias

Associas-me a quê?

Associas-me a quê?

Estava dizer-lhe que associo o barulho do ar condicionado do meu quarto a uma série televisiva já antiga, sobre uma enfermeira americana no Vietnam. Tudo porque o arrancar do aparelho me faz lembrar o barulho dos helicópteros que traziam os feridos.
- E tu a mim associas-me a quê?-
Já não faço a mínima ideia do que respondi, mas fiquei a pensar nas associações que adoraria que os outros fizessem à minha pessoa. Gostava que me associassem a boas energias, a gargalhadas e sorrisos. Gostava que me associassem a amor e paixão, sonhos e esperança, força e inspiração. Ficaria completamente feliz se me associassem a uma imaginativa loucura ou a um estilo anarquicamente alternativo de encarar tudo na vida. Mas então interrompo-me e percebo: que importa a forma como os outros nos vêem? Desde que sejamos o mais genuínos possível e consigamos associar-nos nós mesmos ao que nos é mais querido, os bons entendedores saberão "ler-nos" bem.

Ana Amorim Dias

16.2.13

De meteoritos e faturas

De meteoritos e faturas

- Isto agora é só meteoritos a cair! Olha do que se foram lembrar, hã?-
Ri-me perdidamente. Como se a culpa disso também fosse do nosso doce Governo e dos legisladores mentecaptos.
Comecei logo a deambular nas avenidas da minha imaginação sem conseguir parar de rir.
E se, sem que ninguém se tenha apercebido, saiu em Diário da República que as pessoas que não pedem fatura seriam atingidas por fragmentos de meteorito e o serviço contratado pelo Estado falhou o alvo, caindo nos Urais?
Quem é que vai pagar mesmo tendo corrido mal? Claro: os mesmos que pagam buracos negros bancários, máfias elitistas e submarinos assucatados.
Por outro lado, se o meteorito não foi contratado por duzentos mil milhões de euros pelo Estado português para punir os perigosos criminosos que não pedem a fatura do café, que teria acontecido se o dito corpo celeste tivesse caído mesmo em terras lusas?
Já estou a ver o Gasparzinho, a esfregar as mãos de contentamento. Afinal um meteorito no nosso espaço aéreo quanto não pagaria de portagem?

Ana Amorim Dias

Era uma vez uma Quinta

Era uma vez uma Quinta

Olho pela janela do quarto, com o já primaveril Sol a alaranjar-me a manhã.
Lá em baixo, junto à figueira raínha, consigo ainda ver os passos daquele Homem que, na sua imensa sabedoria e abundância, soube deixar, mais que a matéria, um espírito de tenacidade que continua a nortear todos os seus descendentes. Chamava-se João. Claro, só podia.
Era uma vez uma Quinta. Feita de estórias e com amor. Era uma vez uma Quinta que guarda lembranças e tem alma nas paredes. Um sítio lindo, acarinhado por tanta gente que lhe sobram mimos e legados de uma prolixa diversidade. Era uma vez uma Quinta que, depois de muitos anos a fazer com que as festas sejam de um brilho ainda mais festivo, inicia hoje uma nova fase, abrindo para todos de sexta a domingo.
Não sei como vai correr mais esta etapa. Nunca há como saber. Mas de uma coisa tenho a certeza: que em cada caipirinha, em cada sangria de frutos vermelhos, biscoito caseiro ou pãozinho recheado que me tocar fazer, irá muito mais que a matéria. Irá o espirito de quem faz por e com amor. Irá o sabor afrodisíaco da inspiração deleitada com que escrevo e me enamoro, a cada momento, pela vida.
Faço por isso sinceros votos de que apreciem não só o espaço e o bons sabores, como a mística inerente a tudo o que é feito por uma escritora e mais alguns seres inspirados.

Ana Amorim Dias

Document 1

Dias de paixão

A celebração dos apaixonados no mês de Fevereiro remonta tanto aos feitos de são Valentim pelos sacramentos que dava, contra ordens instituídas, aos casais enamorados (e à própria paixão que a lenda conta ter vivido antes da sua execução) como às festividades em honra da Deusa Juno na Roma antiga.
Quando se encara este dia com o limitador espartilho de "dia dos namorados" fico sempre com uma certa pena dos casais de pombinhos que, nada sabendo da vida e muito pouco do amor, trocam inocentes juras eternas com caixas de bombons no regaço. Existe uma colossal distância entre os casalitos justapostos que, tudo fazendo para se agradar mutuamente, vão escavando sem saber a sepultura de breves paixões e as pessoas que sabem viver sempre em estado de paixão pura.
Prefiro encarar este dia como mais um dos 365 dias que o ano deve ter em plena exultação dos afetos, amores e paixões. Um dia em que talvez devamos repensar de um modo mais consciente na forma como deixamos que os amorosos sentimentos nos dominem e na maneira como nos deixamos amar.
Há pouco mais de um ano, depois de ver um espectáculo de tango em Buenos Aires, escrevi a crónica "A vida num tango" em cujo final desejei a mim mesma a vida num tango. Nesse momento epifânico compreendi que, independente de quem a cada momento amamos, devemos fazê-lo total e desmedidamente, com o derradeiro arrepio, que nos arranca o ar dos pulmões, a arrastar-se no tempo. Por mais que tenhamos suaves afetos, carinhosos amores ou sofridas paixões, temos a obrigação, pelo mesmos perante nós mesmos, de sentir e viver tudo com um total e comprometido empenho, reinventando-nos a cada momento na nossa indomabilidade ancestral. Porque na vida nada pode ser mais garantido que a nossa relação connosco e com o compromisso de viver eternamente enamorados.
Assim sendo instituo hoje e aqui o meu apelido como Dias, mas Dias de paixão.

Ana Amorim Dias

13.2.13

Deixa-me ligar-te

Deixa-me ligar-te

Há tempos li isto: "The meaning of life is to find your gift. The purpose of life is to give it away.". O que quer mais ou menos dizer que o sentido da vida é encontrar o teu dom e que o propósito da vida deve ser a entrega dessa dádiva ou dom aos outros.
Pois bem, parece-me que existem imensas pessoas que já descobriram o sentido das suas vidas e que estão comprometidas com o tal propósito, colocando os seus dons à disposição dos outros. A questão é mais profunda: quantos de nós estamos dispostos a receber essas dádivas?
Isto faz-me lembrar o episódio do violinista famoso que interpretou magistralmente uma elaborada peça à entrada de uma estação, sem que ninguém se detivesse a apreciá-lo quando, na noite anterior, tinha enchido uma sala de espectáculos com bilhetes caríssimos.
Quererá isto dizer que não sabemos receber as dádivas alheias a menos que paguemos o seu preço? Nem sempre é assim que funciona!
Como receptora de dons procuro estar sempre alerta para não perder nenhum. Como emissora, apenas me resta a esperança que os outros me deixem ligá-los para a frequência das boas emoções. Posso nem sempre conseguir mas não é lá por isso que deixarei de insistir no " Let me turn you on!"

Ana Amorim Dias

Entre ti e o Mundo

Entre ti e o Mundo

Quando me dizem que não gostam de viajar fico em estado catatónico. Chego mesmo a levar alguns minutos até voltar ao normal e tentar compreender as razões de tal calamidade. Pergunto se houve más experiências, situações traumáticas ou algo do género. Mas não. Parece que há pessoas assim, para quem sair da rotina e do espaço em que se está confortável, é tudo menos uma experiência agradável.
Poderei criticar esta visão ou indignar-me com ela? Certamente que não. Compreendo e aceito. O que não consigo mesmo compreender é quem gosta e quer e finge que não pode. O que não sei aceitar é quem se esconde constantemente atrás de desculpas perfeitamente ultrapassáveis devido a uma preguiçosa inércia que finge não saber o que está a perder.
Não tem dinheiro? Junte, daqui a um ano ou dois será mais que suficiente.
Não tem companhia? Vá sozinho/a: são indiscutivelmente as mais espantosas viagens.
Não tem tempo? O tempo constrói-se a partir do tempo que se consegue roubar ao tempo que dizemos sempre não ter. Não tem vontade? Então imagine o que é nascer de novo, mas desta vez completamente aceso, desperto e vivo...
Já fiz viagens que pouca gente faria, em condições que travariam corajosos, impediriam determinados e assustariam aventureiros. Já fiz viagens debaixo de fogos cruzados, com regressos conturbados e muita coisa a perder. Mas fui. E creio que irei sempre. Porque não quero render-me a nada que se meta entre mim e o Mundo.

Ana Amorim Dias

11.2.13

Alimentadores

Alimentadores

Desconfio que sou assim desde sempre, mas só ao longo da vida adulta é que me comecei a aperceber disso de forma mais consciente. Não me consigo libertar da mania de tentar fazer com que as pessoas comam. Dá-me um imenso prazer ver toda a gente a comer e a beber à minha volta. Só estou bem a atulhar os outros de comida, seja quem me aparece em casa, seja nos casamentos cá na Quinta. Desde que haja grandes quantidades de comida (e bebida) a serem ingeridos com convicção e prazer, sinto que estou a cumprir bem o meu papel.
Assim, e assumindo-me como alimentadora há já muitos anos, começo a estranhar o facto de nunca ter analisado mais profundamente as motivações de tal tara. Será que há outras vidas e em alguma delas fui um chefe de tribo que deixou a populança desfalecer à mingua? Ou terei passado eu mesma muita fome? Será que esta mania se prende com carências ou abundância? Será que é por eu própria gostar tanto de comer que quero proporcionar fartura aos outros? E o que é mais curioso é que, tal como faço com a comida, também sou fervorosa adepta de alimentar com palavras. Os "porquês" é que me escapam e isso não me agrada nada.
No entanto, e para me consolar, concluo que o mais importante não é perceber as razões que nos levam a ser como somos, é sim gostarmos imensamente da nossa maneira de ser!

Ana Amorim Dias

Quem faz de nós Peter Pan(s)

Quem faz de nós Peter Pan(s)

Costuma pensar-se que quem gosta deve lutar pela presença constante do outro. Costuma sentir-se a posse como sendo a outra face do amor. Costuma encarar-se a moldagem do outro à imagem dos próprios desejos como uma decorrência natural das relações.
Mas o cume do crescimento emocional não se compadece de costumes e não se atinge com a cedência aos dogmas relacionais instituídos nem com a patética rendição ao teorema da posse.
Gostar de verdade de alguém implica um altruísmo que, embora pouco frequente, começa a ser sentido por muitos. Se gostar muito é fácil, gostar bem é tremendamente difícil...mas só até se aprender como.
Gostar bem é desenvolver todos os esforços para manter a genuinidade do outro.
Gostar bem é manter bem abertas as janelas que permitem que o outro se descubra e construa.
Gostar bem é proporcionar o brilho ao outro, mesmo ao longe.
Gostar bem é aceitar, perdoar, orgulhar.
Gostar bem é conseguir dar ao outro o céu inteiro para que volte a saber voar com a inocente e sonhadora traquinice de Peter Pan...

E tu? Quem faz de ti Peter Pan?

Ana Amorim Dias

9.2.13

Pequeno almoço para a alma

Pequeno almoço para a alma

- Mas que raio...?-
Acordei com um forte cheiro a comida apenas alguns segundos antes de ter o quarto invadido pelos mais improváveis cozinheiros.
Uma bandeja com um pseudo english breakfast para a mãe e outra para o pai. Soergui-me ligeiramente na cama e, ao olhar para aquela visão dantesca, percebi porque é que dizem que, por mais experiência e jogo de cintura que tenhamos, nunca estamos verdadeiramente preparados para as surpresas da paternidade.
Enchi-me de coragem e ataquei o ovo mal estrelado, as salsichas frias e o leite repleto de grumos de chocolate, proferindo as mais deliciadas exclamações de prazer gastronómico, perante o ar orgulhoso das minhas duas encantadoras crias.
Hoje não é Natal, não faço anos nem há qualquer outra ocorrência que justifique este feito...a não ser talvez a demonstração de um gostar tão puro e agradecido que me fez mentir por e com amor.
Garanto que nunca tinha comido uma coisa tão horrível, mas também nunca antes uma refeição me tinha alimentado assim a alegria da alma.

Ana Amorim Dias

Mãe carnaval

Mãe Carnaval

- Mãe! Não quero ir de motoqueiro, quero ir de pirata!-disse-me o marafado miúdo ontem, mesmo antes do jantar.
- Mas João...- repliquei.
- P I R A T A!-
- Então, meu amor, desenrasca-te como quiseres porque não tenho nada preparado.
Ou melhor, ter até tinha: o fato integral da ski e o respectivo capacete fariam dele o motard mais giro do Algarve, mas lá acabei por lhe desencantar um chapéu de corsário e a pala a condizer.
- É o que há! - Disse eu ao entregar-lhe as coisas- o resto da indumentária procura tu nas tuas roupas.-
Teimoso como é, lá arranjou maneira de compor o figurino, deixando-me a pensar que não sou boa Mãe Carnaval.
Não me importam as origens, o peso cultural nem o papel que tem no ânimo das gentes. Não gosto de Carnaval e começo a duvidar vir a gostar algum dia. O motivo é simples: não acredito na veracidade e consistência da alegria com dias marcados. A paródia deve ser uma constante diária que nos faz brincar com a vida e rir de tudo a toda a hora. A folia de representar outros papéis e saber rir de nós e dos outros, só nos ativa a felicidade se acontecer com espontaneidade.
Contudo, enquanto escrevo, percebo que não é a minha intolerância visceral a estes dias que vai fazer de mim uma má Mãe Carnaval... Por isso vou ali num instante comprar uma espada ao moço.

Ana Amorim Dias

7.2.13

Document 1

O voo da mudança

Vinha no carro, a voar por cima da terceira nuvem à esquerda, pensando numa frase que ontem disse: "A mais bela magia humana é a capacidade de mudar."
Disse-o a propósito das pessoas que, de forma consciente ou não, nos mudam para melhor por dentro e são depois indiretamente responsáveis pelas boas influências que vamos semeando à nossa passagem.
A certa altura, no meio do meu voo rasteiro, vejo uma enorme águia, a voar quase tão baixo como eu, na berma da estrada. Era magnífica e enorme, para deleite dos ocupantes do carro.
- Vais escrever a crónica da águia, mãe?- quiseram saber os miúdos.
- Claro!- Respondi, pensando de imediato como ia cozinhar "águias" com "mudança".
Ao verificar a simbologia da águia vejo que não representa apenas a coragem, o poder e a elevação por ser encarado como o mediador xamânico entre o divino e o espiritual. A águia é também considerada o símbolo da clarividência por poder fitar diretamente o sol. A águia tem também a simbologia da renovação e da elevação do espírito a grandes alturas.
Inspiro a vida inteira para dentro dos meus pulmões. Que sinal mais encorajador e poético me poderia a natureza dar nesta manhã em que a mudança esperava pelas minhas palavras?
A verdade é que esta crónica não teria o mesmo peso sem a visão daquela águia. A verdade é que nenhum de nós tem a mesma influência no Mundo se resistir à magia do voo em direcção à sua evolutiva mudança interior.

Ana Amorim Dias

Colinho

Colinho

Amanheci a pensar nela e nas maldades que a vida lhe fez. Contou-me no outro dia quando nos vimos pela segunda vez. Abriu o coração e chorou.
E eu, sentada no chão a seus pés, cingi-a com os meus grandes braços e deitei-lhe a cabeça no colo, num tipo diferente de abraço.
Ontem escreveu-me a agradecer o colinho que, na prática, foi um bocado invertido. Respondi-lhe que os colinhos não se agradecem e que a vida lhe há-de trazer tanto colo que vai compensar tudo o que já passou.
Que o colo cura não é novidade para ninguém. O que talvez nos esqueçamos é que podemos mesmo dar colinho a toda a gente, mesmo a quem mal conhecemos, desde que deixemos o instinto curador apoderar-se de nós. O que nem sempre lembramos é que o colo que damos surte efeitos invertidos e nos cura a nós também.

Ana Amorim Dias

5.2.13

Apaixonados eternos

Eternos apaixonados

Como é que vou cozinhar isto hoje? Esta em particular, é de suprema importância que fique bem explicadinha...
Oh Ana! Começa pelo princípio que costuma dar resultado.
Ok, ok, cá vai,então:

Estava com ela no café, perdidas como sempre nas mil coisas que temos para dizer uma à outra.
- Estar apaixonado é fácil- dizia eu - o difícil é saber ser-se eternamente apaixonado. Para isso é preciso ser muito, muito, mas mesmo muito, inteligente pois só as pessoas com uma inteligência profunda conseguem esse grandioso feito!-
- Eh páá... Lá estas tu com as tuas omeletes de homeopatia psicológica!-
Entretanto despejo o açúcar no café. Um granulado cor de rosa invade-me o poderoso néctar. Olho para o pacotinho para perceber o que se passa. E então leio: "A vida precisa de mim apaixonado." Mostro-lhe o dizer, com um espanto pouco espantado. Rimos com a cumplicidade de sempre perante a corroboração açucarada da minha omelete homeopática.
- Pois é, Ana, a vida precisa mesmo de ti apaixonada!- e guarda-me o pacotinho vazio na mala, já sabendo que ia dar crónica.
Fiquei a pensar na quantidade de pessoas por quem sou, e serei sempre, eternamente apaixonada. Senti todas as eternas paixões que me têm e agradeci em silêncio a minha imensa fortuna.
Mas foi só hoje, ao ver uma imagem parada do trailer de "Sangue quente", que a luz sábia das grandes revelações se me acabou de acender. Na tal imagem parada a legenda revelava: "E sente! Está a aprender a ser humano outra vez"
Sorrio. É mesmo disso que se trata. A vida precisa de nós apaixonados! Porque quanto mais sentimos e nos cresce a capacidade para eternas paixões, mais nos aproximamos de ser humanos de novo!
... E tu? Quantas eternas paixões já conquistaste?...

Ana Amorim Dias

Intrépidos exploradores

Intrépidos exploradores

- Olhem como ela é linda, meninos! Chora e ri ao mesmo tempo!- Diz o Ricardo aos nossos filhos.
A eles passa-lhes ao lado. Como crianças que são também abraçam despudoradamente todas as emoções, por isso em nada me estranham.
Como se pode chorar e rir de uma vez só? Como se pode rir do choro ou chorar de tanto rir? Mais: como se pode envergar o sorriso curado, condescendente e desafiador depois de a vida ter gozado connosco? Como se pode colocar a traquinice inocente num olhar que se recusa a abandonar um brilho eternamente entusiasmado com o que virá depois? A resposta é tão simples que chega a passar-nos ao lado: passamos a ser capazes de tudo quando nos assumimos como intrépidos exploradores de nós mesmos.
Já conquistamos novos mundos, o espaço, as profundezas dos oceanos e continuamos hesitantes na mais desafiante aventura porquê? Será o nosso interior tão assustador que nos faça suspeitar que não seremos capazes de lidar com o que vamos lá encontrar?
Não me restam dúvidas: os aventureiros mais corajoso são os que sabem ir ao fundo de si. E ficar lá, fieis ao que encontram mas, ainda assim, comprometidos com uma reinvenção constante que os faz envergar um sorriso reguila e trocista perante as tempestades vindouras.

Ana Amorim Dias

Lábios

Lábios

Às vezes deixo de ouvir as pessoas. Fico a olhar só para os lábios que se continuam a contorcer como se tivessem vida própria. Carnudos ou finos, longos ou curtos, belos ou feios, fascinam-me pela indiscutível quantidade de informação emocional que a cada momento vertem.
Parece-me até que os lábios sabem dizer, mesmo sem palavras, coisas que os próprios olhos não têm como expressar.
Lábios são mais que as fronteiras da entrada dos alimentos nos corpos, são a própria matéria com que se desenham os sorrisos que alimentam a alegria.
Lábios são manancial de suspiros, geradores de caricias, objeto de desejos e fonte de todos os beijos.
E são belos, todos os lábios são belos... desde que saibam deixar que seja o coração a falar.

Ana Amorim Dias

1.2.13

Conspiração da alegria

Conspiração da alegria

Os carros afastaram-se todos para a berma, suavizando a marcha à passagem da ambulância. Um ato de cívico respeito e solidariedade que creio estar presente em todos. A única diferença foi que ontem, por volta das dez da manhã, aquela sintonia bailada de carros para a berma, me comoveu os alicerces.
Senti o sangue a exceder-se em mim numa gratidão tão profunda que só parei o carro no hospital. Havia fila para dar sangue mas ainda assim esperei pacientemente pela minha vez de me dar.
A certa altura o médico que estava a falar comigo saiu a voar para acudir a um dador desmaiado. Ao voltar pediu desculpa pela forma abrupta como se ausentou.
- Os anjos voam depressa...- respondi-lhe.
Olhou-me nos olhos num entendimento silencioso.
Minutos depois, enquanto um saco se enchia com um pedaço de mim, deixei que a minha alegria causasse gargalhadas tanto aos outros "espetados" como às enfermeiras.
- E quando acordou?...- perguntei a recém desmaiado que ainda recobrava as cores ao meu lado. - ...sabia onde estava?-
- O Dr. fez-me essa mesma pergunta assim que recuperei os sentidos...-
- E você, ao olhar para todas as enfermeiras ao seu redor, respondeu que tinha chegado ao Paraíso...- rematei.
Vim-me embora com a consciência de ter ali deixado muito mais que só sangue e lembrei-me de uma certeza que me tem assolado com uma constância feroz: quando fazemos um compromisso sério com a alegria, o Universo conspira a nosso favor. Foi por isso que ontem, já mais para o fim da manhã, o círculo encantando das dádivas cumpriu outra volta completa: espalho alegria e recebo tanta de volta que tenho que a dar de novo... sob pena de correr com tanta pressão que ainda me rebenta as veias da alma.

Ana Amorim Dias

O samba da perfeição

O samba da perfeição

- Porque é que te preocupas tanto em ser perfeita?-
- Eu?!? Eu tenho a mania da perfeição?-
- Tens.-
A incisiva resposta forçou-me a uma introspeção. Terei mesmo esta forte tendência? Ou terá sido uma errónea ilusão deixada pela constância da minha exigência com tudo e todos?
Fui mais fundo. O que é isso, a perfeição? Quem a define? Onde se encontra? Como se atinge?
E então uma memória surgiu...

Eu estava no Rio. Ensaio de uma escola de samba. Cerveja na mão. Sentidos bem apurados. A batida diabólica começou de rompante. Ensurdecedora. Poderosa. Absorvi a energia que se libertava para o ar. Bebi com os olhos os movimentos dos corpos possuídos num transe hipnótico. Deixei que os sentidos sentissem o mesmo, eu que pensava que até sabia sambar...

E foi no instante em que a memória daquele transe voltou a mim que as respostas se desvelaram: a perfeição é tão somente o estado nirvânico que atingimos ao pôr a alma toda nas coisas.
Se sou perfecionisa? Devo ser. Afinal passo a vida a tentar pôr a alma em tudo o que faço.

Ana Amorim Dias