(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

30.8.12

Nas águas de Formentera


   Cheguei a Formentera de iate. Num momento estava na cozinha, a comer melancia e, no seguinte,  a boca escancarou-se perante a visão daquele azul transparente.  Não me importei com a distância que ainda me separava de terra. Mergulhei. Nada me poderia travar.
  As Baleares, em  particular Formentera, deixam-me sempre a pensar porque é que se perde tanto tempo no ar para chegar às Caraíbas. Nunca encontrei, sob o calor caribenho,  o tropical garbo europeu que por ali se respira. A graça de Sant Francesc, as maravilhosas feiras de rua, o misticismo do ocaso na Mola ou o ambiente hippie chic do Big Sur, são apenas alguns dos componentes mágicos da atmosfera desta ilhota vizinha de Ibiza.  Ninguém o pode negar, Formentera, não percebi ainda porquê,  tem uma aura  mística deveras acentuada. É um daqueles locais em que, mesmo à chegada,  parece que se atravessa um portal que nos dá direta entrada a outra dimensão, a uma realidade paralela.
   Mas Formentera marcou-me em mais do que  uma maneira. Certa tarde, do lado nascente da ilha,  enquanto me divertia naquela sopa turquesa, o tentáculo de uma medusa acariciou-me levemente.   Pelo menos foi o que me disseram os senhores do bar que me forneceram o amoníaco para colocar no ombro, ao ver o tamanho e a intensidade da marca.  Já tinha tido dois filhos, ambos de parto normal e às secas, mas aquela foi, até hoje, a dor da minha vida. A sacana da alforreca fez com que me  lembrasse daquela suave carícia por mais de um ano, o tempo que durou a desaparecer a sensual meia lua que me ficou gravada na pele.
   O curioso é que acabei por ter pena. Achei que a dor que senti me tinha feito merecer ficar com aquela marca para sempre. Durante os meses que a tive em mim afeiçoei-me a ela e habituei-me a olhá-la com o orgulho de quem ostenta uma ferida de guerra.  Acabei  por comparar aquele mar às cobras e às mulheres que, segundo as más linguas, quanto mais belas mais perigosas são.
  Tudo o que fiquei a saber é que o sabor mágico de Formentera não se esquece jamais. Vem-nos agarrado ao lombo da memória e reacende-se, de tempos a tempos,  com alguma maresia mais forte ou ao som do  Café del Mar.    No fundo as experiências boas  são como as vivências  más: umas dão prazer, outras dão dor mas,  a maior parte das vezes, as marcas  ficam  só do nosso lado de dentro,   a fazer parte  de  nós.
 Ana Amorim Dias