(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

29.2.12

Esqueletos no armário



  Os temas para as crónicas do meu “pequeno almoço feliz” amontoam-se em listas escritas na agenda, no telefone, nos blocos de notas ou em papelinhos dispersos que depois me saltam dos mais inusitados lugares.
   Mas,  normalmente,  o tema de cada manhã é escolhido na noite anterior, nos poucos minutos que roubo ao tempo para pensar um pouco nisso.
   Ontem estava a ponderar que talvez hoje me tivesse de socorrer das ditas listas, quando fechei a porta de um pequeno armário do meu quarto. Desde miúda que tenho a mania de não dormir com portas de armário abertas, e penso que tal “tara” se acentuou após ver o “Monstros e cia”.
   No momento em que encostava a portinha, pensei nos esqueletos no armário. Será que tenho este hábito para não deixar que os esqueletos me fujam do armário? Será que existe alguém que não os tenha? Não me parece. Creio que todas as pessoas vão acumulando, ao longo da vida e em maior ou menor quantidade, esqueletos nos seus armários. Alguns vão sendo de lá tirados, mas normalmente outros surgem, para lhes ocupar o lugar.
   Fiquei a  pensar se existirá no Mundo quem não tenha ( ou nunca tenha tido)  nada a esconder de ninguém. Parece-me que há sempre pensamentos, vontades, ideias e  sonhos que não se confessam; que ficam apenas para o seu criador.
  Acabei por adormecer a pensar que, enquanto não inventarem um aspirador de pensamentos, os nossos esqueletos estarão seguros, no local onde pertencem: o armário.
Ana Dias

28.2.12

Grunhido futebolístico


Embora os homens sejam bem mais fáceis de decifrar do que as mulheres, há uma ocasião em que parecem seres vindos de outro planeta.
   Quando um homem está a torcer pelo seu clube, qualquer antropólogo, psicólogo ou cardiologista pode fazer inúmeros estudos e chegar às mais curiosas conclusões, mas talvez também não consiga decifrar o enigma que me atormenta: será que os homens se transformam, ao ver futebol, em seres vindos do planeta dos Urros??
Ninguém me tira da ideia que sim. O exaustivo estudo ( como não olho para o ecrã, acabo por reparar em cada expressão facial e corporal e analisar cada som) de uma vida inteira a ficar de boca aberta perante os estranhos rituais comportamentais dos machos a ver a bola, tem-me revelado que até os mais inteligentes e bem preparados se metamorfoseiam em seres algo primitivos que estão a meio caminho entre o Tarzan   e os seus amigos gorilas.
   Os F…s., C…..s e outros bogalhos, jorram numa catadupa que noutras situações não se ouve. Em campo todos são, numa ou outra altura, filhos de alguém. Mas os urros e grunhidos, sofridos e guturais, chegam a fazer-me temer pelas cordas vocais dos infelizes sofredores. E o que dizer dos saltos do sofá que me fazem ir depois, à sucapa, verificar se debaixo das almofadas há molas de extrema potência?
  Outros clássicos, de refinado gosto, são as palmadas dadas na perna de quem está ao lado ou os momentos de beleza em que se atiram ao chão, de joelhos, numa tentativa vã de deslizar na carpete como os jogadores deslizam na relva após marcar algum golo.
E por falar em golos, como poderei encontrar palavras para descrever o momento em que a equipa pela qual sofrem marca o providencial golo? Os saltos, gritos e abraços, que se juntam à vermelhidão dos esbaforidos rostos, completam um quadro quase irreal que me revelam que os homens, por mais que não venham do tal planeta dos Urros, têm o gene do grunhido futebolístico.
Muito mais há a dizer sobre tão interessante temática, pelo que me proponho a, num futuro próximo, visionar jogos nas tascas,  para vos apresentar mais conclusões.
( continuará….)
Ana Dias

27.2.12

O sábio homem


Quando conheci o Francisco não tinha como prever que estava perante um sábio homem. Não um Homem sábio, mas um ser masculino com uma sabedoria rara.
Da primeira vez que me falou, por acaso, da ex-mulher, denotei um carinho tão sentido que, por uma fração de segundo, quase julguei que ainda a amava.
O Francisco tem outra família agora, uma mulher que ama e dois filhos adolescentes. E tenho a certeza que é feliz… por ser sábio.
   Não teve filhos com a primeira mulher porque ela é um ser diferente, uma  alma nómada incapaz de se render como sedentária matriarca.
  Confidenciou-me que ela sempre soube qual era o preço da liberdade.
Um dia não resisti e perguntei-lhe o porquê do fim daquele casamento.
- Ninguém percebeu o divórcio porque nos amavamos muito. – Explicou-me em curtas palavras. – Só que o meu amor era tão grande que apenas o pude demontrar deixando-a  voar… -
Ana Dias

24.2.12

“Já o rego não vai direito”


   O José Joaquim Botequilha, mais conhecido como Zé Bambo, repete constantemente uma frase que, com uma ou outra variante, reza mais ou menos assim: “Mau… Já o rego nã vai derêto!”.  
    É que o Zé, quando a vida não lhe vai de feição, aclara a garganta num ronco profundo e profere com solenidade a dita frase, numa espécie de aviso premonitório. Como quem diz: ou isto muda ou as consequências virão depois.
    À força de tantas vezes o ouvir,  acabei por prestar atenção àquelas  palavras que lhe saem sempre com a voz semi rouca e meio toldada, mas creio que apenas as compreendi há uns tempos quando, num raro e muito aplaudido pulsar da minha fraca veia bucólica, me decidi a ajudar a plantar favas e griséus ( a quem não seja algarvio:  griséus são ervilhas). 
   Enquanto ia deixando cair as favas secas no solo fértil que as esperava, reparei que os regos estavam um pouco para o lado do torto.
- Mas que raio… -  pensei  - Afinal é por isso que o Zézinho diz sempre que o rego já não vai direito. – Não me preocupei pois percebi que não havia razão para alarmes: não era por o rego estar torto que as favas não nasceriam!
  Passei ontem pela horta. As favas e os griséus vão despontando, todos convencidos e viçosos, apesar do rego torto! O que me leva a concluir que, na maior parte das “plantações” das nossas vidas, as condições não precisam de ser perfeitas para as plantas germinarem. Na verdade nunca ouvi falar de planta alguma que deixasse de nascer só por o rego estar torto.
Ana Dias

23.2.12

Pessoas

As pessoas não se medem aos palmos, medem-se nos carinhos já dados pelas  palmas das suas  mãos; medem-se nos planos que concretizam e nos aplausos que  os seus feitos merecem.
Os Homens não se devem julgar pelas aparências, mas podem julgar-se pelo olhar que sustentam; pelos ideiais que defendem e pelos atos de amor ao próximo
Porque cada pessoa é  mais que a soma das suas atitudes, é a multiplicação das suas concretizações.
Cada pessoa é mais que os caminhos que percorreu, é a marca que deixou no seu percurso
Cada pessoa é mais que os sorrisos que distribuiu, é a coleção de todos os sorrisos que recebeu de volta
Cada pessoa é mais que as palavras ofensivas e agressões perpetradas, é o perdão que pediu e o arrependimento sentido
Cada pessoa é mais que os filhos que teve e educou, é a pedra basilar dos feitos de todos seus descendentes
Cada pessoa é mais que todo o amor que sentiu, é a  quantidade de amor que soube dar, receber e potenciar
Cada pessoa é mais que a soma das suas conquistas, é a equação perfeita que, subtraindo o desapontamento ao erro, gera aprendizagem como resultado
As pessoas não se podem medir aos palmos nem julgar pelas aparências porque cada Homem é mais que um Mundo… é um Universo em expansão.
Ana Dias

22.2.12

Comandar os sentimentos


  Partindo das confissões de uma amiga, dicido-me a escrever sobre relacionamentos e sobre a forma como, sem êxito nenhum, tentamos comandar os sentimentos.
  Confidenciava-me ela que, à força de tanto empenho mútuo em tentarem “construir” um relacionamento descomprometido, ela e o seu ( como lhe hei-de chamar?) par, perceberam que os sentimentos de carinho, amor, ciúme e posse se instalaram sem pedir autorização.  Quase aposto que,  como eles,  deve haver muitos. Pessoas que já sofreram e decidem avançar apenas para relacionamentos seguros em que nada é esperado nem cobrado. Não se esperam telefonemas nem mensagens constantes.  Não se cobra que o outro diga “amo-te”, na verdade é disso mesmo que se foge. Mas os seres humanos são mesmo assim, dotados de sentimentos que brotam mesmo sem serem semeados e que acabam por estender os seus viçosos ramos em abraços envolventes.
  O que fazer quando um “ não relacionamento” assumido começa a gerar os tais sentimentos que se procurou não ter? Devem ser alimentados ou arrancados sem misericórdia? Creio que cada um sabe de si, mas negar à alma o seu alimento não me parece boa solução.
  Disse à minha amiga que, se todos pudéssemos mandar nos sentimentos ninguém amaria pela segunda vez. O amor costuma estar associado a alguma dose de dor, havendo até quem preoconize que se não doer não é amor. Assim, quando um amor acaba,  em qualquer das vestes que o fim de um amor pode vestir, o normal seria fechar-lhe o coração  e ficar por ali, numa existência serena e semi vegetativa. Mas o marafado do coração, ou qualquer que seja o local onde em nós nascem os sentimentos, sobrepõe-se ao que lhe dita a razão. Resultado: os sentimentos, de início sorrateiros, vão tomando conta da pessoa, de uma forma tão irónica quanto descarada, até que nenhuma outra solução reste do que sucumbir-lhes, na habitual vertigem de quem voltou a amar e se sabe,  de novo, no fio da navalha.
  Termino com as palavras com que finalizei a conversa com a minha amiga: - Querida, o coração talvez não tenha sido feito para sofrer, mas para gelar é que não foi de certeza! –
Ana Dias

20.2.12

Altifalante

    Olho para o lado porque é inevitável. Observo-a disfarçadamente apesar de saber que ela é daquelas pessoas que não se importa com isso. Caso se importasse, talvez falasse um pouco mais baixo e eu não tivesse sabido, em menos de cinco minutos, que a vida lhe corre mal porque a tia da cunhada do primo da melhor amiga usou um vestido igual ao dela na festa do passado fim de semana.
   Pouso o jornal. Ela está a digitar outro número no telemóvel. A política e economia vão ter que esperar um pouco porque, a julgar pela sua expressão facial, este telefonema também vai trazer revelações  bombásticas,  propagadas aos quatro cantos da esplanada  pela forte sonoridade da sua  estridente  voz.
- Queriiiiiidaaaaa!! Tás boaaa? Nem vais acreditar. Tás sentada? –
Fico com o pastel de nata,  indeciso, a meio da boca entreaberta, porque o espanto com a quantidade de decibéis com que a senhora fala, tira-me o reflexo da dentada. E ela continua, com os lábios bem delineados a mexerem-se com convicção, enquanto as compridas garras escarlate lhe bailam nas pontas das  expressivas mãos.
- Claro! E eu disse logo para não contarem comigo porque não ia deixar de ir à entrega dos prémios, para ir ao aniversário do miúdo deles. O quê? Pois querida, claro. -
Lá estava. Agora as quatro pessoas dispersas pelas mesas daquela esplanada já sabiam todas que ela ia a uma entrega de prémios. Desejei que senhora se desse por satisfeita e fosse fazer o seu pregão para outro local. Continuei a ouvi-la, mas cada vez mais ao longe, porque começava a escutar a minha vozinha cá dentro a sussurra-me algo importante: “ Já repaste, Ana? Não é a sonoridade que dá valor ao que é dito. Na verdade aqui tens um belo exemplo de que, muitas vezes, há coisas que  vale mais calar que dizer.”
Ana Dias

17.2.12

Carnavais

- Vá lá,  João… – Não me bastava o despertador não ter tocado. O estupor do puto tinha que me estar a moer o espírito com a roupa.
- Não quero essa! – embirrou, a arrastar os “ss” com mimo.
- “ Graças a Deus que o Tomás não se quis mascarar.” – Pensei, enquanto o ouvia, no seu quarto,  a preparar-se para a escola.
- Olha pá, estás a fazer-me perder a paciência! Amanha-te! – E fui preparar o pequeno almoço.
O João acabou por vir para a escola preparado para qualquer eventualidade, não fosse o seu primeiro Carnaval na primária apanhá-lo desprevenido, mascarado no meio de colegas vestidos de forma normal. Calças de neve, blusa de gola alta, blusão e capacete enfiado na mochila. Resolveu o seu dilema cobrindo todas as possibilidades: aparentemente vestido de forma normal e sabendo que, em caso de emergência, punha o capacete e se transformava em motard.
  Confesso que adorei a solução e a sua capacidade de se precaver. Afinal a minha própria visão do Carnaval é muito ambígua: acho ótimo que as pessoas se mascarem e divirtam com folias e brincadeiras… apenas me parece mal que isso tenha data marcada. Parece-me muito mais sábio que as pessoas o façam quando estão para aí viradas,  porque a predisposição para a galhofa não pode ser algo forçado, a soar a falso, com disfarces mal amanhados que não se adaptam ao clima dos nossos frios Carnavais. Nas poucas vezes em que me predisponho a ir espreitar os desfiles, costumo ficar com dó das enregeladas moças que, brancas e forradas de celulite, se arrastam pelas ruas a mover-se com uma ausência de ritmo tão grave que chega a ser, para o samba, uma espécie de missa de sétimo dia.
  Foi por isso que gostei de ver o meu filhote mais novo, a usar da sua auto determinação repleta de mau feitio, a saber dar uma no cravo e outra na ferradura, e a preparar-se para, caso a folia lhe descesse à disposição, se divertir nestes Carnavais sem alma.
Ana Dias
 

16.2.12

Uma noite bem dormida

     Acredito com convicção que pais ansiosos potenciam a ansiedade nos filhos, mas nada é mais natural para um progenitor do que satisfazer as necessidades das crias, fornecer-lhes condições seguras de desenvolvimento e impedir que sofram qualquer tipo de dor ou dissabor.
   Se a criança chora há que calá-la a qualquer custo. Não se dá uma palmada porque as marcas emocionais ficam para a vida. Os biberons têm que ser fervidos e só se pode “introduzir” o peixe no dia exato em que cumpre sete meses. Mais tarde é-se mau pai se a criança vai sozinha para a escola mesmo que a escola seja na esquina. Andar de skate nem pensar e de bicicleta só em terrenos planos e com joelheiras e capacete. A dieta tem que ser vigiada de perto e a ajuda tem que ser dada em cada disciplina. Não se é bom pai se a criança não andar em, pelo menos, uma atividade desportiva e a aprender um instrumento. Além de que o boné tem que estar sempre na cabeça e o telemóvel  ligado em qualquer circustância.  E acudam-nos todos os santos se os inocentes fazem  uma nódoa negra, uma esfoladela ou partem uma perna!
As crianças ficam a saber que há pessoas más que os podem raptar; que se comerem um chocolate apanham diabetes e que se não forem o melhor aluno da escola vão acabar a pedir esmola à porta da igreja. Elas ficam a saber que o mundo é um lugar feio e hostil em que se têm de proteger constantemente de tudo e de todos para não correrem o risco de se magoar fisica ou emocionalmente.
  Quando o Mundo é assim apresentado aos miúdos, através do excesso de protecionismo dos seus ansiosos pais, é natural que se tornem transtornados, ansiosos e dependentes de ansioliticos na idade em que antigamente se vivia a boémia vida de estudante da faculdade.
Mas afinal estes pais estão a proteger os filhos, tirando-lhes todas as pedras do caminho, ou estarão, pelo contrário, a potenciar seres incapazes de cortar o próprio bife?  Porque os pais, ansiosos ou não, não vão estar lá sempre para lhes pôr o bife à frente. Nem é esse o papel deles!
Um bom progenitor deve ser capaz de perceber o momento do colo e o da palmada; o bom progenitor tem que entender o momento certo para segurar na mão dos filhos e a hora exata em que a deve largar. Os bons pais e mães não caçam toda a vida para os filhos: ensinam-lhes a técnicas de caça e fazem-nos praticar. Os melhores progenitores não colocam os filhos em redomas de cristal,  fazendo-os perder a infância,  nem lhes ensinam o mundo como um lugar feio e mau, pelo contrário, mostram que a vida é um lugar bom onde por vezes aparecem pessoas menos boas e que é apenas dessas que devem ficar longe.  Os pais que vêm a ter filhos de corpo e mente sãos, são o que os deixam dar as quedas próprias da idade, mostrando que, aconteça o que acontecer, vão estar lá com o algodão e a água oxigenada, ou com o carro pronto para ir ao hospital pôr um bocado de gesso.
   Os pais que conseguem gerir a ansiedade com alguma eficácia costumam ter filhos que dormem pacificamente durante toda a noite e que, mesmo depois de adultos, continuam a dormir como anjos,  porque sabem que o mundo, mesmo não sendo por vezes seguro, é um lugar onde sabem como viver.
Ana Dias

15.2.12

O encontro


Olhámo-nos e sorrimos. Dois beijos e um novo olhar. Caminhámos para o café onde nos sentámos ao sol. Nunca nos tinhamos visto. Nem falado, na verdade. Apenas alguns mails, trocados nos últimos dias, nos davam a garantia de que gostaríamos uma da outra.
Com uma velocidade surpreendente, a conversa de circunstância deu lugar a um entendimento profundo, feito de torrentes de palavras que nos iam revelando semelhanças de caráter.
Não consegui perceber se o tempo que passámos juntas voou depressa demais ou se conseguimos fazê-lo render de forma quase irreal, mas entendo que há encontros destinados a acontecer. Momentos que, por mais que esperem, acontecem de qualquer forma.
E enquanto recordo,  com uma alegria inexplicável, este encontro-sintonia, não consigo deixar de pensar que os nossos pais, amigos de toda a vida, talvez nunca tenham imaginado que os laços que os uniam se podiam transmitir.
Ana Dias

14.2.12

Pessoa Perfeita




A pessoa perfeita sorri com os olhos e canta no duche.
A pessoa perfeita sabe rir de si mesma e gosta da sua companhia
A pessoa perfeita tem muitos defeitos mas tenta melhorar-se
A pessoa perfeita transforma o ódio em leve irritação
A pessoa perfeita consegue transformar uma leve irritação numa memória apagada
A pessoa perfeita sabe viver no agora, mas esquece-se muitas vezes de o fazer
A pessoa perfeita segue os sonhos sem se importar muito se os consegue ou não tornar reais
A pessoa perfeita às vezes está só na multidão, outras vezes tem companhia na solidão.
A pessoa perfeita sabe amar. E sabe quando prender e libertar.
A pessoa perfeita põe o dedo no nariz. Apenas não o faz no carro.
A pessoa perfeita existe para subir,  mas sabe que descer é menos cansativo
A pessoa perfeita pode ser demasiado gorda ou demasiado magra, mas gosta sempre de si
A pessoa perfeita tem indecisões que resolve a ouvir a razão e a seguir o coração
A pessoa perfeita respeita os outros porque se respeita sempre a si própria
A pessoa perfeita conversa muito consigo e conhece o perdão
A pessoa perfeita sabe proteger e pedir proteção
A pessoa perfeita dá tempo a si mesma, mesmo tendo que o “roubar” aos outros
A pessoa perfeita não é imutável, mas pode ser constante
A pessoa perfeita gosta, à partida,  de todas as outras pessoas
A pessoa perfeita conhece a condição humana
A pessoa perfeita é genuína a maior parte do tempo
A pessoa perfeita sabe estar num confronto a ver tudo de cima
A pessoa perfeita surpreende-se,  mas compreende-se
A pessoa perfeita sabe que tudo tem prazo e  vive de acordo com isso
A pessoa perfeita conhece o amor, mas faz da amizade um culto
A pessoa perfeita aceita-se na sua perfeição imperfeita…
Ana Dias

13.2.12

Todo o terreno



- A tua irmã, aqui, enjoava de certeza! –  Disse a minha mãe enquanto subíamos a sinuosa serra.
   Dei graças por nunca enjoar, qualquer que seja o percurso ou meio de transporte e, sem pensar, saiu-me:  - Sabem… Se eu fosse um carro, acho que era um todo o terreno! –
   Percebi de imediato que as gargalhadas tanto resultaram do meu inocente tom infantil como do próprio conteúdo.
   Mas, se pensarmos um pouco, muito se pode “retirar” desta   “carrosofia” !   Há pessoas que são como aqueles carros, nem feios nem bonitos, que andam só por andar; há pessoas com raça e estilo inatos, que circulam pela vida como se tivessem o simbolo da Rolls  a sair do meio da testa;  e há outras que, como alguns tristes exemplos de carros tunning, acabam por ser uma fraude, ao fingir ser o que não são.
   Alguns  são como os carros familiares: espaçosos, fiáveis  e confortáveis, capazes de “carregar” em segurança, quem quer que decidam transportar. E outros, como carros de corrida, apenas pretendem da vida as emoções mais fortes, mas normalmente estampam-se ao fim de umas quantas acelaradelas mais fortes.
   Há ainda pessoas que lembram os veículos governamentais, que se suportam com dinheiros alheios para sustentar a forma faustosa de viver, que não têm modo de comportar. Outras são tal e qual ambulâncias ou carros de bombeiros, sempre prontas a meter-se nas vidas alheias mas com as melhores intenções.   Há os parecidos a camiões de carga e os que fazem lembrar os “mata-velhos”, sempre à frente dos outros, a atrasar-lhes a vida.
   Há as pessoas que, como os mais belos carros, andam sempre no ponto, mas cuja “manutenção” costuma ser exorbitante e também  há os desportivos, de linhas ergonómicas perfeitamente invejáveis.  Mas os meus preferidos continuam a ser as pessoas todo o terreno, fiáveis nos caminhos mais duros. São estes que, embora sem o conforto de outros carros, são capazes de se transportar em segurança por caminhos que os outros não têm como percorrer.
   Mas não quero terminar sem uma referência aos carros-vassoura que, sem que ninguém os note ou valorize, vão limpando e restabelecendo a ordem à sua passagem…
Ana Dias

10.2.12

Quando tudo está frio e seco



- As plantas estão a começar a morrer… - Disse ele com  tristeza.
- Claro… - Respondi. – Em vez de calor e humidade só têm frio e séca….
- Realmente…. É o oposto do que precisam para florescer…
   Há uns dias não pensei muito no caso, mas hoje, enquanto levava os miúdos à escola ( e o João me perguntava quantas barras de ouro são precisas para comprar um Ferrari…)  ocorreu-me que talvez as pessoas sejam um pouco como as plantas. 
Num ambiente humano que seja frio e seco começa-se a definhar e fica-se também frio e seco. Talvez seja por isso que há pessoas frias e secas. Mas qual é o contrário de pessoas frias e secas? Pessoas quentes e húmidas? Não me parece pois a imagem que prontamente nos surge é a de alguém esbaforido, suado e malcheiroso …
    O contrário de pessoas frias e secas, quanto a mim, são seres afetuosamente quentes e carinhosamente dados. O contrário de pessoas frias e secas são seres que, mesmo em contextos humanos frios e secos, conseguem trazer ao ambiente o seu caloroso modo de ser, fazendo com que a atmosfera mude; fazendo com que quem está ou é frio e seco  comece a florescer com carinho.  E todos nós podemos ser essas pessoas que, como golfadas de tempo tropical, transformamos o nosso entorno e a temperatura emocional de quem nos rodeia.
Ana Dias
   

9.2.12

Saber feito emoção


   Os livros forravam a parede da sala. Enormes, de capa grossa, as lombadas gravadas de nomes estranhos  com que fui povoando a minha infância. Abria-os e via, no seu interior, as imagens das que os grandes pintores tinham pintado.
   Não me lembro de ter decidido,  nessa época, que um dia veria os originais, mas sei que a reverência à arte me ficou gravada cá dentro. Não me lembro de quantas vezes mirei, estupefacta, as fotografias dos artistas e  suas obras, mas recordo os cheiros desses livros e a forma como se interiorizou em mim a importância daquelas pessoas…
   Há alguns dias, no Museu de Belas Artes de Buenos Aires, dei por mim a pensar nos porquês de me arrepiar por dentro e por fora, na presença dos quadros e esculturas dos grandes ( e pequenos) nomes da arte. Enquanto me detinha, profundamente emocionada como sempre nessas ocasiões,  perante obras de Van Gogh, Monet, Degas, Gauguin, Renoir e Loutrec, concluí que o que dá um especial sabor às artes plásticas é o facto de os artistas terem, de facto, estado em contacto físico com as obras. Quando oiço um cd  do Frank ou leio um livro do Hemingway, sei que eles não tocaram nos objetos do meu prazer, que são apenas cópias. Mas quando estou perante a Pietá, o Pensador ou Las Niñas, sei que o Miguel Ângelo, o Rodin e o Velazquez estiveram perante aqueles objetos, a derramar sobre eles toda a sua genialidade. E isso emociona-me profundamente!
  Será tal efeito causado pela biblioteca que tive a fortuna de ter em casa durante a infância? Será por ter nascido de pais formados em Belas Artes que me souberam transmitir tais valores? Ou será apenas por saber um pouco sobre a vida, obra e importância de tais artistas no Mundo?
   E então, enquanto ia deslizando numa nuvem de prazer pelas galerias de mais um fantástico museu, ocorreu-me que talvez a emoção nos venha do conhecimento e, se assim é, quero conhecer e saber cada vez mais, para melhor me poder emocionar…
Ana Dias
  

8.2.12

O encantador de seres vivos



- Não vais dar-me nenhum beijo nem dizer “Até logo meu amor”, ouviste?
- Sim, João…
- Então vamos embora.
   Eu tinha a ideia que só por altura da escola secundária é que os miúdos começavam com as vergonhas das demonstrações afetivas por parte dos progenitores, mas estou a aperceber-me que nem sempre funciona assim: o Tomás, no 5º ano, não se importa nem um pouco com os apaixonados beijos que à porta da escola lhe lanço, enquanto o João, no 1º, exige ser tratado com uma distância quase impessoal.
  O mais velho não se cansa dos dez mimos e aconchegos que, à noite, lhe vou  dar à cama. O outro faz-me um sorriso trocista e, já de olhos fechados, apenas espera que eu não o chateie mais.
  Pergunto-me com qual das “modalidades” mais me identifico e não encontro resposta… apenas entendo que devo  respeitar a forma como cada um quer ser amado. E sinto uma gratidão enorme por ter as duas modalidades: a do ternurento Tomás, que se derrete com mimos, e a do decidido João, esse encantador de seres vivos.
Ana Dias

7.2.12

Amor e uma pastilha



   A meio da conversa  vejo-o a tirar a pastilha da boca, enrolá-la num papel e colocá-la junto às mudanças. Acompanho os meticulosos  movimentos com o pasmo de quem  esperava que ele abrisse o vidro e a fizesse voar pela janela… afinal estavamos na auto  estrada e as pastilhas são, provavelmente, biodegradáveis.
Ele apercebe-se do meu espanto trocista.
- O que foi?-
- Nada. Achei piada à forma como não atiraste a pastilha pela janela do carro. – Respondi.
- Não posso!...- Respondeu ele com uma convicção conformada.
Comecei a rir. Qual seria, desta vez, a teoria do meu irmão?
- Mas não podes porquê, Miguel?
- A Ilda diz que os passarinhos pensam que é comida e ficam com a pastilha presa no bico… depois não podem comer e morrem,  coitadinhos…. –
Nesse momento as minhas gargalhadas invadiram o carro. Não sei se achei mais graça à explicação dos fundamentos daquela atitude, se ao ar piedoso que colocou ao descrever o triste fado dos pobres animaizinhos.
- Não gozes, pá! Não me digas que atiras as tuas pastilhas pela janela do carro! –
Não lhe respondi. Mas nos últimos meses, sempre que tenho uma pastilha para deitar fora, lembro-me com carinho, do coração gentil deste meu irmão tão lindo… e de como, por amor à minha cunhada ( e aos pobres passarinhos, claro), ele guarda as pastilhas no carro, para as colocar no lixo.
Ana Dias

6.2.12

Parabéns a você...

   Ela chora. Tem uma dor que, num súbito lampejo de consciência, se materializa: esqueceu-se dele. A meia noite passou sem que lhe cantasse, na sua voz meio rouca, os sentidos parabéns. Sobe as escadas. Corre para ele. Vê-o na sala, com o seu ar de homem menino, de sorriso colado aos lábios, com o perdão do amor no olhar.
   E então ela acorda. O sonho é real. A meia noite passou sem que lhe cantasse a canção. A que lhe cantava sempre com a voz emocionada e rouca. O dia começa a ameaçar amanhecer, mas liga-lhe mesmo assim.
- Parabéns a você… - Começa a cantar-lhe. A voz ainda mais rouca, embargada pelo desgostoso choro.
Ele ouve-a. Com atenção e desperto pois ainda não dormiu.
- Desculpa… - Diz ela quando acaba a canção.
- Está tudo bem … Eu amo-te!-  Diz ele em jeito de conclusão. Agora já pode dormir.
Ana Dias

3.2.12

Aspirador de mulheres



Tenho um amigo que costuma dizer que as lojas são aspiradores de mulheres.
- A sério, Ana! Sabes a quantidade de vezes que já me aconteceu ir na rua, na conversa  com algum dos seres do teu género ( ou deverei dizer espécie?) e olho para o lado só para perceber que estou a falar sozinho porque ela já foi “sugada” por uma loja?? – Quando diz isto está sempre entre o estado divertido e um amuo pincelado de incredulidade.  
  E eu encolho os ombros a sorrir. Não tenho defesa possível. Bem podia esgrimir o tema, tentando proteger o meu género ( ou devei dizer espécie?) com argumentos que nem a mim me convenceriam, mas não vale a pena. Concordo e dou a mão à palmatória.
- É que quando uma pessoa já vai mentalizada para umas horas nas compras,  ainda se aguenta… mas somos constantemente apanhados desprevenidos! Não há nada a fazer!  - Torna ele.
  E nem vale a pena explicar-lhe que as lojas cheiram bem e são um agrado aos nossos olhos e demais sentidos. Quando uma mulher entra numa loja, ou melhor, é “aspirada” lá para dentro, entra num mundo perfeito em que todas as coisas que nos ocupam a mente são filtradas à porta e ficam de fora, na rua, entregues aos elementos. Quando uma mulher se vê no reduto sintetizado da perfeição, com todas as cores, formas e brilhos, perde-se da existência banal e sintoniza-se numa frequência quase poética.
   As lojas, para as mulheres, são quase como um bom romance. Lançam-nos num universo de beleza sedutora na qual voamos para longe, para hipotéticas festas perfeitas em que, como deusas do Olimpo, poderiamos envergar aqueles fabulosos vestidos e encantadores acessórios. 
   Posso calar-me quando o meu amigo diz que as lojas são aspiradores de mulheres, mas falo agora, para vos dizer que concordo e que… ainda bem que assim é porque, afinal, merecemos ou não que algo nos salve de todo o esforço que constantemente fazemos para o bem estar de todos ao nosso redor? 
   E vocês, mulheres que estão a ler esta crónica, digam lá se não deveríamos todas dar graças por essa força indecifrável mas poderosa, qua constantemente nos suga?
Ana Dias

2.2.12

Os níveis do Sudoku

  
 Devo ter herdado da minha mãe  esta mania de fazer palavras cruzadas e sudokus.  O sudoku, por exemplo, é uma charada  matemática  em que os números se têm que ordenar de uma única forma possível, e  é bastante agradável pela sua capacidade de nos fazer desligar o pensamento de tudo, restando apenas, a ecoar na nossa mente, um raciocínio numérico e apaziguador.
   Como em quase todas as minhas paixões, também nas fases “sudokuscas” mais intensas que por vezes atravesso, torno-me de tal forma compulsiva que tenho que ter revistas de sudokus, no quarto, na sala, no carro, no escritório e até nas casas de banho…  
   Mas perdoem-me pois estou a alongar-me demais para vos transmitir o que pretendo. É que o sudoku ( e quem o faz comprovará que é verdade) costuma ter quatro níveis de dificuldade, normalmente assinalados por estrelinhas.  Há alturas que me apetece estar a fazer os mais fáceis, os que são “de caras” e que, para dar mais interesse, até costumo cornometrar. Mas,  a maior parte das vezes, quanto mais difíceis são, mais prazer me dão! Ando às turras com os números,  desenvolvo novos métodos, coloco todas as hipóteses, desespero e, finalmente, consigo: o sabor é tão melhor!
 E é precisamente aqui que chego à ideia que vos queria apresentar. Já pensaram que os desafios que a vida vos trás podem ser como sudokus? Os fáceis, realmente,  têm essa vantagem: são fáceis… facilmente concretizáveis e de agradável e pronta resolução. Mas quanto mais estrelas trazem os desafios da vida, mais eles nos deveriam dar um enorme gozo e sentido de realização. Porque, bem feitas as contas, é quando os sudokus da vida são difíceis, que percebemos que as nossas capacidades são muito maiores do que suspeitávamos. E é nesses que efetivamente evoluímos e nos realizamos enquanto pessoas racionais, inteligentes e preparadas.
  Por isso, meus caros, da próxima vez que o “sudoku” vos pareça impossível de solucionar, inspirem-se, superem-se e… realizem-se!
Ana Dias

1.2.12

Por um fio de pensamento


  Desliguei o telefone com um sorriso. Não falávamos há alguns meses, mas despediram-se com as frases que desde há tantos anos usam – Adios, hija mia. Volta depressa! Sabes  que a nossa casa é tua. 
  Sempre que  o Luis e a  Luz me ligam, da sua casa em Medellin, Colômbia, intensificam-me a alegria de saber algo que nunca esqueço. Que sou amada em vários pontos do Mundo. Que lhes deixei a mesma marca de amor que também eles gravaram em mim.
  Mas o dia de ontem teve outros reencontros telefónicos e cibernáuticos de valor inestimável. Várias pessoas que  amo,  e que há muito tempo não vejo, contactaram-me… como se o facto de eu me andar a lembrar mais delas lhes tivesse despertado algum sexto sentido que lhes criou a vontade de me ouvir a voz.
  E de repente percebo que talvez existam ondas invisíveis que dão a volta ao mundo em instantes breves mas intensos. Ondas que, como uma mágica brisa quente,  percorrem continentes e mares e tocam no ombro de quem está longe, sussurrando o nosso amor e lembrança.  Quem sabe se todas as pessoas de quem me tenho lembrado não “ouviram” o meu doce pensamento, através do misterioso fio que nos une?
Ana Dias