(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

30.6.13

Assinar de coração

Assinar de coração

Ao longo dos últimos dias, ao levar o João às férias ativas, em vez de ir direta ao sítio certo, tenho falhado sempre o alvo. Devia virar logo à esquerda, trezentos metros antes da sua escola, mas vou dar a volta lá ao fundo depois de perceber que estava outra vez no aluado mundo das minhas divagações. Se isto me irrita? Nem um bocadinho. Pelo contrário, traz-me um sorriso feliz: posso falhar o alvo da vida real, mas estou no caminho correto deste crescimento interior.

Ao longo dos últimos anos tenho passado grande parte do meu tempo consciente a escrever em pensamento e, aparentemente, o mecanismo tem-se otimizado com uma tal eficácia que se tem tornado normal funcionar também em pleno não só quando estou a render-me ao sono como a regressar dos seus braços.

Mas foi ontem que tudo ganhou mais sentido. Andei a dar uns retoques de pintura, em paredes cá da quinta e, quando estava a terminar, consciencializei-me da vontade de assinar. Tornou-se óbvio que não iria fazê-lo como em cada crónica e livro, com "Ana Amorim Dias", por isso segui o instinto e assinei de coração.
Quando dei uns quantos passos atrás e ganhei mais perspectiva, consegui uma visão mais abrangente. Entendi finalmente que é assim que assino todas as criações: feliz e...de coração.

Ana Amorim Dias

Pelo sol ou pela vida?

Pelo sol ou pela vida?

- Não te rias, Ana! A sério: sou uma pessoa marcada!-
- Pelo sol ou pela vida?

Como ela tinha acabado de regressar da praia a minha pergunta saiu por instinto mas agora, quanto mais me lembro da questão mais lhe reconheço a pertinência.
Começo a divagação constatando que uma vida que não marca é como um Verão em que faltamos à praia. De que serve uma vida que não marca? Uma vida que não bronzeia nem nos deixa com um ar mais saudável e sensual?
"Mas, Ana, muitas vezes a vida marca com dores, com tristezas e sofrimentos...", poderão vocês contrapor.
Não posso falar em nome das "queimaduras solares" que a vida trouxe aos outros mas o que fiz com os meus próprios "escaldões" confere-me legitimidade para dizer algumas coisas.
Detenho-me um momento a fazer uma compilação dos dolorosos raios com que a vida já me queimou. Podem ter sido só três ou quatro mas fariam tombar qualquer um. Então porque é que me lembro de tudo sem me recordar da dor e com um sorriso tranquilo a brotar no corpo todo? Qual foi a alquimia que transformou queimaduras neste bronzeado perfeito? Aceitar que a vida é assim, que às vezes queima a valer; aceitar o ocorrido e encher o coração de amor, perdoar, seguir em frente, seja lá para onde for. É que o que não nos liquidou só nos pode tornar mais fortes.
Temos a sensata opção de não nos expor demasiado ao sol, mas não nos expormos à vida não devia caber nos planos de ninguém. Ela queima, é verdade, mas é com cada escaldão dela que conquistamos a hipótese de andar de alma saudável, forte, feliz, sensual... e bronzeada!

(E Luís? Esta é para si, caro amigo!)

Ana Amorim Dias

De luz e escuridão

De luz e escuridão

- Ai mãe... Está tão escuro...-
Seguíamos de carro por uma estrada isolada, o João e eu. Liguei os máximos quase instintivamente, para ver se lhe passava.
- Deixa-me explicar-te uma coisa, amor: a noite é escura, é mesmo assim, mas tudo o que vês de dia está igual durante a noite. Só que não se vê porque não há luz, percebes?-
Senti-o a relaxar um pouco ao medir a veracidade das minhas palavras. Mas não continuei a verbalizar os meus pensamentos.
Quantas pessoas vivem na escuridão mesmo em plena luz do dia? A confiança e ausência de medos tolos lança tanta luz à noite como os medos infundados escurecem os mais luminosos dias. Não é uma divagação, é um facto. Há quem se desloque na noite com olhos felinos, vendo nas sombras difusas exatamente o que lá está e não inexistentes monstros. E há quem atravesse a luz com o esmagador e negro peso dos fantasmas nascidos no seu interior.
Caminho por vezes às escuras, mas uso o passo firme e confiante da minha luz interior, a mesma que sabe que os mais perigosos demónios são os que a nossa imaginação se permite deixar entrar.

Ana Amorim Dias

Ao som dos chocalhos

Ao som dos chocalhos

Deviam ser umas dez da noite quando comecei a ouvir os chocalhos. À meia noite o Tomás veio reclamar: de janela aberta não conseguia adormecer porque as vizinhas fugitivas faziam muito barulho e com a janela fechada tinha que ligar a ventoínha que fazia um chiar estranho.
Segui-o até ao quarto, matei os três mosquitos, fechei a janela, arranjei a ventoínha e dei-lhe o "beijo mágico", capaz de adormecer quem já bebeu dez cafés. Cinco minutos depois a criaturinha respirava profundamente, entregue ao seu sono tranquilo. E eu continuei o meu serão embalado por chocalhos.

- Pai, pai!! Compraste vacas?? Yeeeyyyy!- o João chegou ao quarto a segurar um tabuleiro com o pequeno almoço para todos, provavelmente para comemorar e agradecer a "compra" das cinco vacas cujos chocalhos continuavam a soar.
- Não João. São vizinhas fugitivas.-
- Ooohhhh.-
Provei o leite com chocolate e engasguei-me.
- Filho: deixa-te de pequenos almoços. Está outra vez horrível.-
Habituado à minha frontalidade sincera, deu-me um satisfeito "Está bem" e foi olhar para as vacas chocalhantes que continuavam a espalhar bosta pelos relvados.

Quando saímos de casa e parei para as fotografar, olharam-me com o focinho de "O que é que foi? Há algum problema??" e eu respondi que "Não, não há problema nenhum". Gosto de chocalhos, mosquitos, ventoínhas chiantes e leites mal misturados. Acho que é a conjugação disto tudo que me faz mesmo feliz.

Ana Amorim Dias
Às vezes pergunto-me a quem foi o catraio sair. É que tanta demagogia numa pessoa tão jovem até me deixa assustada. Depois de se portar mal e perante a ameaça de eu já não lhe emprestar o iPad, a criança lembrou-se de ir fazer uma composição:

"A minha mãe é tão bonita como o pôr do sol
A minha mãe também é linda e também muito sexy. Quando ela fala tem uma voz tão meiga e o cabelo é preto como um jaguar. Sobretudo a minha mãe tem uns olhos tão bonitos e brilhantes como dois diamantes."

Ter filhos pode ser muito assustador...

Ana Amorim Dias

O estranho mistério da clavícula torta

O estranho caso da clavícula torta

Há uns anos, não sei precisar quantos, apanhei um susto no banho. Passava eu o gel pelos ombros e, ao chegar à zona das clavículas, apercebi-me que as tinha completamente diferentes uma da outra. A esquerda estava direitinha e a direita toda amolgada, metida para dentro na parte central do osso. Habituei-me ao facto e passei a ignorá-lo quase na mesma medida em que o ignorava antes de nele ter reparado.
Mas ontem ao almoço, talvez a propósito de alguma conversa, lembrei-me da clavícula torta e percebi finalmente que a devo ter partido à nascença sem que ninguém se tenha apercebido. Comentei a minha constatação perante o olhar espantado da minha mãe, que insistiu em comprovar com as suas próprias mãos e olhos este defeito de fabrico.
Ao fim do dia, quando lhe fui dar o beijo de boa noite à cama, confessou-me ter ficado incomodada e preocupada por nunca ter dado por nada. É claro que só me arrancou gargalhadas.
Tenho as minhas conclusões formadas quanto ao estranho caso da clavícula torta. Ela é como aqueles pedacinhos da nossa alma que já se quebraram sem nos termos apercebido e que se soldaram de novo, de uma forma muito própria e deveras eficiente. Ela é um símbolo de como quebramos e recuperamos de forma quase automática. Mas para mim, cá bem no fundo, a minha sui generis clavícula direita, é mais uma manifestação dos meus super poderes que, um atrás do outro, se continuam a revelar!

Ana Amorim Dias

23.6.13

Obrigada

Obrigada

A ser verdade que a vida só começa aos quarenta, resta-me esperar mais um ano. Esperarei com a paciência irrequieta de quem se prepara, de todas as formas possíveis, para algo grandioso. Esperarei em movimento, em ação, em aprendizagem, encantada com o belo e a querer tornar bom o que é mau.
A ser verdade (e isto é mesmo!) que a beleza e a jovialidade interior são mais importantes que as exteriores, só posso sentir-me mais bela que nunca. Mais sábia, mais capaz, mais preparada. Estou certa que, de todas as bênçãos com que já fui brindada, uma das mais magníficas é a de ter descoberto o sentido mais profundo da minha existência. É por isso que o partilho convosco. Diariamente . Em palavras e dias escritos.
A todos os que me acompanham, lêem, entendem e inspiram (sim, são mesmo vocês a minha inspiração!) quero deixar o meu muito obrigada.
A todos um forte abraço!

Ana Amorim Dias

La escritora

La escritora

Ontem à noite estive imenso tempo na esplanada do "Piratas" a conversar com um sevilhana interessantíssima. Dona de uma cultura impressionante e permitindo-me aceder à sua contagiante paixão pela vida, proporcionou-me um serão deveras aprazível.
Mas o acontecimento digno de nota chegou mais para o fim da noite, quando o seu marido reclamou que queria ir para casa.
- Pero estarás loco?? Estoy hablando con una escritora y quieres que me vaya?!?-
Deliciei-me completamente naquele momento. Mas encantei-me ainda mais ao lembrar-me que antes também eu me emocionava ao falar com um escritor. Tornei-me naquilo que mais admiro!

Ana Amorim Dias

Quando for grande

Quando for grande

- O que é que queres ser quando fores grande?-
- Quero ser carismático.-
Normalmente os miúdos querem ser polícias ou bombeiros. Nem sei se o carisma é algo que se possa aprender a ser, ou uma condição já contratada pela alma ao nascer.
Procurei o significado de carisma em vários dicionários. Não transcrevo nenhum porque me parecem todos incompletos. Carisma é algo indefinível por si mesmo; é um conjunto de características indecifráveis para as quais dificilmente nos podemos treinar.
No entanto, e de forma bem paradoxal, as pessoas carismáticas identificam-se sem qualquer dificuldade: são sóis que brilham sempre, onde quer que se encontrem.

Ana Amorim Dias

A troca

A troca

Há muitos anos que não me lembrava da sensação que os exames causam. Graças aos do Tomás voltei a ter uma ténue recordação, devido ao facto de o ter ajudado um pouco a preparar-se para o exame de português.
- Podes parar de explicar tanta coisa, mãe? Já tenho a cabeça quentinha!-
O raio do moço é tão doce que em vez de dizer, como eu, que tem o cérebro a fritar, diz que tem a cabeça quentinha!
- Mãe?-
- Diz.- respondo, entre advérbios e pronomes.
- Fixe, fixe, era no dia do exame trocarmos de cérebro!-
Interrompo-lhe a maluqueira e regresso às explicações. Mas claro, depois fico a pensar! Trocaria eu de cérebro com alguém? Se fosse a um título muito fugazmente transitório era capaz de ser giro fazê-lo com pessoas como o Stephen Hawking, por exemplo. Mas ainda bem que isto é só ficção científica porque gosto demasiado da maneira como o cérebro funciona para colocar isso em risco.
O certo é que a esta hora o meu filhote mais velho está a começar o exame de português. Não trocamos de cérebro como esta crónica bem comprova. O que trocamos sempre são afetos, conhecimentos e experiências. E o que eu lhe costumo dar é espaço para que possa usar o seu corpo e a sua mente de forma a que, no futuro, alguém lhe venha a dizer: - Pai? Fixe, fixe era trocarmos!-
Boa sorte filho. E não stresses muito, um dia hás-de escrever sem erros!

Ana Amorim Dias

Salvo-conduto

Salvo-conduto

A sensação de vir de outro continente e aterrar numa qualquer cidade europeia costumava fazer-me sentir segura e em casa. Era uma coisa automática, quase celular.
A sensação de viver, há quase trinta e nove anos, em paz e sem medo não tem preço. Respirar a liberdade democrática é algo que sempre tomei por garantido, algo que respeito com uma reverência tão agradecida que nem sei como expressar.
A sensação de viver numa Europa económica e socialmente cada vez mais desarranjada, começa a fazer-me temer por coisas que nunca antes receei.
Viver em mais um país de políticos maioritariamente gulosos em que a educação, a saúde, a segurança social, os valores e a estrutura económica em geral estão a colapsar diante dos nossos olhos, faz nascer em mim considerações que até agora preferi afastar. O caos às vezes traz ordem. Mas a que tipo de ordem é que nos estamos a habilitar?
Creio que todas as atrocidades ocorridas no século passado na Europa, se mantêm bem presentes nas mentes de cada adulto informado. Os acontecimentos dos últimos dias, na euro-asiática Turquia, fazem-me temer o pior. O início do fim da liberdade de expressão é o fim do que devia ser o início da evolução do Homem na sua dimensão social.
Estaremos a caminhar de novo para o fim da democracia? Nunca antes me tinha permitido esta dúvida. Agora começa a fazer sentido duvidar.
Resta-me um apelo, singelo e sentido. É nas mãos das autoridades, policiais e militarizadas, que se encerra o derradeiro poder de evitar a morte das liberdades mais básicas. Apelo a que pensemos um pouco nisto e a que comecemos uma carinhosa campanha, perante todos os agentes de autoridade que conhecemos: há que fazê-los pensar antes de obedecer cegamente. Talvez desta forma estejamos a garantir o salvo-conduto que nos permitirá, no futuro, continuar a poder dizer e manifestar os valores em que acreditamos.

Ana Amorim Dias


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O heróico ato de ensinar

O heróico ato de ensinar

Ensinar é a apoteose do heroísmo. Não consigo recordar-me de missão mais nobre do que transmitir conhecimentos, a não ser, talvez, a de salvar vidas. Se bem que ensinar é também isso: resgatar vidas à ignorância que torna os seres frágeis e indefesos.
Qualquer civilização sã e próspera tem que se alicerçar em pessoas com conhecimentos e uma capacidade de pensar suficientemente consolidados para executarem condignamente o seu papel não só na vida profissional como na sua participação social.
Recuso-me a acreditar (ingenuamente talvez) que o poderio que nos tem governado tenha interesse num povo embrutecido por um ensino decadente, antiquado e desajustado à realidade galopantemente mutável destes tempos que vivemos.
Recuso-me a acreditar que não se abram, em breve, os olhos de quem manda, e que os professores tenham que continuar a perder tempo e energia a preencher quilos de papel e a tentar provar que estão aptos para ensinar, em vez de se poderem dedicar ao que já pouco têm hipótese de fazer.
Andei na escola entre 1980 e 1997. Não foi assim há tanto tempo. Nem digo que fosse perfeito. Levei duas reguadas, aprendi alguma coisa e nunca os meus pais questionaram a autoridade e razão dessas pessoas fantásticas cujos nomes, vozes e caras continuo a recordar. Nessa altura havia testes e classificações. Quem sabia passava, quem não sabia chumbava. E depois ia-se de férias sem mais exames-palhaçada.
As aptidões dos professores mudaram? Não me parece. Mudou a sua motivação e energia. Mudou a sua atitude heróica, vencida pelo desrespeito vindo de todos os lados; espancada por currículos desajustados; esmagada pelos quilos de papeis a preencher e provas a dar às pessoas erradas! Os mestres existem para os discípulos. A escola serve para os alunos aprenderem e isso implica deixar os professores ensinar! Parece-me bastante simples.
Se concordo com esta greve? Isso não é importante. Há razões e desrazões de parte a parte. Só é pena que se tenha que chegar ao ponto de tentar solucionar a educação de um país com braços de ferro que prejudicam, mais que tudo, aqueles que era suposto serem os beneficiários da educação.
O certo é que cada vez mais me apercebo que o ensino é, para quem nele manda, um jogo que se joga à sorte, com o despudor de quem não quer ver a sua importância. É isto que me leva a crer que se não começar eu a tomar seriamente nas minhas mãos a formação dos meus filhos, poucas hipóteses terão de obter sólidas bases. É triste. De todas as formas possíveis.

Ana Amorim Dias



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Novas riquezas

Novas riquezas

Vinha no carro a dar voltas ao pensamento. Não tinha tema para hoje. Pelo menos nada que me estivesse a entusiasmar o suficiente para poder escrever apaixonadamente.
Por isso a cara que o João fez veio mesmo a calhar. Entrou no recinto onde se concentram, antes de irem para as respetivas atividades, todos os miúdos que frequentam as férias ativas. Olhou à volta com uma expressão desencantada e deixou-se ficar ali no meio, com a mochila nas costas e, aposto, algum desalento no coração.
Baixei-me um pouco e falei-lhe ao ouvido para me fazer escutar no meio da gritaria.
- Não ter amigos por perto é uma grande prenda, sabes? É assim que se fazem amigos novos!-
E pronto, vim-me embora. A carinha um pouco triste não me comoveu nem um pouco: tem quinze dias para fazer nascer amizades e, mesmo que não tivesse aquela personalidade expansiva que cativa toda a gente, estaria perante uma oportunidade excelente de começar a treinar.

Ana Amorim Dias

16.6.13

Perfeição

Perfeição

Entrei nele com calma. Tinha estado a correr na areia dura da maré baixa. As gotas de suor contra a frio acentuado da água. O ritmo cardíaco forte contra a paz que o tranquilo mar me traz.
Mergulhei. Uma e outra vez. Nadei um pouco. Voltei para águas pouco profundas e deitei-me, submersa, embalada pelas minúsculas ondas, pensando que para a perfeição só me faltava a música.
O minimalismo é um exercício cada vez mais difícil num mundo assolado por complexidades crescentes. E é nestes momentos perfeitos, de uma simplicidade absoluta, que me consciencializo novamente do óbvio: tudo o que possuímos mesmo são momentos. Momentos e a aprendizagem a que o cérebro e a alma se dedicam. Tudo o resto apenas podemos usufruir. Melhor ou pior. Com mais ou menos esforço. Durante mais ou menos tempo. Com maior ou menor sabedoria. Tudo o resto apenas vale pelos momentos que proporciona e pelo que contribui para a nossa construção interior.
Agora vou-me. De novo para a perfeita união do corpo com o mar. De novo para o baile da alma com a simplicidade.

Ana Amorim Dias

Azulejos na parede

Azulejos na parede

Cada vez que olho para casas cujas paredes exteriores são forradas a azulejos, sinto um forte arrepio de pavor a percorrer-me a coluna. É como se entrasse como figurante num filme de terror de há três décadas, em que zombies e vampiros mal caracterizados podem saltar de trás das moitas a qualquer momento, para me tentar transformar num deles.
Percebo que a colocação de azulejos serve para suprir a necessidade de se ter que pintar tudo de tempos a tempos. Mas nem esta compreensão aplaca a tristeza que tais visões me causam. Azulejos nas paredes exteriores das casas são como a teimosia nas paredes do caráter das pessoas. Aquela teimosia que insiste na imutabilidade que impede o crescimento. Há pessoas que se forram de azulejos intocáveis para não terem o trabalho de se voltar a pintar de cada vez que o mofo bolorento dos defeitos se instala. Por isso tento não ter azulejos medonhos a forrar a minha essência. Quero ser como a avó Rosa que, a cada nova primavera, caiava todas as paredes que via.

Ana Amorim Dias

Viagens no tempo

Viagens no tempo

Estava a ver fotografias na net e parei perante a silhueta do gigante. Era-me familiar.
Alguns segundos de atenção bastaram para perceber que estava a olhar para a "Piedra Peñol", um monólito de duzentos e vinte metros de altura, situado na província de Antioquia, na Colômbia.
Voltei lá nesse instante, dez anos depois de lá ter estado, com uma precisão incrível. Regressei ao momento em que a imponente rocha se elevou perante mim. Voltei a subir os setecentos e dois degraus e a perder-me no horizonte incrível que os olhos puderam alcançar.
Mais uns segundos e voltei a descer. Encontrei-me de novo no jeep branco do Luís e a escutar a música que ouvi pela primeira vez naquele instante, com a Pedra Peñol a ganhar distância: "Cualquier dia, cualquier hora, volveremos a vernos, en cualquier lugar, para hablar de amor..."
Regresso da viagem às minhas memórias. Faço soar a música no YouTube, ainda com o intenso sabor daqueles momentos a adoçarem-me a alma. "Ay amor, si yo pudiera abrazarte ahora, poder parar el tiempo y la demora, y nunca más dejarte ir de mi..." Há pessoas-rochedo na vida de cada um de nós. Pessoas que nos fazem sentir a vertigem da altura e a segurança da sua solidez. E depois há bênçãos. Bênçãos que nos chegam em pequenos nadas nos quais tropeçamos, simplesmente para cair desamparados nestas divinas viagens no tempo.

Ana Amorim Dias

Não sei falar essa língua

Não sei falar essa língua

Há alturas em que fazermo-nos de estúpidos é a atitude mais sábia a tomar.
Mesmo quem é pacífico e tolerante passa, num ou noutro momento da vida, por situações de algum atrito. Há pessoas que, sem sabermos bem porquê, nos enervam. E também há pessoas a quem, sem entendermos o motivo, despertamos as maiores raivas.
Perante quem nos irrita a solução é simples: ou afastamo-nos ou decidimos entender os porquês mais profundos e decidimos resolvê-los, passando a desvalorizar tal incómodo.
Quanto àquelas pessoas que não nos suportam, a solução ainda é mais fácil: basta simplesmente agir como se estivéssemos em morte cerebral ou como se quem nos provoca falasse uma linguagem desconhecida que não temos a mínima intenção de aprender.
Dizem que as incompatibilidades existem por vermos espelhado no outro as coisas de que não gostamos em nós. Deve ser por isso que não me lembro de quase ninguém que me irrite de verdade.

Ana Amorim Dias

O que te sobra em altura

O que te sobra em altura

A senhora que nos atendeu ontem no restaurante, ficou realmente impressionada quando te viu levantares-te.
- Por Diós! Que alto! Cuantos años tienes, niño?-
- Faço amanhã doze. - Respondeste tu com um sorriso confiante.
E quando a senhora te "raptou", para te mostrar às colegas, mantiveste essa postura meiga, satisfeita e humilde que te acompanha quase sempre. Ontem à noite ainda tinhas onze anos, mas já mais de um metro e oitenta...

Devo confessar-te que conheço bem a sensação, mas há algo que quero explicar-te: temos a obrigação redobrada, quando vemos tudo mais cá de cima, de abarcar a visão ampla da humanidade. Olhar para tudo do alto pode conferir a tendência de uma certa superioridade. Não somos maiores que ninguém, meu amor. Não se é mais que os outros por se ser mais alto, mais forte, mais inteligente. Não se é mais que os outros por se ter moto quatro e piscina, tenho a certeza que já o sabes muito bem. Nunca somos mais que os outros mas temos a obrigação de lutar por sermos melhores que nós mesmos; temos a obrigação de crescer em bondade, humildade, humanidade e sabedoria; temos a obrigação de sentir o que sentem os outros e de lhes estender a mão sempre que nos seja possível.
O que te sobra em altura ainda te falta em experiência e conhecimentos. O que te sobra em altura ainda te falta em desilusões e visões dos lados menos belos da vida. Mas fico feliz por saber que tens pais e avós e tios e amigos que não te deixarão esquecer que o que te sobra em altura também te sobra em bondade. Sobrará sempre.
Não posso terminar sem dizer-te que, mais que dares um novo sentido a estes últimos doze anos da minha vida, a transformaste numa nova fase de um crescimento e alegria absolutamente indizíveis. Cada dia me construo mais a teu lado e aprendo que as lições são quase tanto de pais para filhos, como de filhos para pais.
Obrigada por existires, seres como és e me fazeres tão profundamente feliz.
Da mãe que te adora,
Ana Amorim Dias

Vozes

Dois dias de silêncio forçado. Dois dias complicados, a ouvir sem poder responder. Dois dias muito longos, passados a pensar sem expressar; passados a quase nada dizer por ter que poupar a voz.
Mas estar afónico é uma benção. Todos devíamos ter afonias esporádicas para conseguir interiorizar certas coisas. Porque não deixar escapar na voz tudo aquilo que verbalizamos, pode trazer consequências soberbas.
Há quem fale demais. Há quem cale demais. Há quem faça valer tudo aquilo que diz. E nem acredito que haja falta de espontaneidade em quem doseia sabiamente a utilização das cordas vocais.
Há coisas que não precisam de ser ditas: explicam-se melhor no silêncio.
Há outras que mais vale calar: nada de bom originam.
Há frases óbvias, feitas, feias, que nem sequer correspondem ao que se está a pensar: a sua utilidade é nula.
Há tons de voz cortantes, despropositados e frios que nada resolvem e fazem quem os emite sentir-se ainda pior.

Há vozes firmes, delicadas mas ainda assim decididas, que se bastam com poucas palavras.
Há palavras doces mesmo para dizer coisas tristes.
Há frases que marcam positivamente e para sempre a vida das outras pessoas.
Há dizeres que causam gargalhas, alegria, paixão e compaixão.

Falar ou calar é mais que uma questão de espontaneidade ou calculismo. É uma questão de sabermos escolher bem o uso que damos à voz! Falar sim, sempre, mas de preferência para fazer coscuvilhice invertida (falar bem de uns aos outros), para inspirar, transmitir esperança, coragem, amor; falar para nos tornarmos melhores, para melhorar a vida dos outros e colar-lhes um sorriso à cara; falar para mudar o Mundo, ou pelo menos para tentar.

Por tudo isto não posso dizer que não aproveitei bem estes dias: treinei-me um pouco a usar a voz apenas quando daí venha algo de positivo. E de caminho percebi que muitas vezes quanto mais baixo falamos mais alto nos fazemos ouvir.

Ana Amorim Dias

9.6.13

A estranha tentação de domesticar homens

A estranha tentação de domesticar homens

Aquilo estava a tomar proporções intoleráveis. De cada vez que o Tomás e o João tinham sede, tiravam um novo copo do armário, fazendo com que, em apenas algumas horas, a bancada da cozinha tivesse dez copos usados.
"Como é que eu domestico estes pestinhas?", pensei, já em desespero de causa. Há sempre formas de resolver tudo e este caso não seria exceção. Comprei um copo catita para cada um, pintei as iniciais de ambos com tinta de vidro e deixei bem claro: "Se usarem qualquer outro copo serão vocês a lavá-lo!"
Vários dias se passaram e confesso: começo a ficar preocupada! Nunca mais usaram qualquer outro copo! Para nada! Terei ido longe demais nesta estranha tentação de domesticar os meus dois homenzinhos?? Para onde lhes foi a espontaneidade de ir buscar copos e usá-los indiscriminadamente? Ficarão as suas outras selváticas características beliscadas por este episódio?
Creio que nós mulheres temos que começar a ponderar na possibilidade de limitar esta incontrolável tentação de domesticar os homens, sejam pequenos ou grandes. Boys will be boys, não se deve lutar contra isso. Afinal o que pretendemos? Uns serezinhos previsíveis e mansos que acatam tudo o que lhes impomos? Ou pessoas com vontade própria, sangue na guelra e uma encantadora imprevisibilidade selvagem?
Como agir, afinal, com os homens que mais amamos? Insistir na insanidade de os tentar domar? Ou incentivá-los a ser donos de uma personalidade bem forte?
A minha decisão está tomada. Daqui a uns dias vou dar um sumiço aos copos!

Ana Amorim Dias

Uma questão de unhas...

Um questão de unhas

- Mãe, dá-me mimos!-
Como é um miúdo muito independente, quando o João pede carinhos aproveito o mais que posso e fico agarradinha a ele sem o deixar escapar.
- Festinhas, mãe! Nas costas, que já não me fazes à muito tempo!-
"Como é que ele pode achar que dois dias são muito tempo?", pergunto-me enquanto se aninha, mimoso, na minha cama.
- Mãe?- está deitado muito quieto, a deliciar-se com os mimos.
- Diz baby.-
- As tuas festinhas são melhores que as do pai!-
- Ah sim? E porquê? - já sei que vem aí coisa boa.
- É que tu tens unhas e o pai não!-

Vive uma pessoa quase quatro décadas para vir um pirralho de oito anos dar uma lição de vida de tão completa magnitude! É que ainda por cima eu ando sempre extremamente atenta a tudo, como é que deixei escapar isto?!?
Escreve-se há milhares de anos sobre as diferenças entre homens e mulheres. Debate-se, desenvolvem-se teorias, exploram-se possibilidades, fazem-se estudos e cria-se arte em torno desta temática. Discute-se desde sempre qual dos géneros é o melhor, o pior, o forte, o fraco, inferior e superior. Para quê? Para nada! Homens e mulheres são só ligeiramente diferentes, empatados em valor e divinamente complementares.
Mas há uma, uma única vantagem do lado do género masculino: é que as festinhas das mulheres sabem mesmo melhor que as dos homens! E fico para aqui a pensar como se poderá isto resolver...

Ana Amorim Dias

Enquanto varria o chão

Enquanto varria o chão

Por motivos que não são para aqui muito relevantes, passei grande parte dos dois últimos dias a fazer limpezas com uma amiga moldava.
Conhecemos-nos há muitos anos mas só ontem tive o testemunho, contado na primeira pessoa, de como era viver na antiga União Soviética. E houve duas coisas que me impressionaram mais que as outras. Sei muito bem que a ausência de liberdade de expressão era uma realidade do nosso pais também, como continua a ser por muitos locais do mundo. Felizmente é algo que apenas consigo imaginar porque nunca tive que calar o que quer que fosse por medo das consequências.
A outra informação que me impressionou foi o facto de as pessoas não poderem, nessa época, sair do seu país a menos que tivessem motivo e autorização superior. Caso desertassem havia consequências para os familiares, e não podiam regressar a menos que estivessem dispostos a passar vários anos na prisão.
Enquanto varria o chão, um arrepio assolou-me. Ao longo da história da humanidade os crimes e repressões têm sido tantos que não percebo porque é que há coisas que ainda me espantam. Imaginei-me presa no meu país, sem liberdade para ir para a parte do mundo que bem entenda. Imaginei-me a não poder escrever as minhas opiniões e visões da vida. E depois, de vassoura na mão, fui indo de atrocidade em atrocidade e imaginei a fome, os racionamentos, as bombas a cair...
A suave brisa continuou a soprar e os pássaros a cantar, indiferentes ao meu desconforto.
- Sabes Ana?- ela interrompeu-me os pensamentos. - Se só houvesse mulheres a mandar no mundo, não haveria guerras! Nenhuma mulher manda os seus filhos para a guerra!-
Não fui capaz de lhe responder. Não tenho tanta certeza. A maldade não escolhe géneros. A insanidade que o poder traz não se compadece com sexos. Fiquei a pensar que o poder é um dos maiores monstros que engole o Homem (seja macho ou fémea). Poderoso não é quem tem poder. É quem lá chega e consegue manter-se humilde... e humano.

Ana Amorim Dias

O caminho mais difícil

O caminho mais difícil

Detesto correr. Convictamente. Com desportos tão giros porque é que uma pessoa vai perder tempo naquilo? Detesto correr mas ainda detesto mais virar as costas a um desafio.
- Não consegues!! - mesmo à putos, desafiaram-me.
Pensava que só conseguia correr cinco minutos. Mas sem experimentar não saberia. Tinha a noção que o percurso tinha subidas tramadas, mas como eu também sou tramada acabei por ir.
Vinte e dois minutos. Fiz o percurso sem parar. E ao terminar percebi que aquele troço era bem mais difícil do que um outro no qual eu não me aventurava por pensar que não conseguia...
Desde então tenho corrido quase todos os dias, mas não me restam ilusões: continuo a detestar correr. Só que é um detestar estranho, daqueles que quase roçam o gostar. É nestas alturas que reconheço que se calhar nós mulheres até somos ligeiramente estranhas.
Uma coisa é certa: temos sempre muito mais para dar do que aquilo que pensamos. E quando atacamos logo o mais difícil tudo o resto se desmistifica.
Até onde conseguimos ir? Acho que é até onde a nossa determinação quiser. Basta haver tempo, força de vontade e perseverança. E se, de caminho, tivermos que abrandar o ritmo, isso não faz mal nenhum.
Por outro lado, e agora que tirei a lição do caso, acho que vou voltar à zumba, que me faz suar muito mais e me dá um prazer maior.

Ana Amorim Dias

Jogo de cintura

Jogo de cintura

Desde que tenho iPad abandonei quase por completo o computador. Só o ligo de tempos a tempos, quando tem mesmo de ser. O problema é que muitos meses de uma relação tátil com o ecrã do ipad se enraizaram de tal maneira que quando vou ao computador ele fica cheio de dedadas onde não deve enquanto eu, indignada, ainda vou dedilhando o ecrã durante uns segundos até perceber o engano.

Ontem, depois de correr, sentei-me debaixo da figueira e rendi-me ao prazer dos figos. A seleção musical, que soava em modo aleatório, passou a uma canção pouco própria: "It's beginning to look alot like Christmas..." cantava o Boublé todo satisfeito. Com meio figo na boca até fiquei indignada. "Bolas, que estranho! Estamos nos antípodas anuais do Natal e estou cheia de calor a saborear um figo! Nada se pode assemelhar menos a essa época!" Hesitei um pouco mas não mudei de música. Simplesmente não encontrei motivo suficientemente forte para o fazer.

Porque não ouvir uma música de Natal à entrada do Verão, debaixo da figueira? Porque não rir-me do disparate de dedilhar o ecrã do computador? Porque não tomar banho de mar em Janeiro? Porque não sentir alegria na saudade e ser otimista quando tudo parece negro? Porque não render-me a novas maneiras de pensar, agir e sentir?

Da mesma maneira que me farto de rir sozinha de cada vez que "ataco" convicta o ecrã do computador, também saberei rir-me de cada nova falha minha, corrigindo-a logo depois. Da mesma forma que ontem não encontrei motivos para desligar a música de Natal, também procurarei não encontrar razões para me opor ao ritmo com que a vida traz os novos acontecimentos, mesmo que me pareçam totalmente fora de época. Creio que este tipo de jogo de cintura me pode vir a ajudar a aproveitar melhor todos os dias e todas as encapotadas lições que eles trazem.

Ana Amorim Dias

Ser

Ser

Viver a vida que imaginámos pode ser bastante complicado.
Mas...e ser quem sonhámos ser? Será difícil?
Acho que o problema maior é as pessoas não sonharem com o SER e sim, com o TER. Quase todos sonharam ter a profissão de sonho, ter o amor ideal, ter a casa com piscina, ter os bons carros, ter dinheiro para tudo, ter, ter, ter.
Ter é fantástico, não digo o contrário. Mas SER é sem dúvida o mais importante.

Ser amado, ser amor,
ser feliz, ser sonhador.
Ser um ser que está em paz
com o seu jeito de ser.
Ser fogo, ser alegria,
ser paixão e ser magia.
Ser vontade que se aceita
E ser Ser que se constrói
Ser abundância, ser emoção,
Ser história, arte e razão.

Olhando para trás percebo que sempre sonhei mais em Ser do que em ter. Luto por ser. Todos os dias. Ser para mim e ser para os outros. Ser tudo o que amo, tudo o que valorizo. Quando começamos a ser o nosso próprio sonho, a vida começa também a ser como a sonhámos.
Deve ser por isso que tenho tanto. Por isso e por saber que mesmo quando não tenho... Sou.


Ana Amorim Dias

2.6.13

Uma camisa lavada

Sábado, 1 de Junho de 2013.
13 horas

- Mããeeee!-
- O que foi agora, Tomás?-
- A minha camisa branca?-
- E eu é que sei? -
- Oh mãe! A avó vem buscar-me às três! E agora? O que é que faço?
O rapaz tem a sua profissão de fé esta tarde e a avó deixou bem claro: calças de ganga sem rasgões e uma camisa branca.
Deixo-me estar em silêncio. Ele sabia, agora resolva.
- Mãe! A sério! O que é que eu faço? Só encontro esta e está suja...-
- Podes sempre lavá-la e estendê-la ao sol!-
A criatura, na sua aflição, desaparece para a lavandaria, e volta logo a seguir, com a blusa suja na mão.
- Mãe... Como é que se lava uma blusa?-
Torço-me de êxtase.
- Molhas, colocas o detergente e esfregas. Assim:- exemplifico com um pano de cozinha amarelo - Depois passas por água e penduras ao sol, no estendal.
Desaparece de novo. Mais dois minutos e está de volta, com a blusa numa mão e um pano de cozinha amarelo na outra.
- Explica lá outra vez? Molho este (o amarelo) e esfrego a blusa com ele??-
Tento manter o ar sério e confiante de quem acredita que ele vai ser capaz e explico que a blusa se esfrega com a própria blusa.
Um pouco mais tarde, depois de verificar que a blusa está bem lavada, cheirosa e pendurada, entrego-lhe a tal camisa branca de que ele andava à procura.
Sabia que ele conseguiria lavar uma peça de roupa. Porque ser mãe é isto: uma verdadeira profissão de fé!

Ana Amorim Dias

Anexo nazi

Anexo nazi

Imaginem uma pessoa a quem, ao longo de vinte e cinco anos, fossem entregues trezentos euros por dia. Uma pessoa sozinha, a quem tudo o que era pedido era que tornasse a sua vida sustentável e próspera por forma a que um dia pudesse repor esse empréstimo mantendo-se sustentável e próspera. O lógico seria a pessoa investir na sua educação e na sua formação; na criação de condições de produção para si mesmo e para vender; na sua saúde; no fomento de bons contactos e relações comerciais; na poupança e por aí fora.
Agora imaginem que esse dinheiro (que se tinha comprometido a utilizar da forma referida) era gasto em noitadas, luxos e superficialidades que em nada serviriam ao objetivo da criação de uma vida próspera. Quando chegasse a hora do pagamento essa pessoa estaria menos sustentável do que anteriormente e, claro, não teria como pagar, tendo então que se socorrer de incontáveis aleivosidades para fazer face à dívida.
Talvez o exemplo dos trezentos euros por dia para uma pessoa não esteja proporcional aos nove milhões por dia para um país como o nosso, mas como não sou economista terão que me perdoar e procurar vocês mesmos a proporção mais correta.
A analogia, no entanto, parece-me mínimamente válida. Onde se "investiu" o dinheiro? E desta vez não falo só de políticos pois é patente que muitos particulares usaram dinheiros de subsídios para gozar "la vida loca" em vez de o utilizar no que deviam.
E agora, além das centenas de desgovernos incríveis que estão a acabar de cremar o nosso falecido país, ainda temos de usar cateteres em segunda mão? Porque não usam a tática dos Khmers vermelhos no Camboja e matam logo quem está doente, velho ou incapaz para trabalhar? Ou então, como o nome do anexo SS indica, porque não se seguem os exemplos das forças nazis?
O desgoverno começou no dia em que se receberam os primeiros milhões. Era para serem gastos na construção de um país desenvolvido e próspero e não nesta amálgama de gente de bem depauperada e de gananciosos impunes. Espero com esperança o dia em que se apurem responsabilidades junto de todos os que ocuparam posições de poder nas últimas três décadas. Quando isto acontecer e quando os seus patrimónios e contas no estrangeiro forem devolvidos aos cofres do estado, talvez eu consiga voltar a dizer "sou portuguesa" sem sentir uma enorme vergonha.

Ana Amorim Dias

Natureza Morta

Natureza morta

- Olha lá mãe! Está bonito?-
Depois de uma manhã atribulada em que esgrimimos teimosias, o João aproximou-se de mim com uma pintura a lápis de cera.
- Que bonito, João! Uma natureza morta!-
- Não, não, mãe: é uma banana e uma laranja!-
Não sei se o maroto ficou com receio que eu estivesse com o entendimento distorcido ou se apenas se assustou com a analogia pós-apocalíptica daquelas duas palavras.
- Natureza morta é como se chama a este género de pinturas que ilustram coisas inanimadas. Podem ser naturais, como as frutas, legumes e flores, ou podem ser artificiais, como copos, jarros, relógios e coisas dessas, percebes?-
Ele não me pareceu muito interessado. Estava apenas satisfeito com o resultado final e com a sensação boa que sempre se desprende da libertação da criatividade.
Hoje mostrei-lhe de novo a pintura.
- Ainda te lembras o que é uma natureza morta?-
- Sim mãe: pinturas de frutas e repolhos!-
- E se fosses um crítico de arte o que dirias desta? - perguntei-lhe.
- Que o pintor tem muito jeito!-
- E tu Tomás?-
- Eu diria que tanto a laranja como a banana estão bonitas.-
- Não têm nada mais interessante a dizer? É que queria ter mais material para a crónica...-
- Mãe?-
- Diz, meu amor.-
- Eu sou famoso na internet?-
Desmanchei-me a rir.
- Não, querido. Não se pode dizer que sejas. Mas trazes a boa disposição às manhãs de muita gente...-

Ana Amorim Dias

Bateria de vitória

Bateria da vitória

Decido fazê-lo eu mesma. Espero que toda a gente saia da quinta e dirijo-me ao carro. Procuro a patilha para abrir o capot, no local onde costuma estar sempre. Nada. Tateio melhor. Nada. Enfio lá a cabeça e, ao fim de uns dez segundos naquela posição estranha, encontro a fugidia alavanca.
Tento levantar o capot. Não me obedece. Lembro-me que há outra patilha que o liberta, mas o carro está de tal forma encostado à parede que tenho de me esticar de novo para lograr os meus intentos. Ainda por cima de calças brancas!
Coloco o suporte de segurança no sítio certo e verifico se está firme. Levar com o capot na cabeça deve dar um certo abalo.
E agora? Onde está a bateria? Depois de alguns segundos a olhar, invisto sobre uma tampa de plástico que sai com facilidade. Eureca! Mais uma vitória. Observo atempadamente a magana, tentando perceber como é que a vou fazer sair e fazendo uma lista mental das ferramentas necessárias.
Com passo decidido dirijo-me à casinha das ferramentas. Spray oleante, chave de bocas, alicate, luvas e uma tesoura, porque nunca se sabe...
Percorro de novo todo o caminho até ao carro, sentindo-me como aquelas mecânicas super sexys dos filmes. Sinto-me confiante.
Tiro os óculos. Ato o cabelo. Calço as luvas. Pelo sim pelo não, tiro a chave da ignição, não me vá atacar algum choque sem haver quem me socorra.
Desenrosco as porcas da barra de proteção. Com todo o cuidado para não caírem para onde eu não as consiga apanhar. Percebo de imediato que, para um bom mecânico, as mãos pequeninas são uma enorme vantagem. As minhas são demasiado grandes e com as luvas, pior!
Continuo a minha odisseia, de rabo espetado e costas arqueadas, como se estivesse num filme mas, no fundo, é só para não sujar as calças.
Chego ao borne positivo. Uma spreizada de óleo, uma puxadela e sai logo. No negativo é que levo mais minutos. Como é que aquela porcaria sai? Ponho óleo. Observo melhor, aquilo tem que ter uma lógica. Mais óleo e lá descubro a porca que tenho que desenroscar para libertar a coisa. Ando outra vez todo o caminho até à casinha das ferramentas em busca de uma chave de bocas mais pequena.
Regresso. Luto com a filha da mãe da porca. O colar atrapalha-me mas não o tiro. Começo a vencer a porca e acabo por tirar a bateria. Sinto-me genial e feliz. Se não estivesse sozinha roubar-me-iam o prazer desta vitória.
Enfio-me no outro carro e vou comprar uma substituta enquanto penso que, para a montar, é tudo igual mas ao contrário.
Regresso depressa com um entusiasmo incontido. Monto tudo em cinco minutos e dou à chave. Funciona!! Caramba, como me adoro!

Isto aconteceu ontem de manhã. Hoje, ao entrar com os miúdos para o carro que EU ARRANJEI, abro de novo o capot com uma desenvoltura quase profissional e, sob o seu olhar impressionado, coloco a tampa de plástico sobre a bateria. É que me lembrei ontem, já na cama, que me faltou montar essa peça.

Ana Amorim Dias

Conquistas

Conquistas

Sempre que vejo filmes americanos chego à conclusão que lutar contra os maus da fita que eles inventam é a coisa mais fácil do Mundo. Eles são tão completamente maus e tão desprovidos de qualquer sopro de bondade que, ao serem pulverizados, ninguém fica com remorsos.
A parte lixada da vida é que muito dificilmente encontramos maus completamente maus, sem qualquer sopro de bondade. De facto a grande maioria das pessoas é feita predominantemente de bondade (já me têm tentado provar o contrário mas recuso-me a aceitar). E mesmo que nos deparemos com alguém maioritariamente mau não temos a legitimidade (a menos que haja vidas em risco, claro) de o/a pulverizar. Devemos sim, se possível, tentar estimular a sua parte boa para que se expanda.
E quanto a nós próprios? Como devemos lidar com a dualidade de bom e mau que todos temos? Fazer como o Dr. Jekyll fez, no romance de Robert Louis Stevenson, e despertar o Mr. Hyde que há em nós para acabar com ele? Não me parece boa ideia. O ser humano tende à bondade. O ser humano tem a obrigação de lutar convictamente pela expansão do seu lado bom e pelo esbatimento da sua negritude num cinzento mais clarinho, que passe a ocupar menos espaço. Só no meio desta batalha começaremos a ganhar a força de lutar também pela expansão da bondade alheia.

Ana Amorim Dias

Génio mau e figos verdes

Génio mau e figos verdes

Ia falar do mau génio que ontem se apoderou de mim como uma possessão maquiavélica, mas de repente lembrei-me dos figos. Pode até parecer que o meu raciocínio está descomposto mas garanto que no fim tudo fará sentido.

Creio que os fenómenos de aproximação "poltergeist" se dão, de tempos a tempos, com quase toda a gente. Chegam de forma impercetível, pelos mais variados motivos, e fazem-nos considerar seriamente ligar ao padre mais próximo para vir executar um ritual de exorcismo. Um mau génio consistente faz-nos andar carrancudos e falar com um sarcasmo que parece ter voz própria. Torna-se imperativo desativar-nos de alguma maneira, nem que seja a ir dormir.

Há mais de uma semana que, ao chegar à Quinta, páro sempre o carro de baixo da figueira preferida para ver se há figos maduros. É um exercício de paciência complicado de executar, sobretudo por quem é impaciente e gosta tanto de figos. Páro o carro todos os dias junto à figueira com uma atitude de fé e esperança, sabendo perfeitamente que este ano tardarão um pouco mais a amadurecer devido à falta de calor. Mas foi só ontem ao fim do dia que os figos ainda verdes me revelaram um importante ensinamento. Pensando simplesmente no facto, percebi que as pessoas são como os figos: quanto mais calor humano sentem em seu redor, mais doces ficam.

Mas então porque é que passei o dia completamente impossível de aturar? Se o calor humano não me falta porque é que andei tão azeda, a espalhar o terror à minha passagem? Desconfio que, mais do que calor humano, precisamos do nosso próprio calorzinho interior e, quando os dias interiormente frios se instalam, não quer dizer que sejamos pouco doces... pode significar apenas que não soubemos amadurecer para esse dia em concreto.

Ana Amorim Dias

Mais forte que ontem

Mais forte que ontem

É claro que o aço não se forja em amenas temperaturas primaveris. É óbvio que os nascimentos não ocorrem sem dor e desconforto. É inegável que o caráter se forma com o enfrentar dos obstáculos e que a força nos nasce da necessidade de ser fortes.
Não me sobram dúvidas que também nos construímos com as experiências boas e prazerosas. O que duvido é que estas nos construam e fortaleçam tanto como as vivências difíceis. É que depois destas ficamos preparados para tudo.
Para quem se esteja a interrogar sobre os motivos destas palavras, posso assegurar que o meu domingo não está a ser nada fácil: há horas a medir forças com o meu filho mais novo e a lidar com as nossas desavenças provocadas pela realização dos trabalhos de casa. Estou absolutamente convencida que amanhã estaremos os dois muito mais fortes!

Ana Amorim Dias

E de novo os super poderes

E de novo os super poderes

Para variar o João está a portar-se mal no banco de trás.
- Ou páras já com isso ou desligo-te os super poderes! - ameaço.
- O quê? Que super poderes? - quer saber o Tomás.
- Sim, Tomás! Eu e a mãe temos super poderes, sabes? E quando eu me porto mal a mãe desliga-os...- explica o mais pequeno.
Noto o silêncio preocupado da minha mãe, que segue connosco no carro, e apresso-me a tranquilizá-la explicando que o João sabe que não pode voar nem fazer nada dessas coisas perigosas. A minha mãe dá um suspiro aliviado.
- Mãe?...- conheço aquela voz mimosa demasiado bem. Interrompo-o.
- Tu também tens super poderes, Tomás!-
- Quais são, mãe?-
- Isso vais ter que descobrir por ti porque se eu te contar desativam-se...-
No interior do carro volta a estar tudo calmo e, enquanto vou cantando baixinho, percebo que há um super poder que sou bem capaz de não ter: o de os fazer estudar mais.

Ana Amorim Dias