(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

31.12.12

Pumba




- Dez...
Não percebo a ideia das passas. Quem é que se lembrou de  obrigar os outros a emborcar aquela porcaria à pressa? Ainda se fossem uvas ou goladas de bom vinho tinto...
- Nove...
Isto de termos forçosamente de nos divertir não dá para mim. Vá lá que a companhia é boa e a festa está animada. Parece-me um excelente presságio.
- Oito...
Caramba, estou mesmo cheia. Porque é que quando as pessoas se reúnem em festa é sempre para comer como se nunca tivessem feito dieta?
- Sete...
Juro que se alguém tentar pôr de novo no canal da casa dos labregos,  lanço uma praga à dona Teresa para ela ficar muda!
- Seis...
Será que ainda vou a tempo de fazer o balanço do ano que  se esgota?
- Cinco...
Não. Já não dá tempo. Mas para que raios me interessa isso agora? Foi o que foi, gastei-o bem.
- Quatro...
Dois mil e treze. Porreiro, nunca vivi um treze e é um número fantástico.
- Três...
Cum caneco, o estado desta casa!
- Dois...
Isto agora está a avançar mais depressa ou é impressão minha?
- Um!!!
Pumba! Já está!
- Viva dois mil e treze!!!

Parou, parou, parou! Stop! Carreguem  no modo "pause". Dá para fazer um grande plano? Obrigada. Antes da avalanche de beijos, palmadinhas, felicitações e abraços, preciso de respirar. Meter uma grande golfada de ar para dentro, olhar o novo ano bem de frente e não lhe deixar margem para dúvidas: vou-te consumir, esticar, gastar, usar, montar, celebrar, vibrar, amar e escrever. O novo ano olha-me, meio assustado. Sabe que lhe vou dar trabalho!
  Depois, com o primeiro segundo do ano ainda congelado, saúdo os meus mortos com um sorriso bem rasgado e brindo aos vivos que amo e estão longe: não vos esqueço, estão cá dentro!
  E pronto, não preciso de mais. Descongelem o tempo e deixem que volte a loucura dos abraços,  a gritaria das felicitações, a romaria de beijos.

Pumba. Já há ano novo.

Ana Amorim Dias

Poética morada




     Descasco as batatas. Corto-as em palitos bem finos. Não tenho a certeza se gosto mais de as comer ou preparar. Há algo de relaxante, quase poético, nestas cerimónias de preparação de uma mera refeição. Talvez seja da ampla vista bucólica que a janela da cozinha  proporciona. Talvez  seja do jazz que me acompanha os movimentos certeiros.
  Voa-me a mente para uma mensagem: "O teu endereço é um poema", escreveu um amigo com quem troquei moradas para enviarmos livros um ao outro. A frase ficou a bailar-me no espírito, como as batatas nas mãos. Nunca tinha pensado nisso, mas é bom saber que até a minha morada parece um poema.
    As batatas estão prontas a saltar para a fritadeira.  Viro a atenção para os agriões, que pacientemente lavo, acaricio, preparo.
    "A culpa é da Annie...", penso. O primeiro filme que vi no cinema, no fundo da rua, aos seis anos, a sós.  Quando cheguei a casa escondi-me atrás das cortinas do quarto e prometi-me solenemente tentar viver uma vida de filme, musicada, poética.
    Prossigo com a dança dos agriões, com um olho na paisagem e um ouvido na melodia. Mergulho as batatas no óleo com um sentimento quase épico. "A poesia está em tudo, todos os dias, se assim o entendemos."  Sorrio para a fritadeira, fazendo do momento um poema. A morada mais poética é mesmo a que o nosso estado de alma decide construir e habitar.

Ana Amorim Dias
Epílogo
Bem sei que as crónicas não admitem epílogos, mas não resisto:
...Chego à mesa com as batatas fritas e a salada de agriões no preciso instante em que o Ricardo está a chegar com a carne grelhada...poético!