(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

24.11.13

Pressão

Pressão

Entrei no balcão debaixo de fogo cruzado. Sem qualquer tipo de exagero, estavam uns trinta homens a pedir coisas ao mesmo tempo. Atropelavam-se, aos gritos, sem respeito uns pelos outros nem por quem os estava a servir. Pareciam acreditar que, caso não fossem imediatamente atendidos, as portas do inferno se abririam debaixo das suas pernas, tragando-os para todo o sempre.
"Hummmm, isto está mesmo como eu gosto!" - pensei, esfregando as mãos de contentamento.
- Vai depressa buscar mais leite e copos de "cortado". - Pedi a quem substituí, ao apoderar-me da máquina de café.
De costas para a multidão enlouquecida por falta de cafeína, e enquanto ouvia os sobrepostos pedidos, respirei fundo e comecei.
Não sei quanto tempo demorou a odisseia, mas passei-a com um sorriso trocista colado ao rosto. "Credo! Atropelam-se sem respeito e são todos amigos, o que seria se não fossem!" ; "Bem, se estivesse na selva a ser atacada por leões, a coisa era bem pior" ; "Sim, meu caro, vai chamando por mim até ser a tua vez, antes disso nada feito".
Silenciosa, sorridente e firme, servi "Cortos", "cortados" e "cafés con leche" até se calarem todos. Quando a loucura passou, cedi de novo o lugar. Não gosto de grandes pressões nos meus territórios, nem sobre quem me é querido. Costumo optar por ser eu própria a aguentar o embate dessas mesmas pressões: a verdade é que me divirto imenso a testar até onde as aguento... enquanto vou treinando um pouco mais a resistência.

Ana Amorim Dias

Muita massa

"Isto é muita massa para uma batedeira tão pequena..." - pensei. Mas já não havia nada a fazer.

Acordei com vontade de fazer bolo de chocolate. Procurei a receita e comecei.
"Quatro ovos? Humm...é pouco! Vou fazer com oito. Não! E se fizesse com doze?" Decidi que, já que ia fazer, que fosse em grande! E acabei por usar dezasseis ovos e quadruplicar a receita.
O problema surgiu quando as pás da batedeira se começaram a afogar na massa. Não me incomodam nada os meus excessos, mas creio que, daqui para a frente, terei que começar a prever as situações em que enfrento massa a mais.
Por agora resta-me esperar por voluntários que comam os cinco bolos...

Ana Amorim Dias

Sentidos

Sentidos

Quando os miúdos entraram no carro ainda me perguntaram porque é que eu me estava a rir daquela maneira. Disfarcei o caso e acabei por me escapar à resposta: não me estava a apetecer nada ser alvo das gargalhadas deles.
O que aconteceu foi simples. Mas muito estranho. Enquanto fazia a manobra de estacionamento, cheirou-me levemente a queimado e, para apurar o olfato, baixei instintivamente a música.
"És mesmo parva! Achas que é por estares em silêncio que vais cheirar melhor?!? Doida...", brinquei comigo mesma.
Mas, claro, fiquei a pensar naquele instinto que, nesse momento, me pareceu tão descabido. No fundo, embora todos eles se completem, existe por vezes uma certa lógica em bloquear uns sentidos para intensificar os outros. Se fechar os olhos exponencia o sentir de uma carícia ou a perceção de certos sons, porque é que bloquear a audição não há-de melhorar o olfato? Além do mais, no que toca aos sentidos, o instinto costuma ser um credível e ancestral mestre.
Mas o que de mais interessante entendi foi que, ao bloquear o negativo sentido crítico, ativamos outros melhores, como os de aprendizagem e novos encantamentos.

Ana Amorim Dias

Discrepâncias

Discrepâncias

- Boa tarde. Estou a falar com algum familiar do Tomás Dias Rodrigues?-
Fiquei logo aflita com o início daquele telefonema. O que se teria passado?
- Sim, está a falar com a mãe dele.-
- Estou a ligar dos serviços centrais do registo civil. O processo de renovação do cartão de cidadão do seu filho veio para tratamento manual devido a uma discrepância detetada...-
Percebi logo o que estava a acontecer.
- Confirme-me por favor, minha senhora: ele tem doze anos e...-
- E mede um metro e oitenta e dois, sim! Posso-lhe confirmar isso agora, no mês que vem é que talvez já não possa!-

Numa loja, no outro dia:
- Desculpe, a senhora é portuguesa?- perguntou a senhora que me estava a atender.-
- Sim, claro. Porquê?-
- Como é tão alta...Eu, se pudesse, gostava de ser assim!-
- Infelizmente não é coisa que esteja nas nossas mãos, como o ser-se mais magro ou mais gordo...- respondi, para a consolar.

Compreendo tudo o que o Tomás sente porque, com a idade dele, também eu era demasiado alta e tinha que enfrentar constantemente as exclamações de admiração.
Ser alto é fantástico. Não é que dê um sentimento de superioridade, mas acredito que traz uma sensação de segurança e confiança que o oposto talvez não traga. Também tem inconvenientes porque há momentos em que, para nos integrarmos nos grupos, nos curvamos um bocado, já para não falar dos espaços apertados nos quais a única vontade que temos é a de enrolar as pernas à volta do pescoço e deixá-las lá penduradas.

Mas o que retirei deste episódio foi uma certa sensação de impotência perante a discrepância entre o ritmo de desenvolvimento das crias e a nossa preparação para tal facto: num momento estão de chupeta na boca, com o ar mais fofinho do mundo e, depois de piscarmos os olhos, metem-nos debaixo do braço e ensinam-nos coisas a falar já com voz grossa. Num momento somos o centro das suas vidas e, no seguinte, "apenas" o porto de abrigo onde se abastecem de tudo.
Se fico incomodada com estas discrepâncias? Nem por um segundo! O seu imparável desenvolvimento é como a altura: não está nas nossas mãos controlar. Mas a maneira como encaramos o facto e os acompanhamos durante todo o processo, é como ser-se mais magro ou mais gordo: depende da nossa vontade!

Ana Amorim Dias

De mestres a discípulos

De mestres a discípulos

- Ensinei-te bem!- exclamou ele perante uma atitude minha.
Sorri embevecida com o elogio. Creio que, nessa altura, não sabia ainda que a gratidão orgulhosa do discípulo pode ficar muito aquém do sentimento de realização do mestre.

É fácil perceber que todos podemos ser discípulos durante toda a nossa existência, desde que prestemos atenção. O que talvez muitos não se apercebam é que também somos mestres... do princípio ao fim da vida. Um recém-nascido, por exemplo, é um inconsciente mestre de amor; ensina, sem saber, à mãe, milhões de lições por segundo.

A cada momento somos (ou temos a obrigação de ser) mestres em relação a uns e discípulos de outros. É esta a mais natural lei do crescimento humano.

Na fotografia que acompanha esta crónica eu estava a olhar para o meu pai.Talvez em mais um momento de consciente aprendizagem. Ou então, como tantas vezes acontecia, estava eu a ser sua mestre. O que me importa reter da curta reflexão que esta lembrança me trouxe, é que todos nascemos mestres e que, na caminhada de construção da nossa mestria, nunca nos devemos esquecer de ser, também, discípulos.

Ana Amorim Dias

O meu rolo na parede

O meu rolo na parede

Se a crónica de hoje tiver alguma "moral da história", começarei a crer que não há impossíveis. Então vamos lá!

Eram quase duas da tarde quando dei por mim a inventar letras de músicas pimba e a proferir piropos às paredes. Como é que cheguei a isto?
...Tudo começou quatro horas antes...

Num minuto pensava que trabalharia toda a manhã à secretária e, no seguinte, vi-me com uma trincha na mão a pintar acabamentos numa divisão da casa. Segui um impulso estranho e avancei. Mas depressa constatei que havia muito mais para pintar. Troquei de roupa, fui buscar o escadote e pensei: "Vou pintar isto tudo!"
É tramado pensar isto. É muito cansativo medir forças com paredes de reboco irregular e com a nossa própria teimosia. Mas aproveitei o tempo para refletir. Sem pausas. Sem medos. Era só eu, a tinta e as paredes (ok,ok, e o rolo, os pincéis, o escadote, o pano para limpar as borradas, blábláblá).
Um dos debates mais interessantes que tive comigo foi o do perfecionismo versus o "bora lá despachar". Não é caso para ter carteira profissional, mas pinto paredes desde miúda e posso dizer que sei o que faço. Só que ontem, contra os meus próprios instintos de demorado esmero, obriguei-me a um ritmo célere e, simultaneamente, a um trabalho que não envergonhasse o melhor pintor de construção civil do mundo (também me perguntei quem será ele e o porquê de não aparecer em entrevistas nos jornais e na tv).
À medida que as paredes iam mudando de cor, fui constatando que a coisa até nem estava a correr assim tão mal, apesar de ter ficado com tinta desde a sola das botas até à sobrancelha direita (literalmente).
Depressa e bem não há quem? Qual quê! Com um empenho concentrado e motivado, tudo pode acontecer!
Mas vi que estava a abusar de mim mesma quando, já quase no fim, comecei a "descompensar" e a cantar alto músicas pimba inventadas no momento sobre a vida dos pintores (Óh Sr. Quim, se precisar de letras novas é só dizer!). Alternava as ditas cantigas com expressões como: "Anda cá parede, deixa-me esfregar-te o meu rolo"... Perante o abanar de cabeças, condescendentes, de outros trabalhadores que esporadicamente passavam por mim, entendi que estava na hora de pousar o meu rolo e ir almoçar.
Vida de pintor não é fácil, mas isto é como tudo: há que passar por elas para saber dar valor.

Ana Amorim Dias

Uma vida mais feliz

Uma vida mais feliz

No outro dia disse, em público, que, se me perguntassem há uns anos o que é que eu queria da vida, teria que pensar bastante e, provavelmente, daria uma extensa e pouco clara resposta. Agora é simples: quero passar o máximo de tempo possível a fazer as coisas que mais gosto.
Fazer-se o que se gosta dá uma trabalheira incrível. Desde logo porque, antes de tudo, é necessário perceber o que é que nos faz brilhar. Depois porque, a maior parte das vezes, os inícios nunca são fáceis e compensadores.
Para viver (também) é preciso dinheiro. E caçá-lo implica tempo: esse tempo que todos deveríamos usar a fazer-produzir o que mais prazer nos dá.

Sinto uma enorme alegria sempre que me deparo com quem exerce o seu ofício com prazer: é como se me estivesse a ser provado que os eixos da humanidade se estão a alinhar bem. Há, em quem ama aquilo que faz, uma certa dose de brilhantismo que supera as competências e o profissionalismo. Há, no trabalho dessas pessoas, uma dose de instinto amoroso que inspira e toca os demais.
Creio que quem está neste encantador enquadramento tem também uma responsabilidade acrescida: a de demonstrar a quem anda à deriva que é possível viver assim, maravilhado com cada novo dia de trabalho, mas que não foi o acaso que se encarregou de tudo... É que passar o máximo de tempo possível a fazer o que nos faz feliz, implica esforço, noção de prioridades, perseverança e uma força de vontade que, às vezes, vai para além do compreensível.
Para chegarmos a passar a vida assim é preciso fazer concessões, saber trabalhar para "aquecer" e saber (às vezes durante demasiado tempo) viver com muito pouco dinheiro. Mas, por outro lado, também não há dinheiro que pague uma vida mais feliz.

Ana Amorim Dias


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17.11.13

Amar e deixar viver

Amar e deixar viver

- Sabes onde estou??-
- Sei. Algures em Itália, numa esplanada, a beber uma cerveja com os teus amigos...-
- Vá lá! Tenta! Se acertares, levo-te uma prenda!-
Fiquei realmente feliz com todo aquele entusiasmo.
- Desisto, diz-me tu.-
- Estamos na praça de São Marcos, em Veneza!
Os amigos, ao fundo, confirmavam o facto.
- Ohhhh pááá... Que bom!!!- exclamei, com um sorriso rasgado.

No dia anterior, depois de aterrar em Bolonha, o Ricardo ligou-me com uma vozinha triste:
- Está a chover... Tenho saudades tuas. É tão bom viajar contigo... És tão divertida... é diferente.
- Deixa de ser parvo! Temos o resto da vida para conhecer o Mundo. Agora vai divertir-te e aproveitar a companhia dos teus amigos, palerma!-

Amar é deixar viver. É potenciar as experiências do outro mesmo quando não estamos nelas. É ficar feliz com o enriquecimento do outro como se acontecesse connosco.
Poderia dizer também que amar bem é deixar partir, mas estaria a falhar uma das premissas mais básicas: ninguém é dono de ninguém para se arrogar o direito de permitir ou proibir o que quer que seja.
Amar é deixar viver. E é proporcionar um apoio feliz a cada nova partida. Só assim o nosso par entende todo o nosso valor e regressa não só mais rico e belo ... como a morrer de saudades.

Ana Amorim Dias

Sem facebook

Sem facebook

No fim da tertúlia sobre redes sociais, houve um senhor que rematou com uma pergunta incisiva:
- E quem seria, hoje, a Ana Amorim Dias sem o Facebook?-
Como já não havia tempo (e eu queria pensar bem no assunto), garanti-lhe que a resposta chegaria na crónica de hoje.

Quando, há quatro anos, comecei a escrever, percebi rapidamente que, nos meses em que não estava a escrever nenhum livro, sentia um vazio profundo nos meus dias. Nos primeiros meses de 2011 entrei para o facebook e, sem ter uma ideia precisa do que iria acontecer, habituei-me a escrever e publicar uma crónica quase todos os dias...

Raras são as coisas que não têm alguma sombra a acompanhar-lhes a luz. Redes sociais incluídas. Mas, da mesma maneira que manejar um carro ou um fogão implica riscos, também os novos veículos de comunicação podem ser perigosos, a menos que tenhamos maturidade e inteligência para os converter apenas em nossos aliados.
Escrever faz-me feliz; usar constantemente a criatividade reconecta-me à vida; aceitar o desafio de escrever sempre, e sobre tudo, obriga-me a uma atenção, curiosidade e coragem, que me conferem um maior entendimento de tudo. Mas é o retorno que os leitores me dão que tem feito de mim melhor pessoa; que me tem humanizado de uma forma muito prática e consistente. Não sei se inspiro, se dou o exemplo ou se sou formadora de opinião. Apenas sei que vocês, que aí estão desse lado, me transmitem talvez mais do que eu vos dou a vocês.
Agora já lhe posso responder, Jorge, que a Ana Amorim Dias, sem o facebook, talvez fosse apenas uma Ana Dias mais incompleta, mais imatura e menos preocupada em ser uma pessoa melhor.

Ana Amorim Dias

Princesa atómica

"Princesa atómica"

Arranjei finalmente meia hora para "pensar" no que vou dizer no debate de logo à tarde (a importância das redes sociais sob a perspetiva de uma escritora) e na palestra de amanhã (testemunho de uma empreendedora enquadrado na ousadia e na criatividade).
No caso da palestra de amanhã à tarde, no Teatro Municipal de Portimão, tenho que me render ao óbvio: precisaria de umas dez horas para conseguir fazer justiça ao tema, o que significa que, para o espartilhar em menos de uma hora, terei que escolher os tópicos mais importantes...

Gosto de me preparar bem para as coisas e tenho uma certa inclinação para a busca do perfecionismo, o que sempre me obrigou à rigorosa preparação de todas as intervenções deste tipo. Mas, desta vez, algo me tem estado a travar.

Passei pelo facebook ainda há minutos e li dois comentários à crónica de ontem. Espero que não se importe, querida Liceria Lobo, que os transcreva agora, aqui: "Bom dia (PRINCESA, atómica)! Tenho quase a certeza que faz tudo certo para ser feliz... Não imagina como me dão força para acreditar, as palavras com que nos presenteia e falam de si :)!" ; "Fiquei na dúvida se devia apagar o (Princesa atómica) mas saiu-me tão natural como se estivesse a falar com os meus filhos ou netos... Espero que não se ofenda... Foi a especial ternura que sinto pela sua escrita!"

Li isto e derreti. Ser chamada de "princesa atómica", de forma espontânea e, ainda por cima, como se faz a filhos ou netos, é uma espécie de três-em-um divinal. E o mais maravilhoso é que, com isto, me chegou também a resposta ao dilema que tinha em mãos: não vou prepara-me racional e exaustivamente para a palestra de amanhã. A vida e a atitude que optei ter perante ela têm-me preparado o suficiente para dar um testemunho absolutamente genuíno e espontâneo que, acredito, terá um impacto muito mais produtivo no que considero ser a minha missão de "princesa atómica": inspirar!

Obrigada, Liceria, pela resposta que, tão carinhosamente, me trouxe!

Ana Amorim Dias

Despertares

Despertares

Acordei a refilar.
- Mas o que é que tu tens?- perguntou o Ricardo, apesar de estar habituado a certos humores matutinos.
- Quero muito ouvir duas músicas, mas não as consigo encontrar porque não me lembro nem dos nomes das canções nem dos nomes dos cantores!!-
Assim que terminei a frase, como que por magia, fez-se luz na minha cabeça e gritei bem alto: "Le Vent m'a dit"!!
Ele deu o habitual suspiro (resignado à excentricidade?) e eu fiz soar a cantiga.

Meia hora depois, ao entrar no café, não quis acreditar no que estava a acontecer... a outra música que eu desejava ouvir, "Sex on Fire" dos Kings of Leon, estava a soar na rádio. Fiquei com um sorriso tão estupidamente rasgado que me devem ter tomado por louca.

Quando cheguei, há pouco, a casa, tinha uma encomenda de um amigo virtual (Obrigada, Luís Quinta, pela encantadora obra!): um livro de fotografia com uma dedicatória deliciosa. E, logo a seguir, atendi um telefonema: - Olá querida- disse-me aquela voz doce que reconheci de imediato. Fiquei a pensar quantas pessoas serão assim tratadas pela assistente do dentista, a confirmar a consulta.

Enquanto guio, lembro-me da sinceridade encantada com que o João ontem me disse "Tu és tão bonita, mãe!"; lembro-me também da magnetizada admiração com que o Tomás me olhou, enquanto eu cantava completamente feliz, a letra inteira de "Lá vem o alemão" dos Mamonas Assassinas (música que, até segunda à tarde, lhe era desconhecida)...

Os pequenos, mas colossais, milagres sucedem-se, e deixam-me a pensar na plena consciência matinal que nos traz à memória coisas que queríamos lembrar e não conseguíamos. Será que existe nisso algum exemplo escondido de que podemos praticar diariamente um "acordar" mais consciente para a vida e para a atitude que devemos ter perante ela?
Olhando para tudo o que me acontece, só me resta acreditar que devo andar a fazer bem as coisas: todos os dias acordo com a consciência fresquinha e pronta... e todos os dias desperto um pouco mais para a maneira mais eficiente de encarar a vida. Deve ser por isso que ela me traz todas as "melodias" que desejo.

Ana Amorim Dias

Leitinhos

Leitinhos

- Mamãhã...-
- Diz Tom.-
- Tens que comprar mais leitinhos, já estão mesmo no fim!-
- Ai isso é que não estão! Olha aqui: um pacote inteiro!-
- Eu sei que esses estão aí, mãe. Mas esses são os de reserva... até comprares mais, gastam-se!

A minha avó tinha uma expressão engraçada, que usava quando via alguém a comer com apetite voraz: "Assim mais vale manter um burro a pão-de-ló!" Tenho a leve impressão que o diria se conhecesse os meus filhos. Felizmente!
As pessoas que não gostam de comer causam-me um certo transtorno. Respeito quem não gosta de comidas quase nenhumas. Aceito quem apenas ingere o estritamente necessário para se manter em pé. Mas o certo é que não me consigo sentir plenamente à vontade com pessoas assim. Diz-se que quem não presta para comer, não serve para trabalhar. Nunca confirmei se isto é ou não verdade porque normalmente lido com "bons garfos". Aliás, receber em minha casa (sentido lato, entenda-se: de casa e quinta de eventos) "passarinhos" que apenas debicam, com ar enjoado, as iguarias que apresento, deixa-me com uma irritação apenas explicável por já ter compreendido que sou uma "alimentadora" nata. Gosto de empanturrar quem me rodeia. Tenho um prazer enorme em alimentar, de comida e vida, todos os que, de forma mais permanente ou mais passageira, fazem parte dos meus dias. Fico feliz ao ver os outros comer e, se o fazem com prazer, ainda mais realizada me sinto.
A leitura destes factos é, no fundo, muito simples: o profundo amor que sinto por (quase) todas as pessoas, revela-se nesta necessidade de lhes colocar comida na boca e lições no coração. Posso não saber cozinhar como um Chefe gourmet e posso não ter muito para dar, mas hei-de abraçar sempre este impulso de nutrir corpos e almas... talvez na constante esperança de que não só se alimentem como saboreiem também.
E desengane-se por favor quem pense que isto é muito altruísta pois tenho a certeza segura de que, ao alimentar os outros, me alimento ainda mais a mim!

Agora vou desenhar um asterisco na mão para não me esquecer de comprar mais leitinhos!

Ana Amorim Dias

Somewhere we belong

Somewhere we belong

O ritual do despertador com quinze minutos de avanço tornou-se uma instituição. Só assim é possível chamar a filharada toda para a grande cama e ficar por ali, uns momentos, a distribuir mimos pelos três como se não houvesse amanhã.
Hoje decidi que acordariam ainda com mais loucura: dei um salto da cama, pus a tocar o "wake me up" dos Avicii, e comecei a dançar pelo quarto.

Inventamo-nos todos os dias. Ou pelo menos temos a possibilidade (e obrigação?) de o fazer. A todo o momento temos a escolha nas mãos: sentirmo-nos felizes pode passar por uma decisão consciente.

"Não sei onde acabará esta viagem, mas sei onde começámos-la" (...)
"A vida passará por mim se eu não abrir os olhos" (...)
"Estive todo este tempo a encontrar-me...Sem saber que estava perdido" (...)

Eu ia dançando, sentindo a música, traduzindo e apreciando o poder daquelas palavras. Enquanto isso, os miúdos iam regressando à consciência, com um sorriso nos lábios.

Quase no fim da música, uma personagem diz a outra:
- Acorda e faz a mala!-
- Para onde vamos?-
- Para onde pertencemos...-

A música foi a repetir-se todo o caminho até às escolas. Há quem continue sem saber onde pertence. Mas eu tenho sorte: sei que pertenço àquela cama de mimos...e à missão de ir lembrando, todas as manhãs, que nos está a ser dada uma nova hipótese de acordar!

Ana Amorim Dias

A balada de Hill Farm

A balada de Hill Farm

Se me perguntassem qual era a série policial da minha vida, só poderia responder: a "Balada de Hill Street". Nenhuma outra chegou a ter o mesmo sabor, som e valor. Nenhuma outra marcará tanto.
Foi aliás esta série que me ambientou muito depressa a Lisboa quando, com 18 anos fresquinhos, fui para lá viver sozinha. As sirenes, que em Faro nunca se ouviam, traziam-me um emocionante travo a ação que me encantou desde o início.
Quando finalmente, alguns anos depois, aterrei pela primeira vez no JFK e me dirigi para Manhattan, o som da balada acompanhou-me por dentro...

Creio que foi há duas noites que um helicóptero voou mesmo por cima da Quinta do Monte. Eu estava a deitar-me quando o aparelho rasou tão perto que toda a casa estremeceu.
- Mãe? Ouviste isto?-
O Tomás apareceu, alarmado.
- Sim, era um helicóptero. Volta a dormir, está tudo bem.-

Na Quinta do Monte ouvem-se os animais e a brisa a soprar nas árvores, ouvem-se carros a chegar e partir, ouvem-se as vozes felizes, a música, os aspersores a regar a relva e camião do lixo às segundas e quintas à noite. O que não é costume escutar são sirenes nem aeronaves rasantes.

A vida também é som. A sua compreensão e nuances também são feitas pelo sentido da audição. E há pequenos ruídos que nos transportam não só ao passado como ao entendimento do que levamos dentro, guardado bem cá no fundo. Amo os sons do meu dia a dia, mas não posso negar que os sons da ação me despertam os sentidos e me devolvem a consciência deste amor pela aventura.

Termino esta crónica a sorrir com a coincidência. HILL, em português, é colina, mas também pode ser Monte. Escrevo ao som das baladas: não de Hill Street, mas de Hill Farm!

Ana Amorim Dias




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Unhas de gel

Unhas de gel

Tinha decido debater comigo mesma a razão pela qual nunca fiz unhas de gel. Ter um gosto tendencialmente monocromático e não apreciar perder o meu tempo com "mariquices", são justificações menores. O verdadeiro motivo para nunca ter cedido a esta crescente tendência é outro: não gosto de usar nada que não possa controlar e tirar eu mesma!
Não digo que não as haja bonitas, porque realmente há! Mas o problema surge quando os dias passam e a imaculada obra inicial dá lugar a um desmazelo ao qual a pessoa não sabe acudir por si só.

Vi na internet as notícias sobre o furacão Haiyan, um dos mais fortes alguma vez registados. Horrorizada com os números de vítimas e as imagens da calamidade que se está a viver nas Filipinas, perguntei-me por que raios haveria eu de, logo hoje, escrever sobre algo tão fútil como unhas de gel.

Neste momento o sol brilha. Pelo menos onde eu estou. Oiço as vozes despreocupadas dos comensais que hoje vieram fazer a sua festa aqui à quinta. Penso no desespero e traumas de quem, lá longe, terá que aprender a viver com a devastante experiência e suas consequentes perdas. De que me serviria não escrever sobre as fantásticas unhas a que nunca me rendi só porque não as sei corrigir e controlar? A verdade é que, perante forças como a natureza ou o destino, nada podemos. O que podemos sempre tentar controlar é a nossa vontade de não nos tornarmos demasiado insensíveis a todos os lutos do mundo. O que podemos tentar controlar é a nossa tendência de dar problemáticas importâncias a coisas que não importância rigorosamente nenhuma!

Se calhar um dia destes ainda experimento as tais unhas de gel (de uma só cor e sem desenhitos!): é que a decoração das unhas é algo com uma importância tão reduzida que nem vale a pena tentar controlar.

Ana Amorim Dias

O homem que não quer nada

O homem que não quer nada...

Nos raros dias em que não tenho algo que me inspire a crónica, vou ao bloco de notas do telemóvel e espreito os pequenos apontamentos que vou registando sempre que algo me faz pensar.

Nota de 3 de Setembro:
- Quanto é que vamos ganhar por esta merda?- disse um.
Lembro-me que anotei as falas de uma cena de um filme, na qual dois bandidos contratados iam fazer alguma maldade.
- Um homem que não quer nada é invencível!- respondeu o outro.

Normalmente registo o que não entendo à primeira; ou o que pode ser alvo de várias interpretações; ou ser base de analogias; ou me faz rir, emocionar... Bem, vocês estão a perceber a ideia.
Já tinha lido o apontamento das falas deste filme várias vezes, mas a sua hora não tinha chegado... Até ontem.

- Mãe, o que é isto?-
O João estava entretido numa das suas "expedições de armário" e apareceu-me com vários desenhos e pinturas na mão.
- Quem é que fez este cavalo mãe?-
Abri um sorriso.
- Eu.-
- E dás-me? Para pôr no meu quarto?!?-
- Claro, amor.-

Desenhei o "cavalo espantado" quando tinha onze anos, há vinte e oito, portanto. E ainda consigo lembrar-me, com todo o pormenor, do que senti ao fazê-lo: exatamente o mesmo explosivo prazer que se produz em mim durante cada processo criativo. Quando se precisa deste género de alimento, passem os anos que passem, nada muda!

Nunca me passou pela cabeça quanto é que vou receber por um livro, uma crónica, um poema. Sempre que crio, estou sintonizada no mais absoluto prazer e não em projeções de lucros.
É claro que quero sucesso, mentiria se não o admitisse. Mas sucesso sem consistência, arte e prazer, nada mais é do que uma bola de sabão.
Ocorre-me, à semelhança do que disse o enigmático bandido do filme, que se um homem que não quer nada é invencível, aquele que apenas quer o prazer criativo talvez consiga ser imortal.

Ana Amorim Dias

Muitos milhares de manhãs

Muitos milhares de manhãs

Tentei conter-me e não comentar as observações infelizes da escritora cor de rosa. Criticar e julgar não são as minhas actividades favoritas; gosto de dar o benefício da dúvida, reclamando que, se calhar, se explicaram mal ou houve alguma falha no entendimento. Perante o "tareão" que a colega estava a levar, até senti vontade de a defender... mas primeiro quis ver a tal entrevista.
Realmente a culpa do estado da nação não pertence só aos cabecitas (ia escrever cabecilhas mas nem vale a pena) de agora. Vem de há muitos, muitos anos, e reparte-se por tanta gente que, a serem responsabilizados, teríamos que criar muitos mais "postos de reclusos VIP". Mas um escritor (UM ESCRITOR!!!) acreditar na falta de civismo e inteligência de quem reclama os seus direitos??? A incredulidade invadiu-me! A questão ultrapassa classes, a meu ver. Mesmo quem é privilegiado, por sorte ou trabalho árduo, e continua a ter alguma qualidade de vida, não pode fechar os olhos, inerte, a tanto desgoverno e injustiça! Pelo contrário, é quem tem mais voz e alicerces que se deve insurgir e apoiar quem se insurge.
Estou com todos os que, sacrificando-se um pouco mais, aderiram hoje à greve. Estou com todos os que, sem se poderem sacrificar mais, optaram por não a fazer. Mas não posso defender quem, do alto do seu conforto, se "borrifa" para as pessoas! Sobretudo se é escritor(a); sobretudo se pertence àquele conjunto de seres para quem as PESSOAS devem ser o princípio, o meio e o fim de toda a sua existência.

Dou-me conta que, em breve, chegarei ao milhar de crónicas. Tenho-as escrito diariamente ao longo dos últimos anos, quase sempre de manhã. E hoje acordei a lembrar-me da Xerazade, que contava as suas histórias à noite, todas as noites, para salvar as suas compatriotas.
Quantas manhãs terei eu? Quantas mais crónicas escreverei? Alguma vez me faltará voz à pluma? E que efeito têm elas, essas palavras sentidas que a cada amanhecer me dão um renovado entendimento de tudo? Talvez não salvem a vida a ninguém, como acontecia com as histórias da Xerazade... Ou talvez ajudem muitas pessoas a ser um pouco mais felizes, não sei...
As pessoas e a vida, são o barro dos escritores, mas apenas as pessoas são o derradeiro destino das obras que deles nascem. Como pode um escritor não saber ser tolerante, compreensivo e amante de cada Ser? Não entendo. Ainda. Porque, pelas minhas contas, tenho pela frente muitos milhares de manhãs!

Ana Amorim Dias

Uma noite no deserto

Uma noite no deserto

Ainda há pouco, quando estava a pôr queijo nos croissants matinais das minhas tropas, vieram-me à memória os dois triângulos de queijo creme que comi há uma semana, mais ou menos à mesma hora...

Eram seis e dezassete quando o Moha chamou por nós.
- Se querem ver o pôr do sol, têm que se despachar!-
Eu tinha caído no mais profundo dos sonos, depois de todas as emoções do dia anterior. A resistência de ambientação àquele entorno agreste e à humilde tenda que nos acolheu, depressa cedeu lugar a uma forte lição de vida que recebi com gargalhadas.
- Ainda bem, ainda bem, ainda bem!!- dizia o Ricardo, sem parar, ao ver onde iríamos passar a nossa noite no deserto.
- Mas "ainda bem" o quê?-
- Ainda bem que foste tu a marcar isto... porque se tivesse sido eu já tinha a cabeça desfeita com tantas reclamações.-
- Eu já te expliquei que mudei, Ricardo! Mudei muito!!- disse, a rir.

A noite não foi fácil. Pernoitei vestida, imóvel, a ouvir as tenebrosas rajadas de um impressionante vento que parecia querer levar tudo pelos ares. "Depois disto qualquer hotel vai ser bom!", comecei por pensar. E depois o pensamento mudou, satisfeito por ter um abrigo a proteger-me dos elementos: "...estou bem e vou ficar ainda melhor, mais forte e preparada para tudo...", ocorreu-me antes de cair no habitual sono de defunta.

Na noite anterior, enquanto jantávamos a deliciosa tagine que o Ricardo ajudou o Moha a preparar, conversámos os três muito tempo.
- Vou contar-vos algo incrível.- disse o Moha - Os japoneses ofereceram-se para fazer um túnel a atravessar o Alto Atlas...com a condição de ficarem com tudo o que encontrassem no subsolo!-
Fi-lo repetir aquilo para ver se tinha entendido bem.
- E Marrocos aceitou?- quis eu saber.
- Não.-
Não sei se é verdade ou não, o que o meu amigo berbere nessa noite nos contou, mas fiquei impressionada.

Enquanto distribuía os croissants pelas "tropas", antes de sairmos de casa esta manhã, dei com o sentido daquilo que o queijo me trouxe à memória: quando estamos dispostos a escavar túneis na dura rocha da nossa resistência ao desconforto, descobrimos os minérios interiores que nos compõem. Tenho agora a certeza que foi aquela ventosa noite no deserto que me revelou alguns dos diamantes que trago dentro: a capacidade de aprender com tudo; neste caso com a humildade do chão de uma tenda que me protegeu de uma tempestade de areia. Há coisas que, parecendo nada valer, são de um impressionante valor!

Ana Amorim Dias

Ps- Quando forem para os lados do deserto de Merzouga, não se esqueçam de passar pelo site do Moha : www.nirvanacameltreck.com
e marcar uma noite no deserto... pode muito bem suceder que também descubram preciosos minérios em vós!

Pontualidade e paisagem

Pontualidade e paisagem

O treino do Tomás começava só às seis, mas às cinco e pouco já ele estava a dar-me pressa.
- Não podes ir mais depressa?-
- Temos mais de meia hora para fazer três quilómetros. Estamos a ir de carro: importas-te de não ser tão histérico com as horas?-

Sei que em parte (ou será totalmente?) a culpa é minha! Tanto me empenhei em incutir-lhe a pontualidade que o pobre rapaz agora sofre com o todo o excesso que integrou em si.

Parei o carro junto ao ginásio e vi-lhe um esgar de aflição.
- Oh pááá... Esqueci-me da mochila do treino na escola, mãe!-
- Sem stress, baby. Vamos buscar.-
Fizemos o caminho de volta, entre Vila Real de Santo António e Castro Marim, para depois regressar. E ele, muito atrapalhado com o transtorno que pensava estar a causar-me, ia alternando as desculpas com resmungos contra si próprio.
- Importas-te de parar, filho? Já te disse que não há problema: vamos buscar a mochila, regressamos a tempo e ainda me deste um presente!-
- Hã? Um presente?-
- Olha para a esquerda, amor...-

Adoro passar nesse bocadinho de estrada, especialmente naquele sentido e à hora do pôr do sol. Há qualquer coisa inexplicável na felicidade que sinto ao percorrer aquela mágica distância em que o sol se reflecte na água, emoldurada por colinas ao fundo. Desisti de tentar justificar o fenómeno, optando apenas por subir ligeiramente o volume da música e me deixar levar pelo estado nirvânico.

No regresso estendi-lhe o iPhone.
- Tira fotografias, Tom, para a crónica de amanhã.-
E ele tirou, talvez rendido também ao misticismo do sol a esconder-se no sapal.

Tenho que arranjar maneira de lhe arrancar o sofrimento do excesso de pontualidade. Ser pontual é uma riqueza pessoal, desde que não nos deixemos tomar pela sua escravidão. Há muitas situações em que uns minutos de atraso são mais que justificáveis pela alegria sentida ao observar a paisagem...

Ana Amorim Dias

5.11.13

Eponímia

Eponímia

Entrou no carro. Queixou-se que tinha fome porque eu não lhe tinha mandado o lanche.
- Estás louco, ou quê? Vê a bolsa da frente. Tem que estar aí!-
- Ahhh, pois está...-
Um minuto de silêncio.
- Mãe, o que é "eponímia"?-
Engoli em seco, balbuciei, encostei o carro e consultei o Google, mesmo no telemóvel.
- É quando atribuímos um nome próprio a um comum...- Achei o exemplo das unidades da Física, como volt ou ampère, um pouco incompreensíveis para ele, por isso pensei depressa: - Quando chamamos "Tareco" a todos os gatos ou "Bobby" a todos os cães, por exemplo.-
- Ahhh...-
- Percebeste? -
- Sim, percebi muito bem!-
- Mas onde aprendeste essa palavra, amor?- não estava mesmo a ver onde teria ele desencantado o neologismo.
- Ouvi num programa e perguntei ao professor... Mas tu explicaste melhor.-
Fiquei encantada com a experiência de estar a alargar o meu léxico devido à curiosidade do catraio.
- Mãe? Deves-me cinquenta cêntimos!-
- Desculpa?!?-
- Não te lembras de teres dito que cada palavra que eu ou o Tomás te ensinássemos valia cinquenta cêntimos?-
Rendi-me. Estendi-lhe um euro em adiantamento para a próxima.

Mais tarde vi-o a "namorar" um MP3 bastante humilde.
- Queres um, filhote?-
- Compras, mãe??-
- Claro. Escolhe também uns fones capazes, vá!-
Quis ir depressa para casa, para eu lhe encher o aparelho de música.
Simply Red, Scorpions, Rui Veloso, Marisa, Era, John Mayer, Dionne warwick, Bruce, Coltrane, Beatles, Frank, Jorge Palma, Caetano, Elton John, Andrés Cepeda, Ana Carolina, Bárbara Streisand, Compay, Aerosmith, Amy, Michel Fugain, Jovannotti... Eu ia escolhendo as canções, uma por uma, com um sentido de responsabilidade quase solene! O exultante encantamento de educar uma criança, caminha de mãos dadas com escolhas bem conscientes, mesmo quando tomadas de acordo com o instinto.

Fui levar-lhe o MP3 à cama para que adormecesse com música. Enquanto o aconchegava e lhe dava os últimos mimos do dia, admirei o seu semblante de conquistador infalível. Ocorreu-me então que chamar "Don Juan" a todos os engatatões também é uma eponímia... e confirmei que cada ensinamento filial vale muito, mas muito mais do que apenas cinquenta cêntimos.

Ana Amorim Dias

Berbere do Sul

Berbere do Sul

Amanheci com a chegada dos dois pestinhas à minha cama. Recuperar a mimalhada de uma semana inteira não é fácil. Quando consegui "libertar-me" daquelas duas cabeças, aninhadas no meu peito, levantei-me e escolhi qualquer coisa para vestir.

- Tu pareces uma Berbere do Sul! - disseram-me várias pessoas, durante a viagem.
- Do Sul? Porquê? - queria eu saber.
- Os do norte são mais clarinhos...-
Encarei a coisa como um delicioso elogio. Conheci bastantes e são de uma humildade, generosidade e capacidade de sobrevivência a toda a prova. Além do mais sou do Sul e tenho uma costela bem nómada.

Calças de ganga e botas altas. Uma blusa bem engomada e uma mala em vez da mochila. Ao descer as escadas comecei a rir: como me posso sentir tão cosmopolita, vivendo no meio do campo?
Abandonei o perfil "indiana", de botas trekking e calças de bolsos aos lados. Deixei de lado a atitude exploradora e a pose militar com que enxotava os árabes todos. E voltei a ser a Ana escritora, cosmopolita apesar de morar nos montes, que leva a vida a colecionar estórias e a respirar paradoxos.

Olhei para os meus filhos quando os deixei na escola: terei feito mais dois berberes do Sul? A verdade é que, do Sul ou do Norte, nómada ou sedentário, qualquer que seja o credo, origem e tom de pele, o que importa é a forma como cada um de nós sabe deixar a marca desta passagem por cá...
E agora, depois de ter lido um pouco sobre a palavra "berbere", não posso deixar de sorrir, completamente encantada: é que eles chamam a si próprios "Imazighen", ou seja, "homens livres"!

Ana Amorim Dias

Receção continental

Receção continental

Enquanto esperávamos pelo autocarro de Tarifa para Sevilha, o Ricardo apontou-me o mar com o dedo e fez aquele ar reguila. Vi as horas: sessenta minutos eram mais que suficientes para um banho e duas tapas. Nem foi preciso responder-lhe àquela provocação. Caminhámos a passo largo, trocámo-nos em plena praia e entregámo-nos à fresca e transparente receção com que a Europa nos brindou.

Pensava que tinha levado excesso de bagagem. O pareo e o biquini estavam imaculados. Mas as viagens costumam ter o condão de nos surpreender até ao fim. É claro que temos que deixar que isso aconteça. O privilégio com que se sente um acolhimento continental desta estirpe é quase tão emocionante como perceber, quase no último instante, que afinal sabemos andar por aí com a bagagem correta.

Ana Amorim Dias

O dia das quatro cidades

O dia das quatro cidades

Cheguei a Casablanca por volta do meio dia. Estava avisada de que a cidade não merecia a visita, mas quis comprovar por mim mesma, talvez devido a alguma esperança vinda do romântico peso do nome. Infelizmente a geral opinião estava certa por isso, após uma visita à imponente mesquita, convenci o Ricardo a fugirmos dali depressa.
Apanhámos o comboio no derradeiro segundo e rumámos a Rabat. Assim que saí da estacão senti-me imediatamente bem na cidade. Bonita, minimamente cuidada e, claro, cheia de obras, como Marrocos inteiro. Com as nossas passadas determinadas e velozes (resquícios genéticos de conquistadores antepassados?) em pouco tempo estávamos na Medina, nos fantásticos cemitérios sobranceiros ao mar e no Kasbah dos Oudaias, uma preciosidade a não perder. Uns petisquitos de rua, um barzinho a dar para o mar, os jardins andaluzes, e então:
- Ricardo?-
- Hum?-
- Já estou farta de Rabat, vamos para Meknés? -
- Mas tu hoje estás armada em heroína de Júlio Verne,
é?!?-
- Vá lá! Se corrermos ainda apanhamos o comboio das seis e doze!-
- Impossível! Vamos apanhar um táxi!-
- Com este trânsito? De taxi é que era impossível! Vamos!-

E mais uma vez foi à justa. Chegámos à linha ao mesmo tempo que o trem. E, enquanto a noite escurecia e eu viajava para Este, lembrei-me do que diria o meu pai...

- Mas o que é que tu consegues conhecer a esse ritmo alucinante? Não é assim que se viaja, filha! Há que saborear!-
E depois lembrei-me do seu pai, que nunca conheci, mas que também gostava de estar sempre de partida e cuja frase mais célebre era o "vamos embora?". Fiquei a matutar... Talvez haja algo mais profundo em cada um de nós que nos ritma o compasso dos dias, das viagens e da vida. Talvez o ritmo alucinante potencie, por si só, uma intensidade que compensa esta espécie de bulimia incontrolável. Sim, deve ser isso.

- Não percebes, pai? Só estou a ir ao meu ritmo. Talvez um dia volte aos sítios que mais gostei ... e me saiba bem abrandar.

Ana Amorim Dias

Do lado do sol

Do lado do sol

O autocarro das oito e meia, para Essaouira, estava cheio. O próximo seria três horas mais tarde. Ainda tentei a minha sorte, esperando que alguém se atrasasse e me deixasse dois lugares vagos, mas foi em vão.
Revi as opções: esperar tantas horas imóvel por algo que posso visitar mais tarde? Ou mudar completamente os planos, ir à estacão de comboios (mesmo ao lado) e apanhar o primeiro trem que saísse, fosse ele para onde fosse?...


- Mas, e Essaouira? Não devíamos ter esperado as três horas? É mais bonito que Casablanca... - começou o Ricardo, um pouco desconsolado, ao entrarmos para o combóio.
- Essaouira não sai do sítio e eu odeio os "devíamos" e os "e ses", por isso vamos acabar já com a conversa!-
- Bruta!-
E tem razão, não deve ser fácil aturar-me... Especialmente depois do que aconteceu a seguir!

Sentámo-nos do lado esquerdo, no sentido da marcha, e o sol batia com força.
- Vamos mudar para o outro lado, que deste bate o sol!- Disse ele.
- Teríamos que mudar de carruagem porque nesta já estão cheios e, além do mais, o sol vai bater é do outro lado!-
- Não! Vai bater é deste!-
- Caramba, Ricardo! Nem pareces um homem do campo! Vamos de Sul para Norte e é de manhã! Temos de ir do lado oeste, que é este!!-
Fez uma espécie de birra e eu resolvi aceder, sabendo de antemão o que se iria passar depois: saímos daquela carruagem, entramos noutra mais à frente e sentámo-nos do lado que ele cismou querer. Resultado: mal começou a viagem ficámos com o sol de "chapa"! Como boa esposa que sou, e perante aquela carinha embirrada, troquei de lugar com ele porque suporto melhor o sol. Sim! Vou ao sol e de costas! Mas o meu sorriso trocista e o gozo com que lhe vou repetindo "que bem que se está à sombra..." compensam absolutamente tudo!

Moral das histórias? Ter que tomar decisões de repente é fácil. Tomá-las acertadamente talvez já não seja assim tanto. Mas respeitando o nosso ritmo e maneira de ser, e usando um pouco a cabeça, dá-me ideia que ficamos com muito pouco a lamentar.

Ana Amorim Dias

Pepitas de ouro no deserto

Pepitas de ouro no deserto

- Olha! Pepitas de ouro no chão!-
- Louca...-
- A sério! Repara como brilham...-
- Ana: aquilo é bosta de camelos, já em decomposição. Brilha por causa da incidência do sol.-
Comecei a rir, em cima do meu camelo a quem baptizei de "Zé" (o de trás ficou o "bambo") e não resisti a responder-lhe:
- Mas Ricardo, enquanto as pessoas normais, no deserto, vêem miragens de água, eu vejo de pepitas de ouro, o que é que queres?-
E depois calei-me. Fiquei a ouvir o absoluto silêncio apenas entrecortado pelo roçar da mochila nas costas e pelos esporádicos arrotos do "Zé" e do "Bambo".
A visão das dunas, com os seus laminados recortes dourados pelo sol poente, trouxeram-me a imaginária melodia das bandas sonoras de épicos filmes e consegui então entregar-me inteira ao momento.

São sete da noite no deserto. A tagine já cheira. Escrevo no acampamento, sentada sobre almofadas no chão. Enquanto as estrelas se vão acendendo, às centenas lá no céu, recordo a gigantesca duna que subi, para ver a vista, assim que me desmontei do camelo. Duzentos e tal metros à pressa, porque o sol estava a tombar. Cheguei ao topo estafada, admirei a paisagem e tirei fotografias, mas foi só quando me apercebi quão depressa a noite aqui cai, que me empolguei no regresso. Só que o raio da colossal duna tinha uma tal inclinação que, a ser no ski, seria uma pista vermelha. E então decidi fazer como faço lá na neve: descer a encosta aos "ss" para atenuar o efeito vertiginoso da inclinação. Cheguei cá a baixo mesmo à justa, a já não ver quase nada. E agora, antes de me entregar às estrelas, só me resta concluir que todas as experiências acumuladas (qual fortuna de pepitas de ouro), nos vêm a servir mais tarde sem que estejamos à espera.
E depois de hoje... Bem, depois de hoje, saberei para todo o sempre distinguir bosta de camelo de pepitas de reluzente ouro.

Ana Dias

No meio do Alto Atlas

No meio do Alto Atlas

- És mesmo burra! Em vez de estares em casa sossegada, vens para estes fins de mundo repletos de perigos!-
- Já te calavas!- respondi a mim mesma enquanto Hassan, o guia berbere-Fitipaldi, punha a música "marrocaine" mais alta e dava gás à viagem.
- Afinal porque é que aqui estás, no meio do Alto Atlas, a ir sabe-se lá para onde em busca não sei do quê? Vá, responde!-
- Só podes estar a gozar!!-
- Claro que estou, parva!- conclui de mim para mim, com uma gargalhada em surdina, para rematar a questão.

Saímos com quatro horas de atraso devido a uma greve qualquer. O guia avisou que seria perigoso tentar furá-la pois podíamos ser vítimas de ataques. Comecei logo a "espingardar" com aquele tipo de folclore, mas não havia nada a fazer. O resultado foi que, depois de visitar vários locais (entre os quais o encantador Ait Ben Haddou onde filmes como o Indiana Jones, Gladiador ou o Príncipe da Pérsia foram filmados) chegámos a Ouarzazate ao fim do dia e, não bastasse o pouco tempo ali passado, ainda fizemos todo o caminho até às Gargantas do Dadès de noite. Como não vou voltar pelo mesmo percurso, perdi a oportunidade de ver a paisagem e isso, se inicialmente me irritou, depressa teve o condão de me fazer ver algo com toda a clareza. Percebi que quando viajamos de noite não podemos apreciar convenientemente a paisagem! Frase tão óbvia que até é apatetada, não? Então deixem-me alterar ligeiramente a fórmula desta equação...
Imaginem que a escuridão são os nossos medos, pessimismos, revoltas, stresses, recalcamentos, raivas e afins, e imaginem que a paisagem são os dias que se sucedem uns aos outros sem descanso. Na escuridão de toda essa porcaria, que permitimos invadir-nos, deixamos de ver a vida tal como ela é; tal como podemos fazer com que ela seja: uma paisagem encantadora; um cenário surpreendente!

Atravessei o Alto Atlas de dia, deslumbrada com a paisagem, com a música e com o embalo dançante das curvas sobre as vertiginosas ravinas. A última etapa do dia, apesar de feita à noite, aconteceu com a habitual claridade interior que me sabe iluminar o caminho...
- És uma caçadora de histórias!- disse a mim mesma.
- Hã?-
- Sim: perguntavas ainda há pouco porque é que estás aqui, a ir sabe-se lá para onde, em busca não se sabe de quê... O objetivo é bem claro!
- Escrever!! - disse eu, comigo, em coro.

Ana Amorim Dias

Concessões em Marraquesh

Concessões em Marraquesh

Entrar em Marraquesh ao som de blues pode parecer um completo disparate, mas garanto que a culpa desta vez não foi minha; era o que estava a passar no transfer para o hotel.
Cheguei à hora mais perfeita a que se pode chegar a qualquer que seja o lugar: o almoço esperava por mim; só me restava descobrir onde. Um sumo aqui, um petisco ali, uma prova mais adiante...e deliciei-me sem receios nos locais que os nativos frequentam.
Ao fim de pouco tempo passado nas praças, ruelas e souks, já não conseguia aturar as constantes investidas.
- "Vien ici". Española? Brasilêra? Compra siñora!-
Estes tipos são mestrados na arte da persuasão. Mas eu já tinha decidido não me render à qualidade de "vítima", agindo sim como discípula, por isso adotei uma postura de moura (o aspeto ajuda, claro) e deixei de passar cartão a quem quer que fosse. Ao perceberem que caminhava como uma autista, depressa desistiam do massacre e eu podia, então em paz, observar e aprender.
Por outro lado, e para uma cidade que se quer embeber de uma atmosfera mais europeia e cosmopolita (porquê, porquê?!?), falharam por completo um detalhe: por onde pára a cerveja?!? Será mais importante manterem-se genuínos e fieis aos seus princípios, ou ajustarem-se um pouco às necessidades de um setor que lhes traz tanto dinheiro?
Nunca pensei que, entre cobras, macacos, cheiros intensos e milhares de sons diferentes, conseguiria ter divagações tão profundas causadas pelo desejo ardente de uma cerveja gelada (nem costumo ter estes "ataques" de sede mas asseguro-vos que o ambiente pede mesmo!). Devem ou não, estes mouros, render-se e permitir que os turistas bebam uns canecos? Mais: devemos manter-nos genuínos ou fazer concessões a quem nos ajuda?

Eram umas oito da noite quando encontrei, no terraço de um prédio, um bar deslumbrante. Luzes baixas sobre cores quentes, decoração luxuriante e uns sons de lounge oriental a dar para o new age que me arrepiaram por dentro. Está bem que os preços me fizeram suspeitar que estava em Paris...mas havia cerveja e eu estava feliz! E foi ali, enquanto apreciava a magia do tempo a parar, que entendi que as concessões não roubam a genuinidade; pelo contrário, normalmente até lhe trazem um redobrado sentido.

Ana Amorim Dias

Uma mochila a dois terços

Uma mochila a dois terços

A cada nova partida vou tentando levar menos bagagem: aquilo que é realmente importante cabe dentro de nós e em dois terços de uma pequena mochila. Uma das coisas, contudo, que convém nunca deixar para trás é a expetativa feliz daquilo que se conseguirá trazer no regresso.
Não são malas cheias ou vazias que determinam o sucesso das viagens. O que faz delas mais um marco é o deslumbrado encantamento com que conseguimos enriquecer por dentro.

Ana Amorim Dias