(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

31.10.12

A ponta do fio




    Ontem fiquei a olhar para os armários forrados de livros na sala da minha mãe. Os mesmos que eu cheirava, lia ou consultava na infância e juventude. Fiquei presa à fileira dos  grossos volumes que compõem a enciclopédia luso-brasileira, esse importante clássico de qualquer casa habitada por jovens curiosos com pretensões a bons estudantes. Ainda me lembro que a consultava amiúde para complementar as matérias e fazer os trabalhos que me eram pedidos.
   Fiquei a olhar para as lombadas castanhas com a noção da sua atual inutilidade. Mesmo quem não tem computador nem internet em casa, pode usar essa infindável fonte de informação nas bibliotecas e outros locais e assim ampliar um pouco a sua cultura. 
   Vivemos na mais rica época de acesso à informação que a humanidade já conheceu. Temos, à distância de meia dúzia de cliques, todo o conhecimento a que possamos aspirar. Podemos, em segundos, saber o que se passa ou já se passou em qualquer local do Mundo.  Podemos, num instante, saciar qualquer sede intelectual, tirar qualquer dúvida, aprofundar qualquer tema… mas creio que não nos apercebemos verdadeiramente da incomensurável riqueza que isso representa.  E tudo porque, a muitos milhões de pessoas por este mundo fora, lhes  falta a pontinha do fio para puxar.
   Esta pontinha de fio de que vos falo é composta, em partes iguais, por dúvidas e  curiosidade.  O problema é que, para se ter dúvidas, é preciso um bocadinho de conhecimento e vontade de ter mais informações. Só assim se consegue usar a faculdade de pensar  com mais clarividência e esclarecimento.
    E agora pergunto eu: quantos de nós estamos dispostos a usar a faculdade de pensar? Quantos de nós estamos despertos para a importância da cultura histórica, geográfica, económica, política, social,  artística e todas as outras que nos fazem falta para observar convenientemente o mundo e formular pensamentos sensatos? Quantos são os que estão capacitados a puxar essa pontinha do fio do conhecimento e transformá-lo numa maior riqueza pessoal e social?
   Será que evoluímos das enciclopédias luso-brasileiras para a inesgotável fonte que é a internet para nada?  Quero acreditar que não mas,  quando vejo tanta gente a falar de futebol e do que se passa nas casas dos segredos e afins, quase  me morre a esperança…
Ana Amorim Dias

30.10.12

“Ninita” e o até já aos “Meus Branquinhos”



   Hoje deparo-me com um dilema. Dois temas inadiáveis requerem a minha atenção. É imperativo escrever sobre ambos e é por isso que esta crónica  será feita em  dois atos.
“Ninita”
    A avó Mariana, mãe da minha mãe, chamava “nena” à filha. “Nena” ou “ nenita”, é a forma carinhosa de, em castelhano, dizer menina.   Mas há coisas que (não necessariamente para mal) se deturpam e, muito rapidamente, a minha mãe começou a ser dona de uma doce alcunha: Ninita.   Durante a minha própria infância fui-me habituando a ouvir o meu pai, a minha outra avó e outras pessoas mais velhas a chamarem-lhe Ninita mas, com o passar do tempo, tal tratamento caiu no esquecimento… mas só até o Vítor e a encantadora Micá (re)entrarem de rompante nas nossas vidas.
   Hoje a Laura “Ninita” faz anos. Do alto das suas várias décadas,  mantém o ar de princesa serena que eu lhe atribuía quando só lhe chegava à cintura. Com o seu cabelo branco, andar deslizante,  pose nobre, e beleza natural,  a Laura, minha mãe, continua a ser o irreprensível ícone de matriarca compreensiva e exemplar. Mas, olhando com mais atenção, percebo que ainda nela habita a Ninita, a nena que foi em menina.  Porque todos somos tudo  o que a soma da passagem dos anos foi deixando marcado em nós.  Parabéns mãe!

Até já aos  “ Meus Branquinhos”
  Ele olhou-me com olhos tristes quando nos abraçamos com força. O combóio estava prestes a levá-los de novo para longe.
- Não vás triste… Para nos podermos ver de novo é preciso dizer “até já”.  – Segredei-lhe ao ouvido, convicta do que estava a dizer. Por muito que tenha detestado o momento do adeus, percebi que os cinco dias que passei com este maravilhoso casal valeriam todas a penas.
   Desconfio que a tristeza da separação é mais cruel para quem tem mais idade. Talvez o inconfessável receio de não haver próxima vez lhes baile no pensamento como um fantasma de negras vestes.
  Mas esses medos obscuros não passam disso mesmo: de pensamentos. Porque com a linguagem da alma o que realmente dizemos a quem amamos é que estamos sempre juntos. Para lá do espaço. Para além do tempo.
Ana Amorim Dias

  
 

29.10.12

Uma encantadora grávida



- Mãe? –
Eu estava concentrada, a cozinhar dois jantares diferentes, mas reconheci os sinais de perigo naquela vozinha sonsa.
- Diz,  Johny. 
- Podes ir à internet ver o que é que as salamandras comem? –
Eu garanto-vos solenemente que já andava a estranhar  a  acalmia  de episódios dignos de registo por parte de um dos meus personagens principais.  Levantei os olhos para lhe conseguir  “ler” melhor a linguagem corporal.  O catraio estava espevitado e enérgico, no meio de uns ligeiros saltinhos que me garantiram estar perante um caso grave e consumado.
- Desculpa?? –
- Sim, mãe! Vai lá ver o que é que as salamandras comem! Rápido! -
- Mas tu estarás bom da cabeça? Achas que agora vou andar a alimentar esses bichos asquerosos?
- Óh mãe… Não é preciso alimentá-los todos… É só a que está grávida, que eu até já separei dos outros… -
É claro que larguei as minhas habilidades gourmet e o segui para a rua, com o iphone já em riste, enquanto ele explicava a importância de alimentar bem aquela fémea para viver o privilégio de ter salamandras bébés.
- Ai João, que nojo! – Foi tudo o que consegui exclamar ao vê-lo a apanhar outra pelo rabo para juntar à coleção.
Obriguei-o a ir para o banho e abortar a missão, mas de nada serviu pois no dia seguinte fui dar com o marafado catraio a montar uma pequena sela com um boneco da lego… em cima de outra atarantada salamandra.  Assim é o meu filho mais novo: uma inesgotável fonte de invenções que não lembram a ninguém!
Ana Amorim Dias

26.10.12

A teoria do taparuer



   Começo por avisar que não me vou render à forma complicada como originalmente se escreve tupperware. Vai à portuguesa e acabou a conversa.
  Mas deixem-me começar pelo princípio, para ver se isto faz algum sentido. Há quem tenha a ambição de encontrar resposta para as grandes questões da existência, como os clássicos “de onde vimos”, “ para onde vamos”, etc.   Eu garanto-vos que não sei qual é o meu problema, mas às vezes dou comigo no desesperado  estado de quem acha que  encontraria o sentido da vida caso percebesse para onde vão os taparueres!
   Tenho a firme convicção de que poderia gastar duzentos euros por mês em taparueres e, quando precisasse, não encontraria nenhum!  É por isso que comecei a desenvolver a teoria do taparuer. Depois de anos e anos de investigações exaustivas, recolha de provas e soma de conclusões, percebi que nunca são as nossas mães, sogras, filhos, amigos ou funcionários que nos levam os taparueres. Não, nada disso! O que se passa ( e isto é um facto comprovado por todos)  é que eles pura e simplesmente se desmaterializam!  E porquê?  Porque existe um complot intergaláctico!!   Tenho quase a certeza ( só me faltam as provas finais) de que os taparueres são os diamantes do Universo. As diversas espécies de outros planetas e galáxias, usam os taparueres como moeda para as suas trocas comerciais e como por algum estranho motivo não os conseguem produzir, vêm roubá-los às cozinhas e despensas da Terra enquanto nós estamos distraídos.
  Aceito a vossa incredulidade quanto ao que acabei de escrever e é por isso mesmo que vos deixo o desafio: comprem uns quantos taparueres hoje mesmo e contem os dias que eles levam a desaparecer.
Ana Amorim Dias

25.10.12

Espuma



   Coloco duas moedas na ranhura. Viro o ponteiro para a primeira fase. Carrego no “start” e a água inicia o seu trajeto entre a agulheta e o carro.  Revejo mentalmente a lista do que queria ter preparado. A casa impecavelmente arranjada. Confere. O frigorífico repleto das coisas mais importantes. Confere. A verificação da hora de chegada do combóio que os trás. Confere.
  “Não me posso atrasar!” – Penso.  Detesto atrasos. Mais os meus que os alheios.  “A falta de pontualidade é, para mim,  uma das mais incomodativas e gritantes faltas de formação que alguém pode ter. Ainda bem que sou pontual!”.  Os pensamentos vão voando, velozes, enquanto, em piloto automático, aponto  a agulheta ao carro. 
  Faço planos. Mais dez minutos para chegar ao café. Meia hora para a crónica. Uma hora para chegar a Faro nas calmas e esperar pelo Alfa Pendular que embala  as melhores visitas com quem poderia querer privar durante os próximos dias.  Aponto a água quente para  o vidro da frente. “ Credo,  que encardido…”.  
   “E o que vou escrever hoje?”.  Divago. A água pára. Coloco mais uma moeda e continuo. Lembro-me de uma parábola que ouvia nas missas da minha infância: a diferença entre quem se desdobrava em salamaleques para receber Jesus em casa, não lhe prestando qualquer atenção, e quem o recebia sem limpar a casa nem preparar a comida, de tão compenetrado que estava em concentrar  toda a atenção na própria visita.   Viro o ponteiro para o “enxaguar” e ponho mais uma moeda, completamente desatenta ao que ali estou a fazer.
  “Vou pela via do infante ou pela nacional? Bem… já se vê.” Imagino os dias felizes que me esperam na companhia da minha mãe, da Micá e do Vítor. E a porcaria da água acaba-se de novo! O lado esquerdo do carro ainda está cheio de espuma. O stock de  moedas chegou ao fim e o senhor do Elefante ainda não chegou para trocar mais. Olho para a agulheta e para o carro. Volto a olhar e a ponderar as hipóteses.
   Sigo caminho. Pode ser que chova mais um pouco e a espuma se vá.  A parte boa do espumante episódio  é já  saber  o que vou escrever. Às vezes, quando fazemos coisas completamente alheados do que estamos a fazer, elas correm menos bem. Mas isso pode muito bem querer dizer que, simultaneamente, estamos a dar forma a  outras coisas muito mais importantes.
  E agora já me vou. Chegar atrasada é algo em que nem posso ponderar.
Ana Amorim Dias

24.10.12

I left my lips on you



   Entramos em casa. A avó, ensonada, aguarda-nos na sala enquanto as crianças já dormem o sono sereno dos inocentes.  O Ricardo fica a falar com a mãe enquanto eu levanto de novo voo, desta vez para os quartos dos meus filhos.
   Acendo a luz do quarto do João. Aprecio a forma como dorme, tão parecida à maneira como vive a vida: de frente e com os braços abertos. Beijo-lhe o rosto. Cheiro-lhe o pescoço até encher os pulmões com o doce odor que tão bem conheço. Estremece levemente e, com mais uns beijos e snifadelas, deixo-o entregue à noite. Apago e luz e sigo para o quarto do Tomás. Já ocupa a cama toda. Afasto as mantas e junto o meu rosto ao dele. Afago-lhe o cabelo cortado de fresco e pego-lhe na mão. Comparo a minha mão com a dele. Já estão do mesmo tamanho. Beijo-o de novo e sorrio enquanto recordo as saudades constantes que, ao longo dos últimos dias, o pai teve deles.
- Tu não tens saudades? Não lhes sentes a falta? – Perguntava-me.
E eu desviava a conversa por vergonha de responder a verdade.  – Digamos que não me dói a alma. Sei que estão bem… -
E, numa das vezes que a questão voltou, olhei para a chávena do café que estava a bebe, onde li:  “I left my lips on you”. Entendi então o porquê de não sofrer com saudades. Deixei-lhes a marca dos meus lábios. A marca do meu amor estará sempre com eles, ande eu por onde andar. E é por tão bem reconhecer este facto que as saudades de quem amo já não  me doem. Because I left my lips on them.
Ana Amorim Dias

23.10.12

Siracusa





   Se acaso os budistas estiverem certos,  tenho a certeza que já passei algumas vidas em Itália.  A sonoridade da língua, a cultura, a gastronomia, as paisagens e a história,  despertam-me uma sensação de pertença de tal forma confortável que não tenho como negar uma qualquer ligação  ancestral.
   Foi com a consciência deste  inegável amor por Itália que  voltei lá  toda contente, desta vez a terras sicilianas.   Foi sem esforço que, mesmo antes de partir, encarei  Siracusa como o destino mais empolgante que iria visitar. E a razão é tão simples que chega a ser parva: a forma como o nome “Siracusa” sempre me bailou  nos lábios  e me soou no fundo da alma,  conferiam-lhe,  inegavelmente, o  caráter etéreo dos sonhos.
   Cheguei lá pela fresquinha. Visitei, passeei, fotografei, e até encontrei um recanto para entrar mar adentro como é costume. Mas a cidade não fez juz ao efeito que o seu nome produz em mim! Não sei explicar porquê, mas o “clic” não se deu. E lá me fui embora, algumas horas depois, um pouco desalentada pela deceção sentida.
  Mas a vida sabe o que faz e, sem se fazer rogada, fez-me chegar a Modica, uma cidade que eu nem suspeitava existir. No fundo de um encantador vale, encontrei a cidade do chocolate e das gargalhadas. Parece que a receita do chocolate foi roubada a uns espanhóis que a truxeram dos Maias, mas não posso confirmar pois não me informei com exatidão.  Já as gargalhadas que dei, sei bem porque foram libertadas, quase me levando ao doce pranto do riso.
   Mas isso agora não interessa nada! O que importa é que tinha grandes expetativas sobre uma terra que me defraudou e nenhumas expetativas sobre outra,  que se revelou um tesouro, e isso fez-me entender que nem tudo o que pensamos adorar  é merecedor da nossa adoração ao passo que,  às vezes,  é de onde menos se espera que nos chegam as maiores bençãos.

Ana Amorim Dias
  

20.10.12

Homens-peixe




   Gozo, a segunda ilha de Malta, tem um recanto chamado Azure Window   que ontem tive a oportunidade de conhecer.  
   Prevenida com o sempre presente bikini, não me neguei a explorar  a escorregadia e irregular entrada de mar que a foto ilustra.  Mas o verdadeiro interesse deste pequeno episódio  deu-se depois de tirada a foto, quando mergulhei no precipício azul escuro que está mesmo atrás de mim.  Tomar banho num local tão profundo e com água tão translúcida faz uma certa impressão, sobretudo quando começamos a ver grandes quantidades de ar a vir à tona e peixes amarelos enormes a aproximar-se de nós.
   Por momentos o banho perdeu todo o seu encanto… até que percebi que os enormes peixes eram apenas mergulhadores desportivos que começaram a sair do buraco, um por um, sob o meu olhar aliviado.
  Não sei porquê  mas o banho acabou ali. Fiquei com saudades dos “meus” areais divinalmente extensos que roçam o oceano sem grandes sobressaltos. E fiquei a pensar que talvez não seja assim tão aventureira… Ou então foi apenas o gene do gosto pelo que nos é conhecido que resolveu vir à tona como os estupores dos homens-peixe.
Ana Amorim Dias

19.10.12

A coleção



    Normalmente quando vou de férias é sempre assim: a última coisa que faço é descansar.  Para isso tenho  as “minhas” praias e cafés; a minha casa e os seus sofás. Se escolho novos destinos é para acordar ao amanhecer e voltar para o hotel quando as pernas já se renderam e os olhos se estão a fechar; é  para caminhar por todas as ruas, espreitar todas as praças e experimentar o mar a cada oportunidade; é para provar tudo, cheirar tudo e andar em tudo;  é para  recarregar as baterias do ser à mesma velocidade que  gasto as energias do corpo.  
  A cada milha guiada, voada, andada ou navegada, tomo a consciência de que para encontrar o bonito é preciso, por vezes, passar pelo feio e que para se poder viver experiências únicas há que saber contrariar o atrito da preguiça, ignorar  o  apelo sedutor  dos caminhos seguidos pela carneirada e calar os receios que às vezes se instalam.
  Viajar é muito fácil e confortável,  mas conhecer realmente os locais que se visitam já não é assim tão simples. É preciso ter resistência, espírito de aventura e capacidade seletiva. É preciso improvisar, filtrar informação, saltar com facilidade para os planos “b” e “c” e não desistir perante as dificuldades. É preciso ter capacidade de orientação, observação e comunicação,  entre tantas coisas mais. É por isso que continuo a achar que viajar, mais que um exercício de lazer e estilo, é uma escola de vida; uma ocasião renovadamente única para nos potenciar as capacidades.  E o que  isto tem de bom é o enriquecimento de inquantificável valor que exercemos sobre nós mesmos e a seleção   de momentos  fabulosos  que  vamos acrescentando à única  coleção que realmente possuímos: a coleção de tudo aquilo que já vivemos.
Ana Amorim Dias
  
  

17.10.12

Instintos



   Sentei-me no carro e dei à chave. Concentrei-me em meter as mudanças com a mão esquerda, mas a direita teimou em tentar destravar o travão de mão.  Soprei a madeixa de cabelo que me pendia no rosto e abri o vidro.
   “Não és tu, parva!” – Disse à minha mão direita.  – “ É a outra!”  E a mão esquerda, obediente, lá destravou o carro que já tinha a marcha a trás engatada.
   Tive que pensar bem como ia sair daquele parque, mas usei a  lógica, essa fabulosa ferramenta da razão, e coisa até correu bem. Entrei na estrada sempre pela mão esquerda e com a minha mão esquerda bem ativa nas mudanças. Passaram só cinco minutos e já eu ia a guiar e a conversar alegremente como se aquilo que estava a fazer,  pela primeira vez e contra todos os meus instintos, fosse a coisa mais simples  do mundo.  E sabem que mais? É mesmo!
   Se eu pensasse bem nas coisas talvez  não me tivesse metido à noite, num carro alugado e “todo trocado”,  numa terra que me é completamente desconhecida, a guiar no que é, para mim, o lado errado da estrada. Mas a verdade é que não pensei muito e acabei por fazer algo que sempre tive curiosidade em experimentar,  para ver como me sairia.  Em boa hora o fiz pois  fiquei com a satisfatória noção de ter efetuado mais um upgrade às minhas (já vastas?) capacidades.  Em boa hora o fiz porque adoro a sensação de ter a habilidade para me desenrascar bem em situações  diferentes  e de me sentir completamente  à vontade em muito poucos minutos.    Mas o motivo que mais me alegra é ter feito uma descoberta: podemos dominar os instintos!    
   É  nas coisas mais simples que percebemos a força dos hábitos. E mesmo que alguns hábitos estejam de tal forma enraizados em nós que até lhes chamamos instintos,   percebi ontem que a desenvoltura e a capacidade de nos mantermos focados no que estamos a  fazer nos dá a superioridade do controle sobre  coisas bem importantes.
   Há instintos que podem ser perigosos por nos conduzirem na vida completamente em contra-mão. E é por isso que, da próxima vez que notar em mim instintos menos bons, me vou lembrar da experiência de condução destes dias em Malta e tentar dominá-los   com  a serenidade  e a lucidez  da razão.
Ana Amorim Dias

16.10.12

Uma dança ao luar



 Ela acabou de colocar a loiça na máquina de lavar. Olhou para o balde do lixo com preguiça mas pegou nele e saiu para a rua. Lá fora sentiu o calor da noite e o luar que a banhava. Caminhou  os trinta passos que a separavam do contentor verde, embalada pela sonoridade ritmada da música que estava a ouvir. Caminhou os trinta passos a deixar-se envolver pela tranquilidade e segurança daquele paradisíaco vale tão protegido do mundo. Colocou o saco no contentor e começou a voltar para casa.
   E então a sua sombra tomou-a nos braços e roubou-lhe uma dança. “Hoy voy a verte de nuevo, voy a  alegrar tu tristeza, vamos hacer una fiesta… “ cantava a Gloria Stefan.  E ela rendeu-se. Dançou com a sua sombra sob a luz cintilante do luar. E na sombra viu a silhueta do Cristo redentor, viu o pensador de Rodin e o Poseidon com o seu ceptro. Dançou com todos eles ao luar, num êxtase inesperado que a fez voltar a si.
   Volveu a casa no fim da música. Colocou um novo saco no balde do lixo e suspirou de alegria. O dia tinha valido a pena.
Ana Amorim Dias

(Des)governos

Qualquer dona de casa, por poucos estudos que tenha, é melhor economista  do que os nossos governantes têm sido. Qualquer pessoa percebe que quando as receitas não chegam para cobrir as despesas há que reduzir os gastos.
   Tenho trinta e oito anos e chego à conclusão que o País, durante toda a minha vida,  foi (des)governado por cabeças ocas e gananciosas que só olharam para o crescimento do volume dos seus próprios bolsos, sem olhar às consequências que inevitavelmente trariam a dez milhões de pessoas que se estão a tornar indigentes.
   O (des)governo destas décadas é semelhante ao de  uma dona de casa que, com o seu modesto salário, se permitiu comprar vestidos Gucci, sapatos Manolo Blahnik, malas Louis Vuitton e comer em restaurantes gourmet todos os dias. É semelhante a uma dona de casa que, com o seu modesto salário, adjudicou obras milionárias na sua casa de duas assoalhadas, fazendo a entrega de  entradas chorudas a que perdeu o direito por não ter como levar as obras até ao fim.
  Sempre me senti segura neste país que é o nosso. A par com o clima ameno, com a beleza deste retângulo à beira mar plantado e com a suavidade das gentes, sempre amei Portugal pela sua capacidade de me fazer sentir segura e sem medo. Nunca experimentei  o pavor de não poder falar o que penso nem de ouvir balas a zunir pelo ar quando saio à rua.   E de que serve isso agora?  De que serve este amor e valorização quando parte da minha família está na iminência de ter que emigrar?  De que serve o bom clima e a nossa linda História, quando todas as pessoas  se vêem  roubadas  por um Estado que supostamente deveria zelar pelos seus?
   Como dona de casa que também sou, já vivi ocasiões em que tudo o que era supérfluo teve que ser banido. Já vivi em grandes casas e em apartamentos mínusculos. Mas nunca roubei ninguém. Nunca, para manter o meu bem estar, lezei quem quer que fosse, muito menos o poderia fazer  com quem tenho a obrigação moral de cuidar.  
   Ao longo das últimas décadas os nossos governantes têm sido pais tiranos e injustos; viciosos e viciados. Têm sido como aqueles pais bêbados, drogados e sem honra que roubam as poupanças dos filhos e lhes tiram o pão da boca!
  O problema é conjuntural e estrutural. Não se soluciona nem rápida nem facilmente, se é que ainda tem solução.   Não digo que  os “filhos” da Nação não estejam dispostos a sacrifícios, mas é imperativo que os “filhos da mãe” que nos (des)governam, compreendam que não é só a apertar a rosca que isto lá vai. É preciso que deixem os empresários ( ignorantes ou não…) trabalhar.  É preciso que entendam que a “venda”  do turismo nacional no estrangeiro tem que ser apadrinhada. É preciso que  responsabilizem criminal e civilmente quem gastou milhões em elefantes azuis às pintinhas cor de rosa. É preciso que  devolvam alguma dignidade às pessoas e lhes recuperem  a esperança e a capacidade de  ganhar algum dinheiro pois sem ele a economia pára de vez  e aí é que Espanha ficará com vista para o mar a toda a volta. É preciso que os “filhos da mãe” que nos (des)governam   se humanizem um pouco mais e compreendam os dramas que se intensificam em cada casa, porque a economia, meus senhores,  não serve para escravizar o Homem e sim para o organizar!  
Ana Amorim Dias

O bichinho



    Todos temos um bichinho dentro de nós, seja ele qual for.  Calculo que quem costuma ler o que escrevo esteja já a prever que vou dizer que o meu bichinho é escrever. Pois desenganem-se! Esta crónica ainda vai dar algumas voltas até eu conseguir produzir uma conclusão, muito embora, confesso, tenha já uma ideia bem clara de onde é que isto vai parar.
   Escrevi a última crónica há três manhãs atrás, antes de me “enclausurar”, para uma sequência de três festas, na  Quinta do Monte, de onde apenas saí para comprar ovos e dar um tropeção no mar.
   Ora acontece que o bichinho que vêem na imagem que acompanha estas palavras,  se cruzou várias vezes no meu caminho ao longo dos últimos dias. Volta e meia eu virava-me e lá estava ele a meter-se comigo.
- Olá! Sou giro, não sou? – Perguntava-me o animal que eu não soube catalogar.
- Estás a falar comigo? –
- Sim. Tiras-me uma fotografia?... Pode vir a servir-te para alguma crónica…  -  Instigou-me.
“ Olha-me este!” – pensei – “ Mais um a fazer-se à crónica!”
   Bem, o certo é que lhe tirei a foto e aceitei o desafio. Mas foi ao não conseguir definir se o bicho é um rato, um coelhinho ou qualquer outro animal, que percebi que iria pelo caminho do “bichinho”: o bichinho que todos temos cá dentro.
   Passei a sexta, o sábado e o domingo com pessoas maravilhosas. Tanto as que me contrataram as festas como as que às suas festas vieram. Mas de todas, as mais maravilhosas  são as que  repetidamente chamo  para me ajudarem a tornar perfeitos os dias alheios que se querem especiais!  Todos juntos formamos um grupo tão eclético quanto louco e cómico. Cada um com as suas manias, conversas, ritmos e humores. Cada um com os seus sonhos, desejos, ambições e problemas. Mas todos com uma simpatia sem mácula e com uma amor à camisola “Quinta do Monte” que não tenho como agradecer.  Tenho a sorte de trabalhar com amigos; com pessoas sensacionais que,  por mais que às vezes peguem fogo às toalhas, se esqueçam dos camarões ou partam pratos, se juntam estóicamente nos momentos dos pequenos stresses para solucionar tudo com muito empenho e gargalhadas.
   E é ao fazer este balanço que acabo por perceber o significado de todos os  “bichinhos” que moram dentro de mim.  E fico a saber que, de todos eles,  o mais  ativo e constante, é o bichinho que me impulsiona na direção dos outros.   O meu mais valioso bichinho é o que me faz  conseguir estabelecer uma ligação especial com quem faz parte da minha vida.  Porque é nas mais significativas ligações que conseguimos estabelecer com os outros que os grandes valores da vida nos são revelados.
Ana Amorim Dias

11.10.12

Uma vida normal




   Não sei se vos aconteceu, na juventude, idealizarem como seria a vossa vida adulta.  E se o fizeram, não sei se ainda se recordam.   Eu lembro-me. Mas fiz batota. Só me recordo do que sonhava para a minha vida adulta porque há uns tempos descobri uma carta que me recordou sobre o que,  na altura, a minha imaginação alcançava.
  Eu imaginava uma vida citadina, com um lindo apartamento,  filhos,  um bom emprego e um eterno amor inocente e juvenil.  Imaginava uma vida absolutamente normal, porque foi na normalidade e na segurança de um bom emprego que fui levada a crer que tudo correria bem e estaria segura. 
   Li aquela carta com a incredulidade de quem se recusa a acreditar que já foi tão limitada. Li-a como se fosse a personagem de um filme de aventuras que olha, através do ecrã, para o observador  que jaz  inerte no sofá.
  Tirando os filhos, tudo o resto saiu invertido. Moro num paraíso bucólico; nunca tive  um bom emprego nem salário certo  ao fim do mês, mas tudo o que faço enche-me de um prazer inexplicável; e o amor, ao invés de inocente e juvenil, cresceu para uma aventura que se contrói, inexplicável, numa conquista surpreendente e diária.   Vivo numa vida que nem eu mesma tive capacidade para imaginar. Uma vida cheia de tempo, projetos, aspirações, energia, sol, mar, palavras, música, cultura  e emoções. Uma vida arriscada e completamente alheia à normalidade instituída  pelas mentes comuns.  E acabo por perceber que foi por ter rejeitado por completo a segurança da normalidade que agora tenho uma vida boa e “normal”.
   Não me vou pôr a imaginar mais  o futuro. Já percebi que ele tem sempre a hipótese de adquirir contornos  mais surpreendentes e atípicos do que  temos capacidade para supôr.  Já percebi que a normalidade é um conceito demasiado amplo e moldável, inconfinável  a qualquer tipo de padrão pré-estabelecido. Porque, no fundo, por mais anormal que seja a nossa vida, o truque de a viver bem, é olhá-la como se fosse a mais normal das vidas.
Ana Amorim Dias

10.10.12

Curiosos



    A convite do professor de Português do Tomás, fui  visitar uma turma de 5º ano para lhes explicar a importância da leitura e  da escrita.  Assim que cheguei ele olhou para mim e, com um olhar entristecido,  desabafou que os miúdos de hoje andam pouco curiosos.
   Ao longo de quase uma hora falei, à luz de vários contextos, sobre a importância da nossa língua, chegando mesmo a confessar que um dos mais fortes motivos da minha alegria lusa é ter a incrível riqueza da língua portuguesa à disposição do meu ofício.  Mas, cá dentro, só me ecoava o tom sentido com que o professor João Viegas se queixou da falta de curiosidade dos putos.
   Será normal que as crianças de hoje não leiam? Será normal que não tenham nem curiosidade nem a consciência da riqueza que lhes é facultada nas escolas em forma de conhecimento?
  Numa era em que a tv passa 24 horas por dia de desenhos animados em vários canais; numa época em que a internet é raínha e os jogos de computador e play stations são princípes e o mundo se lhes apresenta como um produto acabado, não seria de esperar esta apatia cerebral  por parte das nossas crianças? 
   É claro que não estou contra o formato que o Mundo adquiriu. Não sou uma aguerrida vingadora das novas tecnologias e meios de comunicação, isso seria uma estupidez. Mas não posso evitar perguntar-me como se pode dar a volta a isto, ainda mais por ter dois filhos!   Como poderemos, afinal, aliciar os miúdos a ler e a ter curiosidade em apreender pelo menos  uma mínima parte de toda a informação e conhecimento a que têm acesso?  Como semeamos a curiosidade nas nossas crianças?
   Desta vez a questão fica em aberto. Deixo a “bola” do vosso lado porque está na hora de ir cumprir a mesma missão no 6º - C, a turma do Tomás…
   E agora que penso nisto, já decidi: vou perguntar a todos eles do que é precisam para se tornarem mais curiosos!
Ana Amorim Dias

9.10.12

Por mais que se leia



   Abro os olhos como se estivesse a gravar uma cena de um filme de terror.  Procuro, aflita, o relógio ou o telemóvel porque sei que estou atrasada. Só não sei quanto tempo.
  -  Tomás! João!  Depressa!! Plano de emergência ativado!! – Vou gritando pela casa enquanto constato que já devíamos ter saído há cinco minutos.
  Os putos, cambaleantes e confusos, percebem que a coisa está grave e cooperam de forma surpreendente. Ainda nos deparamos com o grave problema do Tom que não consegue encontrar o livro de Ciências da Natureza. Entre todos, montamos uma ação de resgate ao livro que, vendo-se cercado, rapidamente aparece.
  No final das contas, o balanço do percalço não é grave: o Tomás entra na escola com dez minutos de atraso e o João mesmo em cima do toque. Mas não me perguntem como…
   E agora, tendo como testemunhas apenas o meu computador e a meia de leite escura,  relembro algo que me tem borbulhado no pensamento ao longo dos últimos dias: é que nem tudo se aprende nos livros.   Tenho andado a pensar bastante  nisto devido a uma grande amiga que, quase a ser mãe pela primeira vez, me tem dito que irá agir assim e assado com o seu bébé pois é isso que os livros lhe dizem.   E quando ela fala eu olho-a de boca aberta (literalmente, com comida à vista e tudo!).
- Querida! – Digo-lhe, quase a abaná-la – Somos sete biliões e há bébés desde que há humanidade, certo? Achas que,  antes,  as mães tinham que vestir os recém nascidos no mesmo sítio em que lhes davam banho??? Achas que,  antes, eles não saíam de casa até terem um mês? –
Ela olha-me com aquele ar que me revela que vai pensar no assunto, mas que também me deixa antever que continuará a ler como se trata de um filho.
  Há coisas que não percebo. Juro que não. Quando os meus filhos eram bébés, sempre tive o cuidado de os alimentar com comida e amor; mantê-los lavadinhos; quentes ou frescos consoante a estação e repletos de atenção e brincadeira. Ponto final. Não os acordava de x em x horas para lhes enfiar comida no bucho porque quando dormem é porque estão bem; não esperava pelo dia em que faziam quatro meses para dar a primeira sopa, ou pela vigésima quarta badalada do início do sétimo mês para introduzir o peixe!  Nada disso. Os meus meninos iam comigo para onde eu tinha que ir, brincavam com a natureza e com os animais e, com dez meses, mais coisa menos coisa, já se lambuzavam com pasteis de bacalhau e caracóis. Quem quiser que me leve presa, mas não segui nenhum livro. Segui o instinto, o amor que lhes tenho e, quem sabe a coisa mais importante: segui a ausência de ansiedade que me caracteriza! 
   Para se seguir o amor, o instinto e a ausência de ansiedade não é preciso ler livros. Basta ler ou  ouvir uma  frase  e ter a inteligência suficiente para a colocar em prática.
   Por mais que me custe admitir, há coisas que não se aprendem nos livros. E são muitas. Dei o exemplo dos filhos mas podia ter dado o exemplo dos homens, ou dos amigos, ou da família, patrões, colegas de trabalho, subordinados, etc.
   Qual é, por exemplo,  a mulher que aprende a “dar a volta” ao seu homem  com a leitura de livros sobre o tema??  Mais uma vez só lá se chega com amor, instinto e, claro, muita atitude.
   Enfim, os exemplos do que não se aprende nos livros são imensos, e escrevi hoje sobre isto porque o turbulento acordar  me fez entender que jamais de um livro se poderiam extrair ensinamentos capazes de fazer com que duas “pestes” ensonadas se unissem à sua mãe na missão impossível de fazer recuar o tempo.
Ana Amorim Dias

Boa Demanda


   Passei os anos de faculdade a ouvir, uma e outra vez,  que  mais vale um mau acordo do que uma boa demanda.  Mais tarde vim a perceber que esta espécie de  provérbio jurídico nem sempre corresponde à verdade. E se assim é no contexto dos enredos judiciais,  sinto-me com legitimidade suficiente para o derrubar por completo se o tentar aplicar à vida em geral.
   Senão vejamos: o que é a vida? Partindo da mais básica e irrefutável premissa, ela é, nada mais e nada menos,  que o intervalo entre o nascimento e a morte.  E o que se passa ( ou se deveria passar)  nesse intervalo é uma incessante demanda:  a demanda da felicidade.  Podemos procurá-la de todas as maneiras possíveis e sob todas as formas de que ela se pode revestir e, enquanto nos conseguirmos  manter  focados nesse imperativo supremo, podemos dizer que a nossa vida é uma  Boa Demanda.
   O que não percebo é porque é que milhões de pessoas se permitem a uma rendição constante e  sucessiva   aos  maus acordos!  Fico com a ideia de que, na nossa essência, trazemos instalado o gene da Boa Demanda, mas que, ao longo desse intervalo de tempo que é a vida, nos vamos acomodando aos maus acordos, por  nos trazerem uma sensação entorpecedora de segurança e estabilidade.
  Aceitamos maus acordos em tudo. Nas relações interpessoais, nos ofícios, nos estilos de vida e na forma como escolhemos encarar  as nossas existências.  Aceitamos os maus acordos porque temos um medo visceral da Boa Demanda, esse bicho tenebroso que nos obriga a arriscar tudo a todo o momento.  Não abraçamos a Boa Demanda pelo medo de perder, sem perceber que, ao fazê-lo, estamos a perder à partida tudo o que realmente importa.
  Há Vidas vencedoras e vidas perdidas. Nas primeiras  vive-se a arriscar a nossa suprema demanda, mesmo sabendo que aqui e ali se perde; nas outras, nas vidas desperdiçadas,   passa-se por cá sem perceber que muito mais vale viver na  demanda da felicidade, com todos os riscos e perdas que daí podem resultar,  do que numa sequência constante de bons e ocos acordos.
Ana Amorim Dias

5.10.12

Espanto



   Uma das muitas coisas parvas que faço com frequência é brincar aos alienígenas. Não requer  muito tempo, não precisa de companhia  e nem sequer  de qualquer tipo de adereço, no entanto é  simples ao ponto de se poder “jogar”  em qualquer lugar e ocasião.  Mas deixem-me explicar,  pois talvez  se vejam  tentados  a experimentar.
  Quando me lembro, imagino que sou um extraterrestre acabado de chegar à Terra e começo a olhar para tudo como se fosse a primeira vez; com a incredulidade de quem nada sabe e com um espanto absoluto por todas as coisas.   Com pouco esforço chego bem depressa a uma espécie de realidade paralela interior em que a única sensação que me invade é o espanto. De repente tudo fica diferente pois o olhar é completamente inocente. Não sei para que servem as coisas; não sei o que são; vejo seres a emitir sons,  mas não os entendo; vejo coisas móveis e imóveis, cores, texturas; sinto os elementos sem os saber nomear e os cheiros  sem os conseguir associar; aprecio as ações, as causas e efeitos, sem nada entender…  E o que sobra de tudo?   A beleza!  Uma visão completamente nova, limpa e espantada que me acomanha no regresso à realidade.
   Na fotografia que ilustra  esta crónica, contudo, não precisei de brincar aos alienígenas para me espantar: a minha pequenez,  no sopé deste magnífico ser vivo, foi mais do que suficiente para acionar o encantamento agradecido que tantas vezes sinto pelo Mundo.
Ana Amorim Dias

4.10.12

Kevin




  Ontem conheci o Kevin. Deambulava eu sem rumo pelas  avenidas do YouTube, a ouvir músicas em castelhano, e eis que me aparece o Kevin.  Johansen, não se confundam. Nascido no Alasca, filho de mãe argentina e pai norte-americano, tem uma obra tão fantástica que me espanta que  nunca antes tenha tropeçado nele.
  A voz,  de uma amplitude impressionante,  canta em castelhano e inglês. Músicas com influências tão díspares que vão dos sons  celtas aos brasileiros, passando por cumbias flamencas e novas abordagens do pop.  Ritmos envolventes e letras com alma. Este homem-génio, que se auto proclama um des-generado, é de uma inteligência musical como  há muito tempo não ouvia.
   Escusado será dizer que, após a descoberta, passei o resto do dia a devorar todas as suas criações. E hoje, ao acordar, comecei logo a ouvir aquela que mais me tocou, “ Desde que te perdi”…
   Continuo a ouvi-la. Esta música cumpre, perante mim,  a missão que todas as músicas deveriam abraçar: ela emociona e eleva. E, enquanto escrevo, emociono-me e elevo-me. Emociono-me. Muito. E uma lágrima de várias saudades teima em querer sair. Este é o género de tesouro com que eu corria para o colo do meu pai para partilhar com ele. Mas, emocionada, consigo sorrir: porque o partilho com todos vós.
Ana Amorim Dias
 

3.10.12

A peça de Cádiz



- Queres ir almoçar a Puerto de Santa Maria?
- Está bem. Mas tenho artigos para mandar e só estou pronta lá para as onze.
  Acabámos por passar a fronteira   ao meio dia. Ainda o convenci  a parar numas lojas em Sevilha e como o bom caminho é feito de belas paragens, detivemo-nos em Sanlucar de Barrameda e num fantástico pôr do sol em Chipiona, chegando ao Puerto de Santa Maria já à hora do Jantar.
  Mas o mais interessante deste   singelo “almoço” só chegou no dia seguinte. Tomámos um pequeno ferry para Cádiz, a cidade trimilenar de multiplas influências e considerável peso histórico onde  eu já há anos estivera.  Vi-a com outros olhos, como sempre acontece quando volvemos aos sítios muito tempo depois.  
   Mas deixem-me contar-vos a estória, que a introdução já vai longa. 
    Ao demabular entre a cidade velha e a nova, contaram-me sobre o terrível rebentamento de um engenho explosivo Franquista, ocorrido a 17 de Agosto de 1947.  Além de ter visto a dentada que a explosão deixou na baía e os fragmentos dispersos da parte da mulhalha que se finou,  ouvi o relato de quem sempre ouviu  os mais velhos  comentar  o sucedido.
  Parece que o estouro foi de tal forma forte que se chegou a ouvir no sotavento algarvio e é por isso que as pessoas de mais idade que por aqui sempre habitaram costumam dizer, face a algum barulho mais forte:  - Isto até parece a peça de Cádiz! –
   Ora agora que já conheço a expressão,  fiquei com a firme convicção de não a deixar perder, pelo menos enquanto viver. E,  quando os meus netos causarem algum estrondo  mais forte, não só exclamarei que “já parece a peça de Cádiz”,  como lhes contarei o que aconteceu e a forma como os seus trisavós, a tanta distância do sucedido, ouviram e se assustaram com o tal rebentamento.
É por isto e tantas outras coisas  que viajar enriquece  mais do que é possível explicar… mesmo que a viagem apenas consista num almocito em Puerto de Santa Maria.
Ana Amorim Dias
  

1.10.12

Batom para a dor de garganta




   Enquanto procurava  comprimidos que me aliviassem a dor de garganta, encontrei um batom errante a navegar fora dos seus domínios.  Comecei a chupar o comprimido  e  olhei para o batom que os meus dedos seguravam.  – Será que me sentia melhor com os lábios pintados? –
  Tirei a tampa e espalhei-o nos lábios com uma generosa dose. – Onde andaste todo este tempo? A tua cor é perfeita.  – Continuei a chupar o comprimido enquanto namorava, ao espelho, aqueles lábios encantadores.
   Senti-me imediatamente melhor e,  já com o comprimido chupado, concluí que os créditos não eram só seus. Havia que partilhá-los com o garrido batom que me fez sentir tão bela.
   Se calhar a luta humana pela conquista da beleza em todas as suas manifestações não é algo assim tão fútil. Não. Não é mesmo. A nossa busca incessante pelos  refinados padrões estéticos de tudo o  que nos rodeia é uma demanda legítima e, quem sabe, imprescindível para o bem estar não só do nosso âmago como também do próprio invólucro que  o  encerra.
Ana Amorim Dias