(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

5.5.14

O homem dos alguidares

O homem dos alguidares

Confesso que não faço a mínima ideia do que vos vou dizer, mas tenho que contar a história do homem dos alguidares...
Aconteceu no dia 25 de Abril, numa feira/mercado que ocorre (segundo me disseram) há bem mais de 40 anos, numa terrinha do sotavento interior chamada Pereiro.
Caminhava eu ainda meio ensonada, a par com as minhas "tropas", quando ouvi o tal pregão:
- Podem vir, podem vir! Que a loucura das mulheres é o homem dos alguidares!!
Os miúdos olharam logo para mim, só para ver a minha cara. E eu, já não sei precisar porquê, acabei por não ver o tal homem dos alguidares. Mas talvez seja melhor assim. Fiquei a imaginar que o próprio Brad Pitt tinha aterrado de pára-quedas, nos confins da Europa, liderando as operações de venda na carripana dos alguidares. Ou talvez fosse o George Clooney, todo cheio de charme, a despachar escorredores de loiça e imitações da tupperware, com a mesma pinta que usa nos anúncios da Nespresso. Eu sei lá o que perdi por não ter voltado para trás! Contudo foi melhor assim, pois tudo me leva a crer que o homem dos alguidares seria um barrigudo desdentado, sensualmente vestido com umas calças de fazenda e uma camisa aos quadrados aberta até ao umbigo que deixava bem à vista o imponente fio de ouro.
Fiquei, no entanto, com um dilema entre mãos: qual é, em boa verdade, a loucura das mulheres? Nunca, nem sequer por um segundo, imaginei que fossem pilhas e pilhas de coloridos alguidares, nem tampouco o encantador ser que os vende com um microfone na mão. Pensava que a loucura das mulheres eram homens de negócios bem sucedidos ou artistas geniais que lhes pudessem proporcionar requinte e vivências saídas dos cenários de filmes românticos. Ficou-me a conclusão de que os pregões podem ser perigosos por abalarem as nossas mais profundas crenças. É que a veemência daquele vendedor, que se via a ele mesmo como a personificação de um "sex symbol", veio levantar-me dúvidas que, creio, serão para sempre insanáveis.

Ana Amorim Dias

Mãee!

- Mãee!
Assim que chamam "mãe", eu viro a cara. Onde quer que seja e mesmo que os meus filhos não estejam comigo. A primeira vez que isto aconteceu percebi que este instinto é superior a qualquer outro e nunca se desativa.

- Deixa estar que eu levo-o.- ofereceu-se o Ricardo.
O João tinha adormecido e eu precisava de o colocar no carro para o levar para casa.
- Deixa comigo. - pisquei-lhe o olho enquanto conduzia o pequeno matulão com uma ligeireza muito prática.
- Realmente há "magias" que só as mães dominam.- disse ele.
Sorri e concordei. Esta magia é simplesmente a maior força do universo.

- Qual é o seu desejo para o dia da mãe?- perguntava uma entrevistadora a algumas mães, ontem, no noticiário.
Enquanto umas respondiam que queriam flores e outras jantar com os filhos, eu dei a minha resposta em silêncio: desejava que todos os filhos que já perderam as mães tivessem direito a meia hora com elas, sim, nem que fosse meia hora. Ah, e as mãe que perderam filhos também: se fosse possível dar a todas nem que fosse meia hora...
Comovi-me ao pensar no quanto isto seria tremendo. E mesmo que as palavras lhes faltassem, teriam o olhar.

Na minha qualidade de mãe, meço muitas vezes os confins dos meus limites através dos meus filhos. "Serias capaz disto? Se fosse para os salvar, conseguia tudo." Pelos filhos matamos e morremos se preciso for. Todas nós. É curioso como "a mãe", o ser por excelência capaz de mais amor, se pode tornar no mais acabado dos perigos quando os filhos estão em causa.
No meu papel de mãe tenho aprendido muitas coisas, sendo que a maior, talvez, é que o coração nos passa mesmo a bater fora do peito e que, assim que eles saem de nós, nunca mais voltamos a ser um ser inteiro porque ficamos partidas e espalhadas por onde quer que eles estejam.

E enquanto filha? O que quero dizer hoje na qualidade de filha? Algo tão simples quanto grandioso, creio: quero dizer que o olhar com que a minha mãe me olha, é muito bem capaz de ser o meu olhar preferido. Como no olhar que todas as mães usam com os seus filhos, aquele brinda-me com uma doçura, um amor e uma aceitação para lá do compreensível. O que até acaba por ser normal, porque, sabem? O amor de mãe é o sentimento mais singelo e, simultaneamente, mais poderoso que existe. E sim, ele sabe caber num só olhar...

Ana Amorim Dias

Um postal provinciano

Ensinamentos da província

Está sempre a acontecer-me. Vou muito bem a guiar e tenho um carro parado à frente, a impedir a passagem. A razão? Bem, o condutor pára para falar com alguém e quem vier a trás que espere que a conversa termine. A questão é: que atitude tomar? Esperar pacientemente que ponham a "escrita em dia" ou dar o leve toque de buzina para que se apercebam que estão a estorvar a navegação? Sim, a escolha é complicada. Porque se esperamos pacientemente, corremos o risco de, ao fim do segundo interminável minuto, nos começar a ferver o sangue. E se optamos pela apitadela (sempre suave e com um sorriso, não se iludam) corremos o sério risco de receber um olhar carregado de indignação.

Sou uma provinciana fabricada pelos anos aqui passados; forjada por muitas experiências que testam a paciência de todas as formas possíveis. Uma provinciana que precisa de fugir constantemente para as grandes capitais do mundo onde, caso alguém parasse para falar com alguém e impedisse o trânsito por mais de dez segundos, seria crucificado. Mas é quando estou lá nas urbes que entendo a alegria que se encerra na espera do final das conversas de quem nos atrapalha. Aqui, na província, o tempo tem outro ritmo, e as pessoas têm coisas importantes para dizer umas às outras.
Ontem, enquanto esperava que o condutor da frente terminasse a sua conversa, recordei-me de uma quadra, do António Aleixo, que sempre me encantou:
"A vida na grande terra
Corrompe a humanidade
Entre a cidade e a serra
Prefiro a serra à cidade"

Não prefiro a província nem prefiro as cidades. Preciso de ambas para me manter calibrada. Mas sei que, muitas vezes, é onde nada esperamos aprender que os grandes ensinamentos nos chegam. Afinal o que é um minuto da minha vida a comparar com um encontro importante para o condutor que circula à minha frente?

Ana Amorim Dias

Somos todos humanos

Somos todos humanos

É recorrente ouvir-me dizer, em palestras, que "de tudo o que existe no mundo, o Ser Humano é a 'coisa' mais maravilhosa!"
E digo que "é recorrente ouvir-me dizer" porque é algo que nunca está planeado e, a certa altura, sai. Sempre. E com uma veemência e verdade que até a mim me impressiona.
A ser verdade que a nossa missão de vida nos vai sendo mostrada através de sinais que devemos ser capazes de interpretar bem, no meu caso tudo me tem conduzido a acreditar que a minha missão é mostrar, a quem me queira ouvir, que a Humanidade é bela. Os Homens são tendencialmente bons e, quando não o sabem revelar, é porque têm algum problema neurológico ou simplesmente porque não foram suficientemente amados.

Aflige-me a tendência em mostrar-se o mau e esconder-se o bom. O horrível faz notícia, o encantador não. Porquê? Porque o bom é normal e o hediondo é excecional. Simples.
As pessoas habituaram-se a consumir, na TV e nos jornais, casos de horror em vários formatos. E criaram a tendência de conversar sobre isso e de comentar amiúde que o "mundo está perdido". Poderia estar, é certo. Mas enquanto existir quem perceba que por cada ato de maldade há milhões de atos de harmonia e bondade, talvez a Humanidade se salve. Por cada manifestação de racismo que acontece pelo globo, milhares de corações batem e agem em uníssono com todos os tons de pele. Por cada agressão há milhões de carinhos. Por cada facada há milhões de casais apaixonados a dar-se mútuo prazer. Por cada atitude ofensiva ao planeta e aos seus demais habitantes, há milhões de pessoas a respeitá-los e a defendê-los.

Não vos sei dar uma resposta quanto às percentagens do bem e do mal. Mas garanto, sem mentir nem me enganar, que há muito mais milhões de Homens decentes e bons do que pessoas tendencialmente nefastas. Garanto, e isto é muito importante, que não é valorizando o horror que o conseguimos vencer. Há que valorizar todos os atos de bondade, por mais singelos que sejam, porque esses sim, revelam a nossa verdadeira natureza e porque é neles que a fé em nós, enquanto espécie, se poderá restabelecer.

A minha missão, ou pelo menos uma delas, é valorizar a Humanidade em tudo o que ela tem de bom; é recordar-nos que saber ver o bem nos torna melhores. Não, não somos todos macacos. Somos todos humanos e devíamos orgulhar-nos disso. Talvez eu já o soubesse quando, com um ano e pouco de idade, comia pensativamente aquela banana.

Ana Amorim Dias

Dá trabalho

Dá trabalho

Não sei dizer se uma vida laboral feliz é mais resultante da sorte ou do esforço de cada indivíduo. Se calhar depende dos casos: há quem não se esforce muito e, por sorte, tenha a profissão de sonho; e há quem lute sem tréguas para poder fazer o que ama. Não acredito é que existam vidas laborais felizes sem o tempero da paixão.
O Homem busca, desde sempre, duas coisas muito simples: o amor e a felicidade. Esta demanda universal pela felicidade tem sido demasiado descurada no plano profissional. Bem sei que o mundo está longe de ser ideal e que todos os condicionalismos se unem para dificultar a concretização de sonhos profissionais, mas isso não é motivo suficiente para desistirmos da luta por fazer o que amamos e sermos pagos por isso.
Um dos grandes triunfos do trabalhador foi a redução do horário laboral para as oito horas diárias. Desculpem-me a franqueza, contudo o derradeiro triunfo do trabalhador seria trabalhar doze, dezasseis, dezoito horas por dia, a fazer o que mais ama! Quem quiser que discorde, eu sei bem do que falo. Fazer o que se gosta dá trabalho, mas quando se trabalha por paixão, em todas as frentes profissionais, só se pode desejar que o dia tenha mais horas.

Ana Amorim Dias

Inocências

Inocências

O senhor, dentro do balcão do café, abriu um dos jornais que tinham acabado de lhe trazer e viu uma grande folha com a fotografia de João Paulo II. Percebi-lhe a hesitação em mandá-la para o caixote do lixo. Deve ter sentido que seria uma blasfémia. Em vez disso perguntou à senhora que varria o chão:
- Sónia, você é crente?
- Não! Eu sou católica!
O meu sorriso não foi gozão, foi repleto de carinho.
- E quer esta imagem do Papa?
Ela quis.
- Este foi o que morreu, não foi? - perguntou ela.
- Foi sim.
- Nossa, que tristeza!
Acabei o meu café a rir por dentro. Delicioso.

Há um rapaz com quem às vezes me meto:
- Olha lá, cá para mim tu és heterossexual, não és?
- Bom, bom, bom! Eu não sou nada disso, ouviste!? Não entro nessas coisas esquisitas!
Fico encantada. O desconhecimento inocente não deve ser jocosamente gozado. Muito pelo contrário: uma vez que desconhecemos os motivos destas falhas, devemos aproveitar, sempre que nos seja possível, para as colmatar, acrescentando algo às vidas alheias.

Existe um mundo de diferença entre estes desconhecimentos, inocentemente revelados, e a soberba de quem debita disparates convicto da sua erudição. É que, se por um lado a falta de vocabulário nos faz equacionar a preparação de um povo para a vida, a inocência na idade adulta é capaz de nos deixar um travo doce na alma. Deve ser por isso que, perante situações destas, aproveito a gargalhada calada e me permito sentir um carinho inexplicável.

Ana Amorim Dias

O prazer maior

O prazer maior

Ontem, ao fim da tarde, estive a apresentar o meu trabalho numa biblioteca em Huelva. Adoro estes momentos em que me escutam com atenção enquanto falo do supremo prazer de criar com palavras. Aprendo sempre alguma coisa. Ou melhor, compreendo mais claramente algo que já sei. Quando falamos alto, com a voz e com os olhos, há uma espontaneidade ainda mais convicta e a verdade do ser vem à tona com palavras menos medidas mas ainda mais poderosas.
- O que é que mais gosta de transmitir a quem lê o que escreve?
- A vontade de repetir! A vontade de querer mais... Enquanto consumidora de arte, em qualquer das suas formas, sinto que algo me marca quando me fico a lembrar muito tempo daquilo que "consumi". Seja uma pintura, um espetáculo, um livro ou um filme, sei que o emissor cumpriu bem o seu papel quando a obra fica impregnada em mim e me continuo a lembrar dela por muito tempo. Um dos mais saborosos prazeres é perceber que estou a inspirar e a emocionar quem me lê. Mas, por mais poderoso que ele seja, nunca se aproxima sequer do maior prazer de todos: criar através da escrita.
Acho que quem me ouviu ficou muito bem esclarecido. E se ser escritor não é isto, então não sei o que seja.

Ana Amorim Dias

A vida é dura para quem é mole

A vida é dura com quem é mole

Estava a preparar-se para dormir quando me bombardeou com uma das suas geniais perguntas:
- Como seria o mundo se as pessoas não dormissem, mãe?
- Seria um lugar impossível. Toda a gente precisa de dormir, caso contrário os neuroniozinhos colapsam.
- E se viéssemos preparados para não ter que dormir?
- Seria fantástico! Aproveitavamos muito mais a vida!
- É por isso que dormes pouco?
- Acho que sim, João.

Custou-me um bocado acordar. Porque só dormi três horas. "Deixa-te de coisas, dormir muito é para meninas...", consolei-me.
Quis a ironia que, pouco depois desta conversa, eu tivesse que protelar as minhas horas de sono para outra noite qualquer.
"Vá, abre os olhos!", repeti-me já no fim do duche. E então lembrei-me de uma frase ouvida há dias, num simpático café sobranceiro ao Guadiana.
- A vida é dura com quem é mole! - comentou um senhor com outro, numa mesa mesmo ao lado.
Reservei a pérola como sempre faço.
A água continuou a cair sobre mim. "O dia vai ser muito cheio e terei que estar a top..."
Pensei também que não faço ideia das horas a que me poderei deitar esta noite e enumerei todos os afazeres dos próximos dias. Arrefeci um pouco a água, já totalmente desperta. Ri-me da frase que ouvi junto ao rio. "Vá lá, não te queixes! Tu adoras agitação e testar os teus limites!" As palavras de encorajamento que costumo dedicar-me, surtem sempre um mago efeito. Estas não foram exceção.
Agarrei na toalha e esfreguei-me vigorosamente, já vestida com um triunfante sorriso: "A vida é dura para quem é mole, mas muito empolgante para quem é duro!"
Sono? Sono é para moles! Venha o dia que estou pronta!

Ana Amorim Dias

Esperando à chuva

Esperando à chuva

Quando vi esta imagem comecei a rir. Porque adoro paradoxos e porque considero que o inesperado tem sempre um encanto que falha nos acontecimentos expectáveis. Senão vejamos: o que é mais encantador? O lançamento de um livro nos locais normais e para gente erudita? Ou o mesmo evento, feito de forma informal, ao longo de um dia inteiro de chuva, para pessoas que não aparentam ser apaixonados leitores?

Às vezes o Eric manda-me as críticas que fazem ao livro dele, da mesma maneira que eu lhe vou dando a conhecer o feedback que o meu recebe. Acho piada ao facto de o "Road Angels" ser o primeiro livro da vida de muitos. E vejo a beleza no facto de este abrir caminho aos próximos. Porque nunca ninguém lê só um.

Tenho que dizer ao Eric algo que nunca lhe disse: isso de dar voltas ao mundo e viver histórias incríveis não é nada de especial. O que é, de facto, um grande feito, é inspirar toda a gente como ele inspira... e ter uma fila deste encantador género de potenciais leitores a aguardar, à chuva, por uma dedicatória sua.

Ana Amorim Dias

Ressonância

Ressonância

Havia imensos. Cavalos, éguas, potros, mulas, burros. Fui caminhando entre eles, despreocupada e sem nada procurar. De repente vi-o. Um cavalo inteiro, lindo, grande. Aproximei-me lentamente. Olhámo-nos. Estranhei a minha atitude destemida, ao começar a tocar-lhe com tanta naturalidade. A minha relação com as marafadas éguas lá da Quinta não é das melhores, por isso aquele meu à vontade com um quadrúpede desconhecido, ainda por cima inteiro, fez-me entender que algo se estava a passar. A suavidade do pêlo, o olhar meigo e a sua atitude tão confiante perante a minha próxima presença, despertaram-me amor.
- Podemos tê-lo?
Foi-me explicado que não como se eu nada mais fosse que uma criança pequena. Entendi. Aceitei. Mas prolonguei o momento.

Acredito na ressonância entre os seres. Numa qualquer vibração, inaudível pelos demais, que soa por dentro dos envolvidos como se, em cada coração, se começasse a ouvir a melodia da essência que o outro emite.
Despedi-me do cavalo sem saber o seu nome. Duvido que o volte a ver algum dia. Mas o que é realmente estranho é não ter chegado a perceber se algum dia o esquecerei.

Ana Amorim Dias

O uso da liberdade

O uso da liberdade

Levantou-se do sofá.
- Mãe, vou à pesca.
- Ok.
Quinze minutos depois voltou.
- Já temos jantar!
- Mas eu já tinha outro jantar, amor!- Levantei os olhos.- Esse já é grandote!
- Então vou congelar.
- Sim, faz isso.

Reparei que nem eu lhe dei elogios, nem ele fez grande alarido do seu feito. Porque é normal. Tenho a enorme felicidade de deixar viver os meus filhos em liberdade. Porque têm muito espaço. Porque são filhos de pais companheiros, que acreditam que eles são capazes de usar bem a liberdade que têm. Porque eu e o Ricardo, como as gerações que se seguiram, já somos filhos de uma Nação factualmente livre.

Continuo a ter contas a acertar com a minha liberdade, mas o tema hoje é distinto. Continuo a achar que quem nunca conheceu a anterior realidade não tem tanto direito a falar das diferenças à boca cheia como quem de facto a sentiu. Não usar da liberdade de expressão, por exemplo, é horror que, felizmente, apenas posso imaginar.
Mas há algo que nunca devemos esquecer: a liberdade traz a responsabilidade; traz o dever das boas escolhas e faz recair sobre nós a consciência, tantas vezes esquecida, de que há deveres inerentes.
Tanto me alegra esta colossal riqueza como me entristecem as más escolhas de corruptas elites que continuam a manter-se superiores às consequências criminais dos seus ilícitos de arrombo à Nação. E, no entanto, todos somos livres de levantar a voz e apontar os nossos dedos aos seus criminosos atos. E é isto que me continua a fazer acreditar em nós enquanto País/Nação.

O peixe da liberdade ficou num saco, no congelador. E não me posso impedir de desejar que os meus filhos saibam usar sempre bem a liberdade que têm. Bem como desejo que todos e cada um de nós levemos um pouco mais a sério a tremenda riqueza da liberdade em que vivemos, conscientes não só dos direitos, mas sobretudo das incontáveis responsabilidades que a auto-determinação implica.
Porque a liberdade serve para nos fazer crescer.
E evoluir.

Ana Amorim Dias

"Snaice"

"Snaice"

Subi as escadas em média fúria.
- Da próxima vez que decidirem fazer o jantar, esqueçam! Eu faço!
Olharam-me espantados, com a pasta de dentes a saltar-lhes da boca.
- Fui ajudar-vos às oito e só saí da cozinha agora! E olhem: são dez e dez!
- Vá lá, não sejas assim...
- Ainda por cima olhem para as minhas unhas!
Riram-se e nem se atreveram a comentar o verniz todo falhado.

Sentei-me na bancada que dá da cozinha para a sala. Televisão desligada e jazz na aparelhagem. À minha frente, ainda intocado, o copo de vinho tinto do jantar. Comecei a tirar o verniz e a limar as unhas. Com toda a calma. Como todo o tempo do mundo, a apreciar a minha exclusiva companhia. Lembrei-me do telefonema do fim da tarde.
- Cunhadinha? Como estás?
- Triste. Todos lhe sentimos a falta... Era um cão muito especial...
Consolei-a como pude.
O Ice, a quem eu chamava sempre "Snaice", era o meu "sobrinho" canino, um matulão muito meigo que adorava babar-me as calças e depois me olhava de lado enquanto eu ralhava com ele. Vasculhei o iPhone, certa de lá encontrar alguma recordação dele. E depressa regressei ao dia em que lhe coloquei um lenço na cabeça para me rir um bocado.

Pintei as unhas entre pensamentos agridoces. "Porque era especial, aquele cão?", perguntei-me. Porque era especial o Samba, um gato que tive e que continuo a recordar com carinho? O que faz com que amemos certos animais e lhes permitamos o estatuto de membros da família?
No silêncio apenas cortado pela suavidade do jazz, pintando uma unha atrás da outra, percebi que todos os seres são especiais quando conseguem amar e despertar o amor.
Fica bem, Snaice, foste um "sobrinho" canino à maneira.

Ana Amorim Dias

Todos nascemos para amar

Todos nascemos para amar

- Todos nascemos para morrer!
Engasguei-me com a meia de leite.
O senhor estava na mesa do lado, na esplanada do café, e eu não pude deixar de ouvir. A senhora com quem falava ainda contrapôs qualquer coisas mas ele estava mesmo convicto. Senti pena da criatura por não perceber nada do que cá anda a fazer e reservei a frase para quando me fizesse falta.

- Já reparaste que muitas vezes as pessoas vão para missões humanitárias, lá longe, e há tanto para fazer mesmo à nossa beira? Podemos fazer tanto bem com tão pouco esforço, se nos dedicarmos a isso: podemos adotar com afetos, alimentar sem dinheiro, cuidar com atenção e curar feridas com o nosso tempo e carinho...
- Muitos desses famosos que vão para África "brincar" aos bonzinhos, fazem-no pela projeção e publicidade que isso traz à sua imagem.
- Não importam os motivos, desde que se faça o bem, Ricardo! - e contei-lhe a história de Sam Childers, que começou por salvar imensas crianças no Sudão e, com a projeção obtida com o seu livro e filme (Machine Gun Preacher), conseguiu meios para ampliar significativamente a sua maravilhosa missão.- Há pessoas extraordinárias que o são só por compaixão e mais nada!

O Joãozinho, que estava no banco de trás a ouvir a "discussão", veio mais tarde dizer-me:
- Concordo contigo, mãe!
- Hã?
- Que há pessoas que fazem bem só por ser bom, sem ser para ter nada em troca. Ser é mais importante que ter, mãe! Eu não me esqueci!
- Tu és lindo!
- Mãe? Contas-me melhor a história do Sam?
Expliquei-lhe que era drogado, traficante, criminoso condenado e que, um dia, decidiu mudar a sua vida tornando-se num bem sucedido empresário da construção civil. Contei-lhe que uma vez, na missa, se tocou com o testemunho de um missionário e aceitou o desafio de ir ajudar na reconstrução de escolas no Sudão e que, lá, descobriu a dantesca realidade de crianças contra quem os mais odiosos crimes eram (continuam a ser) cometidos.
- E os maus matavam os pais das crianças e obrigavam-nas a ser soldados. Muitas vezes até obrigavam as crianças a matar os próprios pais, João.
Horrorizado respondeu que, em semelhante situação, teria o sangue frio e a pontaria para matar quem o tentasse obrigar a tal coisa.
Passei a meia hora seguinte a explicar-lhe noções legais de ilicitude e culpa. Falei-lhe das causas de exclusão da ilicitude, como o estado de necessidade ou a legítima defesa. Expliquei-lhe a culpa, o dolo e a negligência, até que, por palavras dele, me conseguisse demonstrar que tinha entendido tudo.

As missões humanitárias começam em casa, ao falar horas a fio com quem nos compete formar. As missões humanitárias começam com quem nos rodeia, com quem não tem mais ninguém e se sente só. Começam com o tempo que usamos junto a quem precisa de atenção e carinho. Começam com o "olha, estou aqui para ti. Posso não ter nada para te dar, mas estou a ouvir-te e quero-te bem". As missões humanitárias não nos obrigam a passar meses fora de casa nem a hipotecar os bens. Basta querer dar um pouco do nosso amor a quem o não tem de outras fontes. Basta mostrar que nos preocupamos de facto e que "Tu contas, para mim!"

Queria encontrar de novo o senhor que ouvi falar, há uns dias, na esplanada do café. Queria ler-lhe esta crónica e dizer-lhe baixinho: "Vês? Ninguém nasce para morrer! Todos nascemos para amar!"
Não sei porquê, mas dá-me ideia que estaria em plena ação humanitária.

Ana Amorim Dias

Família

Família

- Cunhadinha, nem sabes o que ontem me ri com os teus sobrinhos!
Pelo ar reguila dela foi fácil perceber que vinha galhofa a caminho.
- Ontem à tarde vimos o "5 para a meia noite". Convidada: Ana Amorim Dias.
Definitivamente a narrativa previa-se interessante.
- Comentário do Miguel: "A tia aqui até parece normal!" E reposta da Laura: "Ya!"
Ri-me deliciada e ela continuou: - Como te vêem sempre na doideira, acharam que estavas muito bem comportada.

Assim que ouvi isto, em plena festa de aniversário do Joãozinho, reuni os dois encantadores malandros.
- Meninos! Venham cá tirar umas fotografias que a tia precisa de material para trabalhar!
Eles riram-se, sabendo o que os esperava. Ora o que eu não esperava era que, na sessão fotográfica, se infiltrasse mais uma sobrinha, um filho, dois sobrinhos-netos e uma sobrinha "adotada". Fiquei deliciada. Com tudo. Saber que encanto a descendência toda e sentir que me olham, embevecidos, sem nunca saberem bem como os vou surpreender a seguir, provoca-me uma sensação de orgulho muito difícil de descrever. Saber que a família está a crescer, coesa e amorosa, abrindo os seus enormes braços para receber pessoas tão lindas como a minha nova sobrinha Joana (namorada do Miguel), traz-me a noção mais verdadeira e cristalina da grande riqueza que temos.
Dizem que os nativos de caranguejo são assim: muito ligados à família e eu, que à astrologia nada ligo, vejo-me obrigada a concordar: a família é um animal alimentado a amor e o seu incomensurável valor reside não só naquilo que dela fazemos como no que ela faz de nós.

Ana Amorim Dias

A melhor prenda

A melhor prenda

O João e a prima desceram as escadas com grande espalhafato.
- Ele faz anos, ele faz anos! Já é meia noite!- gritou ela.
O "parabéns a você" começou a soar na voz de todos, para alegria do catraio que, de tão entusiasmado, até se abanava a dançar.
Decidi antecipar a entrega de algumas das prendas que lhe comprei. Entreguei-lhe os embrulhos com a carteira gira e o boné do Batman, mais o perfume e os calções de banho e a blusa com o tubarão. Foi rasgando os papeis e mostrando o seu desagrado de uma maneira tão grosseira que mal consegui disfarçar os estilhaços que se produziram cá dentro.
Cansada de fingir um bem estar que não sentia, procurei a solidão na casa de banho. "Mas que pessoa é esta? Não era assim que eu o sonhava... Em quem se tornará?" As lágrimas correram sem freios. "És a mãe dele: tens que fazer com que cada oportunidade conte!"
Puxei a cadeira para o centro da casa de banho e chamei-o. Sentei-o ao meu colo e permiti que me visse a chorar. Expliquei o que me doía e porquê.
- Olha bem para mim, João, e promete que nunca te vais esquecer disto: o que temos nada vale, apenas importa o que somos!
Pediu-me desculpa e falámos mais um pouco. Expliquei-lhe que se não gostava das coisas, as podíamos trocar ou devolver, mas que os sentimentos que magoamos nas pessoas que amamos são mais complicados de trocar.
- Desculpa ter tido esta conversa contigo, logo hoje meu amor. É que, sabes?... É infinita a felicidade de teres nascido entre nós há nove anos!
Ele abraçou-me com força. Depois limpou as suas sentidas lágrimas e regressámos à sala.

As melhores e mais valiosas prendas nunca são bens materiais. E há algumas que, embora bem duras de oferecer, nos provam que vamos sempre a tempo de alterar o futuro...para melhor.

Ana Amorim Dias.

O "homem" resistente

O "homem" resistente

Cheguei a casa às duas da manhã. No sofá, a comer bolachas e com o gato enroscado no colo, estava o Joãozinho, a ver desenhos animados.
- Então pá!? Não devias estar a dormir??
Riu-se.
- O mano e a prima já foram dormir, mas eu sou um homem resistente: o sono não me ataca!
Rebentei em gargalhadas.
- Vá! Andor à minha frente: toca a lavar esses dentes!
Observei o jeitinho decidido deste meu inspirador filho, enquanto lavava os dentes. Lembrei-me das rãs que encontrei há dias, sobre a mesa da sala, deixadas por ele para "uma decoração mais bonita". Lembrei-me da forma como ainda ontem entrou em casa, com a cana de pesca às costas e começou a voltar-se, como se nada fosse, deixando o anzol preso às cortinas. E permiti que se fosse deitar um pouco na minha cama e adormecesse aninhado em mim. Já sabia que acordaria tão cedo como eu para, como sempre, aproveitar o dia em pleno.
Este pequeno "homem" resistente tem bem a quem sair. E embora o sono nos acabe por atacar, como acontece a toda a gente, temos ambos a fortuna de saber viver bem despertos.

Ana Amorim Dias

Carvão

Carvão

- Queres peixe grelhado ou no forno?
- Grelhado.
- E que peixe te apetece?
- Salmão.
Gosto de ser assim com tudo. Decisões imediatas e sem hesitações.

Estava eu a incendiar o carvão quando o Ricardo chegou com o peixe.
- Como se faz o carvão?- perguntei-lhe.
- Engraçado, os teus filhos acabaram de me perguntar a mesma coisa. Arde-se a lenha mas abafa-se-lhe o oxigénio e fica assim: esta matéria com elevado poder calorífico.
Fiquei a pensar na quantidade de vezes em que já tive que me deixar arder sem oxigénio. Sorri. "Então é por isso que tenho tanto calor para dar..."
Às vezes, quando parece que tudo à nossa volta nos tira o oxigénio e não nos deixa respirar, é bom entendermos que podemos continuar a deixar arder a nossa chama interior. É uma das muitas maneiras de nos tornarmos, a sorrir, em pessoas cada vez mais calorosas.

Ana Amorim Dias

Mistérios da madrugada

Mistérios da madrugada

Olho para esta fotografia, tirada pouco depois de lá chegar. Fico indecisa: "talvez seja um pouco estúpido usar uma selfie com sorrisos apatetados mesmo em frente à imagem de sofrimento que vem sobre o andor."
Nessa altura eu ainda não tinha entendido nada.

- Anda connosco, Ana!
- Para procissões? Esquece, a sério.
- Mas aquilo em Ayamonte é muito giro! E há tascas por todo o lado!
Quando me quiserem convencer a algo, usem a palavra "tasca". Eram umas três e meia da manhã quando lá chegámos.
"Mas esta gente será toda louca? Multidões infindáveis nas ruas para ver passar os andores?" Ocorreu-me que Jesus é que foi um derradeiro mestre do marketing: mais de dois mil anos depois e continua tão presente como se ainda estivesse vivo. Admiro-o por isso e por tudo o que soube ser, claro. Pena que a mesquinhez humana tenha arrastado a religião para épocas históricas tão negras servindo-se do seu nome. Mas bem, também é inegável que a igreja tem feito bem muitas coisas.
Divagava eu pelos meus pensamentos, quando os andores passaram por mim. O ritmo da batida de bastões de metal no solo, marcava o compasso da marcha. Rostos suados, sofridos, quase em transe, coroavam os ombros que suportavam o peso.
"Bolas! Quantas centenas, milhares, de carregadores estafam as costas, por estes dias, em vários países do mundo? E porque o fazem? Remorsos? Culpa? Esperança de recompensas? Para expiar o pecado original que ninguém na verdade tem?"

O entendimento de tudo aquilo chegou-me numa subida inclinada. Já passava das cinco da manhã e as ruas continuavam cheias. Os carregadores dos andores paravam no início da subida, para ganhar ímpeto e força, e depois subiam a rua inteira de um só fôlego, a um ritmo tão picado que todo o andor se abanava. Do lado de cima o povo puxava e, do lado de baixo, um bando de gente, de mãos postas nos ombros da frente, ajudava a empurrar.
Por instinto comecei a bater palmas. E comovi-me. Muito. Cada um dos carregadores saberá porque ali está. Da mesma forma que cada uma das pessoas que passa a noite na rua para ver passar os andores, tem o seu próprio motivo. Desconheço-os e não me importam. O que me comoveu, entendi-o nessa subida, foi a força do Homem enquanto grupo. A energia que se produz quando estamos todos em sintonia na produção de algo bom, é tão poderosa e palpável que nos faz querer voltar. E foi quando esta energia toda me trespassou que compreendi o mistério desta madrugada.

Ana Amorim Dias

Renúncias

Renúncias

Uma amiga confessou-me a razão de não andar a pôr "gosto" nas crónicas.
- É a minha renúncia de Páscoa. Nada de internet nem de leituras.
- Bolas, se todos fizessem o mesmo, eu ficava sem "clientes".- brinquei.
Não disse mais nada porque, embora discorde, respeito. Afinal cada pessoa é que sabe como funciona consigo mesma e, se os objetivos de reflexão, purificação e evolução interior se cumprem assim, quem sou eu para objetar?
Na verdade acho muito bem essa coisa das renúncias. Mas não só na Páscoa. E, sobretudo, não sobre aquilo de que mais gostamos. O que nos dá prazer e nos deixa felizes deve ser abraçado sempre porque de maus momentos impostos já todos andamos fartos. Bem podemos é renunciar o ano inteiro a tudo o que é realmente nocivo. Renunciar a maus sentimentos e a atitudes bruscas; renunciar à inércia, à ignorância, à indiferença, ao rancor e à vingança, é o que nos devia importar de facto. E, para isso, temos que estar fortes, enérgicos e o mais felizes que pudermos, alimentando-nos o mais possível de tudo o que nos traz alegria.

Ana Amorim Dias

A máquina de pressão

A máquina de pressão

Acordei demasiado tarde para tudo o que tinha a fazer. Corri o que me sobrou da manhã, almocei à pressa e prossegui com a correria, sempre com a irritação à flor da pele. Detesto perder tempo estupidamente a dormir mais do que é estritamente necessário.
"Bonito! Duas e meia da tarde e a crónica por escrever!!"
Quinze minutos! Quinze míseros minutinhos era tudo o que eu queria, para poder restabelecer a ordem natural do meu universo...

Quando fui buscar o Miguel e o Rodrigo, para vierem brincar com o Tom e o João, avisei logo que estava irritada. Foi só no longo silêncio com que os quatro miúdos me brindaram, durante a viagem até à Quinta, que me consegui escutar outra vez. Lembrei-me da tarde de ontem e do gozo que me deu lavar umas coisas com a máquina de pressão. Ligada à água e à eletricidade, a marafada da maquineta lança um jato com tal pressão que não há porcaria que lhe resista. Fiquei salpicada dos pés à cabeça, mas ficou tudo mesmo limpinho e eu adorei cada segundo de domínio daquela pressão.

À medida que os miúdos, pobrezinhos, se foram atrevendo a comunicar entre si com sussurros, o sorriso bem disposto foi-me regressando aos poucos. "Óh minha burra: tu adoras a pressão!"- lembrei-me. Adoro mesmo. Embora continue a acreditar que nunca devemos pressionar muito os outros, perante nós a cantiga é outra. Se não nos pressionamos a fazer, a mudar, a avançar, ninguém o fará por nós. Na medida certa, a pressão ajuda, motiva, limpa, e conduz-nos a incríveis feitos. Deve ter sido por isso que acordei tão irritada... não gosto de perder tempo e é por isso que adoro ser a máquina de pressão de mim mesma: assim estou segura que jamais acordarei demasiado tarde para tudo o que quero fazer!
Mas uma coisa é certa, e esta crónica prova isso mesmo: mesmo quando acordamos demasiado tarde, ainda vamos sempre a tempo de restabelecer a ordem natural no nosso universo ideal.

Ana Amorim Dias

A extensão mais sensual 2

A extensão mais sensual II

14 de Abril. Sétima aula.

- Não pode ser na 125?
- Não, hoje vais na 500!
Fiquei com a boca tão seca que tive que ir beber água.
Sentei-me sobre ela.
Tomei-lhe o peso.
Senti-lhe o som.
Engatei a primeira, libertei suavemente os dedos da mão esquerda e parti.
Abstraí-me do facto de estar a fazer algo que nunca pensei ser capaz.
Deslizei tranquila, com o gostinho da felicidade a aflorar-me os sentidos.

Há uns anos escrevi "A extensão mais sensual", uma crónica na qual proclamava que, qual cavaleiros heróicos, os bikers têm um encanto maior, defendendo que é nas mota que a sua mais sensual extensão se encerra.

Fui fazendo tudo o que o instrutor me mandava. Mas devagar, devagarinho, para que o medo não me assistisse e o conforto de me saber no controle da situação me mergulhasse na segurança de ter tempo de reagir.

Dei por mim a pensar que a extensão mais sensual nunca é um objeto e sim a atitude com que nos deslocamos na sequência imparável do tempo que nos é dado.

Numa dedicatória que acabei mesmo agora de escrever num "Olho Ubíquo" que enviarei por correio ainda esta manhã, saíram-me estas palavras:
"Francisco: a vertigem irreprimível da partida não assiste a todos nós, mas aqueles que são por ela tocados passam a existir num plano muito mais épico..."

Podemos partir em longas viagens ou em simples passeios de domingo. Podemos embarcar nas mais inenarráveis aventuras ou em simples expedições interiores. Mas dúvidas já não me restam: a extensão mais sensual de qualquer homem ou mulher, jamais é um objeto, é sim, e será sempre, a urgência de nos superarmos e de vivermos... totalmente acordados.

Ana Amorim Dias

Vencedores

Vencedores

- Vá lá, mãe!!
- Já te disse que não me apetece.
- Mas tu prometeste.
"Bolas, que chato!"
- Como é que é mãe? Vens tentar ganhar-me ou estás com medo?
A minha essência de puto reguila falou mais alto! Peguei numa moeda, dirigi-me à mesa de matraquilhos e, com um sorriso demolidor, agarrei-me aos "comandos" dos centrais e dos avançados.
Um, dois, três, quatro golos. E o Tomás cada vez mais irritado.
- Oh mãe...que nervos.
- Não me tivesses provocado.
Ocorreu-me que talvez não estivesse a agir bem. "É só um miúdo, Ana, e é teu filho! Que tal se o deixasses marcar uns golos?". O instinto não permitiu. Continuei a marcar, um atrás do outro, sem qualquer misericórdia. "Se ele tem que aprender sobre o sabor da derrota, que seja com a sua mãe."
- Hiiii, que sorte!! Tens uma sorte!- reclamou, irritado, sem razão nenhuma.
Continuei em modo de tanque de guerra, a cilindrá-lo em silêncio. E ele quis a desforra, mas o resultado foi o mesmo: vitória absoluta da mamã provocada.
Hesitei nos sentimentos. Devia ter ficado a sentir-me mal por ter arrasado a confiança de um teenager que até joga bastante bem? Ou era legítimo ter a sensação de lhe ter ensinado que nunca se deve gozar o adversário?
- Anda tirar uma fotografia junto aos matrecos, Tomás!
- Para me humilhares na crónica de amanhã? Nem sonhes!
Decidi suborná-lo, ao mesmo tempo que prometia ser suave nas palavras. Regateámos o "preço" da selfie e o negócio ficou fechado.
Não me tinha apercebido era que o pequenino estava a ver tudo com atenção.
- Mãe? Deves-me cinquenta euros por cada crónica que escreveres sobre mim!
- Desculpa, João??
- Sim, e por todas as que já escreveste, também!
- Bolas! Tenho que vender o meu carro!- respondi entre gargalhadas.
Mais tarde adormeci a rir. E a agradecer à vida estes filhos espevitados. Ficámos todos a ganhar. O Tomás aprendeu que não se deve gozar com o adversário, mesmo que o adversário seja a sua própria mãe. O João entendeu que não vale a pena tentar extorquir o próximo. E eu? Bem, eu entendi que estou a criar dois miúdos com uma auto-confiança capaz de os tornar vencedores.

Ana Amorim Dias

Um bom trabalho

Um bom trabalho

Sentei-me ao seu lado por acaso. Ela batia imenso com um dos calcanhares no chão, naquele movimento típico do nervoso miudinho.
Foi há dois anos. Éramos ambas oradoras numa das edições do Ignite Algarve.
"Coitada da miúda...não deve perceber nada disto", pensei enquanto a via a falar quase em surdina, de olhos postos nos apontamentos.
Chegou a sua vez. Levantou-se, subiu ao palco e foi absolutamente brilhante; de um profissionalismo e calma a toda a prova. Soube nesse momento que ela é repórter da TVI e que estava a acabar de iniciar o projeto HER IDEAL, uma consistente revista online de elevada qualidade.
- Precisa de cronistas?- perguntei-lhe assim que retomou o seu lugar ao meu lado.
- Sim!
E o "negócio" ficou fechado ali mesmo, entre uma intervenção e outra.

8 de Abril, Estratégias que Marcam II

A senhora que estava sentada atrás de nós perguntou como lidamos com os nervos.
- No dia em que, antes de entrar em ação, eu não sentir as pernas a tremer um pouco, mudo de profissão!- disse a Inês- Porque isso significa que me tornei irresponsável e não estarei a fazer um bom trabalho.
- Waow, Inês! Vou escrever sobre isso!
Ela riu-se. Já está habituada.

Eu adoro falar em público e embora concorde em confessar que tenho um certo nervoso miudinho, não gosto de deixar que ele transpareça aos demais. Não o vejo com uma prova de responsabilidade e sim como uma fraqueza.
Mas comparei esta demonstração de profissionalismo da Inês ao que sinto perante cada folha em branco...

Desconfio que o derradeiro mal dos artistas é o tédio, essa sombra monstruosa do zero emocional. Das três vertigens artísticas, apenas conheço duas: a compulsão criativa e o pânico ao tédio. O vazio nunca vivi. Jamais, perante a página em branco, me senti a confrontar os fantasmas da mente muda ou da calada alma.
A página em branco é a próxima aventura que me falta viver; é a quimera que concretizo acordada; são as asas de um voo mais livre que a morte. A página em branco é o nada onde o tudo pode caber; é a alegoria dos dias que me restam viver. É o portal que, ao passar, me liberta do tédio e me permite entrar na mais épica dimensão da existência.
Como te entendo, Inês! É que no dia em que a folha em branco deixar de ser tudo isto para mim, também eu pararei pois já não estarei a saber fazer bem o meu trabalho.

Ana Amorim Dias

Je me vois dans tes yeux

Je me vois dans tes yeux

- Isabel, tira a câmera para fora!
Estavamos à entrada do aeroporto, mesmo antes do regresso.
"Mas o que é que ele está a inventar agora?"
Vi-a tirar a potente máquina com um enorme sorriso e, enquanto ele explicava a imagem que queria, o entusiasmo intensificou-se como sempre acontece a quem vai fazer mais um pouco aquilo p'ra que nasceu.

Pousámos os dois para ela. De forma a que capturasse as palavras escritas nas costas da sua tshirt e o seu reflexo nos meus óculos. Um, dois, dez disparos.
- Mais para a esquerda, Ana. Não, não tanto.
- Isso, e levanta a cabeça.
Click. Click. Click.
Não sei para que queria ele aquelas imagens, mas trabalhámos literalmente até ao último minuto.

- Je me vois dans tes yeux!
- Não é nos meus olhos, é nas minhas lentes espelhadas que te vês, tontinho!

Não sei se as imagens são para o documentário, para publicitar o clube motard da tshirt, ou simplesmente para marketing da nossa equipa mas, ao pensar um pouco sobre aquela frase, deixei-me encantar.
Quantas pessoas sorriem ao ver-se pelos meus olhos? Quantas pessoas se fortalecem e crescem ao ver-se nas minhas palavras? Um abnegado sentimento de realização pessoal tomou conta de mim. Devo andar a fazer alguma coisa bem. Porque quando as pessoas gostam de se ver através dos nossos olhos, é porque temos a divina capacidade de lhes mostrar o seu mais belo reflexo!

Ana Amorim Dias

Espiritual

Espiritual

Saboreei a tosta como se fosse a primeira vez. Deixei o prazer invadir-me sem qualquer pudor e com um sorriso que não escondia as saudades.
"Bolas, será que as saudades intensificam o sabor das coisas?"
Comentei com o Ricardo que as pessoas, ao comerem as tostas no Piratas, verão após verão, ficam com a boca a saber às memórias de todos os verões.
Bebi mais um pouco do mojito. O melhor dos meus mundos. Qual mojito do Sir Winston em Paris, qual carapuça. Este é muito melhor!
- Mãe, deixa-me provar.
- Nem sonhes! Bebidas brancas? Não, Tomás.
- Ah pois, isso são bebidas... como se diz? Espirituais.
Fartei-me de rir
- Diz-se espirituosas, filhote.

Há uma ligação direta entre os prazeres do corpo e a satisfação do espírito. Há uma relação de causa/efeito entre sabores degustados e o universo etéreo das nossas melhores memórias. E quando as saudades são aniquiladas por sabores que nos levam a habitar de novo muito do que de bom vivemos, só podemos render-nos ao guloso sorriso que nos fica...destas espirituais experiências.

Ana Amorim Dias

Engarrafamento de ideias

Engarrafamento de ideias

Deviam ser umas cinco da tarde quando aquela fabulosa tempestade de ideias começou a formar-se cá dentro, e foi de tal forma forte que às duas da manhã ainda não conseguia dormir por culpa do entusiasmo.

Perguntam-me muitas vezes como consigo ter ideias suficientes para uma crónica por dia. Costumo responder que a vida é nova e repleta de boas histórias todos os dias e que, com um pouco de atenção e criatividade, encontro constantemente novas abordagens aos temas de que mais gosto.
Ora a verdade é só uma: tenho listas e listas repletas de ideias para novos escritos. Estão no telefone, no iPad, nos blocos de notas de papel e no cérebro, claro.
Começo frequentemente o dia no impasse que brota não na escassez de ideias e sim na escolha que tenho que fazer entre várias. Vejo os produtos acabados alheios com a maldição constante do "nããão, isso assim não tem piada, é demasiado óbvio, devias ter feito assim ou assado, que era muito mais original!" Vivo na interminável e constante explosão de ideias que já não me cabem na ação e percebi que tenho que fazer algo depressa se não quero que elas pereçam num engarrafamento cerebral sem ter para onde sair!

Por isso está decidido. O meu próximo negócio consistirá na venda de ideias a quem delas precise. Câmaras municipais e Regiões de turismo que necessitem de artísticos diaporamas promocionais para promover os seus territórios; empresas publicitárias em crise criativa; empresas de marketing a precisar de mais frescas formas de ação e até, porque não, privados em busca de ideias para inovadores negócios ou diferentes formas de renovar a vida.
Como o farei? Primeiro vou chamar o Carlos, para me ajudar com o site. Depois convenço os outros artísticos sócios e que comece a festa!
Agora desculpem, mas tenho que ir, tenho aqui um engarrafamento de ideias que tenho que processar.
Caaaaaarlos!!!! Atende-me o telefone!!

Ana Amorim Dias

Fala!

- Fala!
- Atirei o pau ao gato, mas o gato não morreu... Espera lá esta já não é politicamente correta...
Estavamos as duas sozinhas em casa do Eric e, enquanto eu preparava as perguntas para a entrevista, a Isabel verificava os equipamentos de som.
- Credo, Ana! - exclamou ao ouvir o teste - Desculpa ter usado um tom tão autoritário. Que horror: "fala!"
Fiz beicinho e usei muita ironia ao responder que estou habituada a maus tratos. Houve mais situações em que recebi ordens algo secas e me socorri de uma infantilidade mimada dizendo que ia fazer queixas à minha mãe. E, claro, punha todos a rir.

Tivemos uma tarde livre para passear em Marselha e Aix en Provence. Após caminhar com eles alguns minutos, e depois de ter tirado o costumeiro número de selfies, reparei na inércia dos dois.
- Então, ó seus fotógrafos da treta! Não vão dar ao dedo?!?
Os clicks começaram de imediato, cada um deles a usar os seus fantásticos dotes em todas as direções. E eu fiquei tão deliciada a vê-los em plena ação lúdica quanto me encanta vê-los em ação laboral.
Imaginei que, quando se passam os dias a trabalhar nisto, às vezes saiba bem ver tudo sem a câmera em frente aos olhos... Mas depois lembrei-me da fortuna que tem quem alia o trabalho à paixão. Há ofícios que nos acompanham sempre, em qualquer que seja a situação ou lugar. E então entreguei-me ao prazer simples de ver estes dois fotógrafos fantásticos a darem largas à sua arte enquanto eu me deliciava com o que ia mentalmente escrevendo.
Obrigada Eric e Isabel por tudo o que me têm ensinado e inspirado. Mesmo com os vossos maus tratos, vale sempre a pena!

Ana Amorim Dias

Aconteceu outra vez!

Aconteceu outra vez! Com o "tenho tempo", o "logo faço" e o "sem stress", fiquei com a apresentação para preparar de véspera. Acabei a montagem visual e a estrutura da palestra por volta das duas da manhã. Falta-me dar uma vista de olhos à coisa, fazer uns quantos recados inadiáveis, pintar as unhas, ir para Faro e almoçar com a mami. E depois vou falar sobre estratégias de marketing para umas duzentas e tal pessoas. Não me entendam mal. Falar para 20 ou 200 é a mesma coisa: temos que dar o nosso melhor!

Olhei para os quarenta e um slides que preparei e fiquei magnetizada com o que fala da "relação direta entre o 'estou-me a borrifar' e o sucesso". Espero não vir a dar nós na cabeça de ninguém. Não tenho por hábito fazê-lo. Esta frase representa o meu prazer no trabalho. "Estar-me a borrifar" não quer dizer que me esteja "nas tintas" para as elevadas performances que sempre exijo de mim. Muito pelo contrário! Estou-me mesmo a borrifar é se entra mais ou menos dinheiro. É imperativo que isso não seja o mais importante! Quando um dos mais relevantes propósitos da nossa vida é tirar o máximo de prazer possível de todos os nossos ofícios, temos as prioridades bem definidas e é curioso porque a alegria no trabalho acaba sempre por nos premiar com riquezas impressionantes.
Posso não estar preparada ainda, mas às 14.30 estarei! Preparada para falar de estratégias que marcam e para marcar com a minha melhor estratégia: ser absolutamente feliz a fazer tudo o que faço!

Ana Amorim Dias

O que é que isso importa?

O que é que isso importa?

Eu estava a preencher os meus dados com o automatismo do costume. Nome, mail, data de nascimento. Quando chegou à parte de marcar a cruz no sexo, masculino ou feminino, fiquei em modo de bloqueio. Por uma fração de segundo o meu automatismo não soube responder. Homem ou mulher? Nem é que me tivesse ocorrido algo como "o que é que isso interessa?", mas foi um pouco estranho.

Momentos depois, a passear pelo facebook, deparei-me com o teaser do filme "Sei lá". "Idiotas", "muito básicos", "completamente inúteis", "sem nós não vão a lado nenhum", foram apenas algumas das primeiras devastadoras frases que qualificaram o sexo ao qual eu não pertenço. Fiquei incomodada. Será que todas as mulheres pensam assim? Eu não, seguramente. E duvido que a grande maioria também. Mas o que pode fazer uma mulher escrever uma coisa assim? Provavelmente tem tido muito azar com os homens, coitada. Alguém lhe explique que não se tem azar para sempre e que não é com um exemplar ou dois ou vinte que se podem generalizar as coisas.

Marquei a cruz no sexo feminino e continuei a tratar das minhas coisas. Só mais tarde, depois da incredulidade com que vi o tal teaser, é que percebi que não me faz qualquer diferença ser mulher ou homem. O que é que isso importa? O que eu gosto de ser é humana, e daquelas que, talvez por ver sempre o lado bom dos outros, não consegue formular generalistas críticas.

Ana Amorim Dias

Exaltação das virtudes

Exaltação das virtudes

Há um certo pudor inerente à exaltação das nossas qualidades. E existem muitos enquadramentos para abordar o tema.
Sentimos muitas vezes que não devemos hastear o estandarte da nossa beleza, inteligência, sentido de humor ou bondade. E, perante elogios inflamados, optamos por desvalorizá-los ou desmenti-los.

- Isto ficou perfeito! Tu és perfeita!
- Eu sei!- gritei lá do fundo.
- Deve dizer-se "obrigada" e não "eu sei"- comentou alguém a rir.
Fiquei a pensar...
Nesse dia, a crónica matinal ia nos noventa likes e uma fotografia minha, publicada ao fim da tarde, mas que não contava qualquer história, depressa superou a crónica. Deveria estar triste pelo facto de a beleza ser mais valorizada que a inteligência ou a arte? Ou devia ficar feliz por uma coisa complementar a outra?

Quando escolhemos calar os dons com que fomos abençoados, estamos a ofender a vida e isso conduz muitas vezes a que eles adormeçam em nós. O problema é que há muito quem se deixe levar por aquilo que os outros podem pensar. "Se eu bradar as minhas virtudes aos quatro ventos, o que vão pensar de mim?", é o receio que nos assiste. "Se eu me valorizar em voz alta pensarão que tudo o que tenho é um ego exacerbado."
Errado!
Devemos ser os primeiros a gostar de nós o mais possível. Temos a responsabilidade de conhecer os nossos pontos fortes, usá-los, melhorá-los e exclamá-los vezes sem conta até que os interiorizemos bem. Se estiver alguém a ouvir e ficar com a ideia errada, paciência! O certo é que para darmos ao mundo aquilo que de melhor temos, não o podemos esconder nem calar.
Quanto ao facto de a beleza valer mais que a inteligência ou vice-versa, isso que fique na escolha de cada um.

Ana Amorim Dias

A irritação invadiu-me

A irritação invadiu-me mas não deixei que ninguém percebesse. "Que raio? E agora como é que vou intervir espontaneamente?"
Tinha vontade de lhe colocar novas questões, que me iam surgindo à medida que ele respondia às que eu previamente preparara para a entrevista, contudo percebi de imediato que não iria correr o risco de me exprimir mal numa língua que não domino. E então recebi um ensinamento instantâneo sobre algo que costumo ter por garantido: a impotência comunicativa, embora não seja um fosso intransponível, é responsável por grandes perdas.
Costumo afirmar que podemos dizer absolutamente tudo a quem quer que seja pois, da maneira certa, nunca daí vem mal ao mundo. Acredito que a comunicação é a pedra mais basilar da essência humana. Mas, naquele momento em que as palavras não me assistiram, compreendi que mesmo quando pensamos dominar a arte de nos expressarmos, existem casos em que há coisas que ficam por dizer.

Ana Amorim Dias

Quais são os teus limites

Quais são os teus limites?

Tenho passado os últimos dias aqui, no Sul de França, com a sensação de estar a "brincar" aos documentários e potenciais filmes e, de repente, percebo uma verdade incontornável: por mais que encare tudo com a alegria divertida de quem ainda anda no jardim-escola, eu nunca brinco em serviço!
Por vezes o facto de pensarmos um pouco mais a fundo nas coisas, dá-lhes uma dimensão mais grandiosa. Pensar que, há precisamente um ano, eu estava aqui a entrevistar o fotógrafo meio louco para lhe escrever a biografia e agora estou com várias pessoas que acreditaram tanto na sua história como eu, conduz-me à conclusão de que os limites são uma miragem que a nossa cobardia inventa.

- Quelles sont tes limites? - É uma das vinte perguntas que hoje lhe vou colocar. Conheço-o o suficiente para imaginar a resposta.
Mas, e vocês? Quais são os vossos limites? Onde se situa a fronteira que separa o "isto talvez eu consiga" do "isso nunca me vai acontecer"?

Ultrapassar os limites do que sonhámos viver, construir e conquistar, reside na nossa vontade; mora em duas armas incríveis chamadas força de vontade e perseverança. Quando verbalizarem aquilo que realmente querem conseguir da vida, talvez o venham a dizer com o sorriso brincalhão de quem espera à partida a descrença alheia. É normal. Muitos não estão preparados para encarar os horizontes longínquos onde estabelecemos as nossas metas mas, desde que nós saibamos que podemos não ter limites, tudo correrá bem.

Agora vou indo. Decidi fazer a entrevista no meu encalhado francês. Uma língua mal falada poderia limitar-me? Nem sonhem!!

Ana Amorim Dias

Tempestade cerebral

Tempestade cerebral

Quando, num jantar, se falam quatro línguas diferentes, existe não só a desvantagem de chegar o momento em que falamos com alguém na língua errada, como a vantagem de, após o segundo copo de vinho, começarmos a falar bem uma que não dominamos muito.
Quando se precisa diariamente de combustível criativo, conhecer gente de outras nacionalidades, credos e profissões, é uma benção a aproveitar com todos os sentidos. Por isso ontem tive que me dividir em atenções entre uma desportista profissional americana e um transformador de motas francês, acabando por descurar outras conversas que não queria de todo perder.

- E este Buda? Qual é a história dele?
Há zonas da casa do Eric que parecem um museu.
Contou-me como o adquiriu e eu ri-me às gargalhadas.
- Não trocava este metro quadrado de história pela casa mais enorme e fantástica que possas imaginar.- disse-me no fim.
Acredito. Quem vive intensamente não troca os símbolos das grandes memórias por nada.

Olhei de novo para o grande cartaz de ideias apontadas que está num cavalete, no meio da sala. Para este final de tarde está marcado uma "brainstorming", uma tempestade de ideias em grupo, para criarmos um produto mesmo bom. Embora conheça demasiado bem este tipo de tempestade, costumo tê-la a sós, daí que o facto de vir a fazê-la com um grupo de fantásticas e talentosas pessoas me esteja a entusiasmar mais do posso explicar.

Olho de novo para a cabeça do Buda, símbolo de iluminação e sabedoria. E percebo que não posso deixar de agradecer a felicidade de ser alguém que vive em constante tempestade cerebral; alguém para quem o que mais conta é esta odisseia incessante de explorar e fazer crescer a mente.

Ana Amorim Dias

A caneca de Londres

A caneca de Londres

Já cheguei tarde ao alpendre. As vozes falam alto e fazem planos, mas desconfio que apesar de todo o entusiasmo ainda ninguém tomou o pequeno-almoço.
Preparo a meia de leite escura na caneca de Londres, aquela que há um ano adotei como minha. Primeiro a crónica. O resto resolve-se mais tarde.

Um ano depois estou de regresso à Provença. O Eric esperava-me no aeroporto com um semblante ao mesmo tempo alegre e triste. Desta vez a entrevista não consiste em horas e horas de gravações nem em recolher material para a biografia. O plano foi reunir uma equipa para fazer um documentário que servirá de teaser a uma produção no grande ecrã.

Por mais gente que cá esteja, a casa está vazia sem o Richard. Sem o cheiro dos cozinhados dele e sem a sua voz de patriarca absoluto a tentar proibir-me de levantar a mesa, sente-se um vazio quase palpável.

- Li uma frase gira esta manhã.- disse-me ontem o Eric.
- Qual foi?
- Os amigos são aquelas pessoas que conhecemos mesmo bem e, ainda assim, continuamos a amar.

Olho para a caneca de Londres, enquanto vou escrevendo esta crónica. Está velha, encardida e rachada, mas é a minha caneca e gosto dela assim. Com os amigos e com todas as pessoas que amamos, a equação é a mesma: por mais que lhes conheçamos os defeitos, mantermo-nos ao seu lado, nas boas e más horas, é mais que um imperativo, é a única forma de revelarmos a nós mesmos o que realmente importa na vida.

Ana Amorim Dias

Numa tasquinha em Sevilha

Numa tasquinha em Sevilha

- Tu já reparaste que todos os "camareros" nos contam histórias?
Ele riu-se da minha alegria.
- Acho que hoje vais ficar cheia delas! Vais ter para crónicas e crónicas!

Íamos parando nas tascas que nos pareciam ter alma. O problema é que, entre Santa Cruz e Triana, todas as tascas a têm. Una copa y una tapa. Otra copa y otra tapa... Quando me apercebi já não podia comer mais e tinha estado em tantas esplanadas que vira a senhora da estátua do cimo da Giralda de todas as perspetivas possíveis.

- Há duas escolhas na vida de cada Homem que o podem levar a dois caminhos opostos...- começou o Ricardo a divagar.
- Quais caminhos? E quais escolhas? - o sol batia-me no rosto e eu estava simplesmente para lá do paraíso.
- Ter muito e viver pouco conduz à escravidão. Ter pouco e viver muito conduz à santidade...
- Waow! Então e ter muito e viver muito? Conduz a quê?

Não faço já a mínima ideia do que ele respondeu. Mas entendi-lhe o sentido. "Ter" é sempre menos importante que "ser", ponto final. E, naquele momento, eu estava a "ser" de tal maneira que estava a "ter" o mundo inteiro, numa tasquinha em Sevilha.

Agora tenho que me apressar porque os aviões não esperam.

Ana Amorim Dias

A cabeça de Buda

A cabeça de Buda

- Foste tu, João?
- Não, mami.
- Tomás?
- Não olhes para mim!
- Gato? Tens alguma coisa a dizer?
Olhou-me de lado e nem sequer miou.
Acreditei nos três. Como não pertenço àquela estirpe de mães que se "passam" com este com este tipo de coisas, eles não têm motivos para não admitir eventuais culpas. Além do mais, assim que esta manhã fiquei com a cabeça do Buda na mão, soube logo quem tinha sido.

A tática de "o próximo a tocar é que partiu" é uma verdadeira delícia. É a relíquia das inocentes traquinices infantis. Lembro-me aliás de uma pequena Vénus de Milo que havia em casa dos meus pais que, além de já não ter os braços, ficou meses também sem cabeça sem que ninguém desse por isso. Esta é uma das inócuas e clássicas patifarias que duvido que alguém nunca tenha feito.
O certo é que fiquei com a cabeça do Buda na mão e, em vez de me irritar, aproveitei a espiritualidade do momento matinal e, logo depois de pensar que tenho de comprar cola, senti-me uma privilegiada. Isto de ter na mão a cabeça de Buda pode muito bem ser uma linda alegoria aos belos ensinamentos que todos os dias nos caem nas mãos.

Ana Amorim Dias

As horas de despertar

As horas do despertar

Abri os olhos. A luz que banhava o quarto não me soube dizer as horas, só me revelou um sol radioso. "Mas hoje não ia chover? Bem, é melhor assim, sempre dá para jogar ténis."
Perguntei as horas ao telefone. Valorizo muito a localização temporal do despertar. Oito e cinco. "Será a hora nova? Pela velha seriam sete?"
O som aparvalhado de vários pássaros diferentes trouxe-me uma irritação divertida. "Shhhiuu, cantem mais baixo!"
Virei-me. "Como é que Ana? Vais ficar aqui e adormecer de novo ou aproveitar o dia de raiz?"
Não consigo ficar na cama a menos que haja ocupação. "Que chatice, seres assim, pá. Dormes que nem uma rocha e pronto? That's it?"
Lembrei-me que mudei a direção do meu sono, de há uns dois meses para cá. Usei a bússola e verifiquei: "No outro quarto dormias com os pés para 135 graus sudeste, agora dormes virada aos 220 graus sudoeste. E o que mudou? Nada. Um quarto maior, mas à mesma cheio de luz. Uma cama maior e à mesma cheia de amor. A direção do sono não muda absolutamente nada."
Saltei da cama, vesti-me e saí. A estrada molhada mostrou-me que a chuva veio mais cedo, durante a noite. E vim todo o caminho até ao café a perguntar-me porque durmo sempre tão bem. "Será que há alguma relação direta com a paz de espírito? E porque raio queres sempre saber a que horas despertas?"
Deixei o carro ronronar tranquilo enquanto me embalava o princípio de mais um dia luminoso de descobertas. Calei o pensamento um bocado. É óbvio que quem dorme assim não precisa de saber as horas do despertar: quando já se está desperto vai-se sempre a tempo de fazer com que cada dia conte e seja aproveitado ao máximo.

Ana Amorim Dias