(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

24.11.13

Pressão

Pressão

Entrei no balcão debaixo de fogo cruzado. Sem qualquer tipo de exagero, estavam uns trinta homens a pedir coisas ao mesmo tempo. Atropelavam-se, aos gritos, sem respeito uns pelos outros nem por quem os estava a servir. Pareciam acreditar que, caso não fossem imediatamente atendidos, as portas do inferno se abririam debaixo das suas pernas, tragando-os para todo o sempre.
"Hummmm, isto está mesmo como eu gosto!" - pensei, esfregando as mãos de contentamento.
- Vai depressa buscar mais leite e copos de "cortado". - Pedi a quem substituí, ao apoderar-me da máquina de café.
De costas para a multidão enlouquecida por falta de cafeína, e enquanto ouvia os sobrepostos pedidos, respirei fundo e comecei.
Não sei quanto tempo demorou a odisseia, mas passei-a com um sorriso trocista colado ao rosto. "Credo! Atropelam-se sem respeito e são todos amigos, o que seria se não fossem!" ; "Bem, se estivesse na selva a ser atacada por leões, a coisa era bem pior" ; "Sim, meu caro, vai chamando por mim até ser a tua vez, antes disso nada feito".
Silenciosa, sorridente e firme, servi "Cortos", "cortados" e "cafés con leche" até se calarem todos. Quando a loucura passou, cedi de novo o lugar. Não gosto de grandes pressões nos meus territórios, nem sobre quem me é querido. Costumo optar por ser eu própria a aguentar o embate dessas mesmas pressões: a verdade é que me divirto imenso a testar até onde as aguento... enquanto vou treinando um pouco mais a resistência.

Ana Amorim Dias

Muita massa

"Isto é muita massa para uma batedeira tão pequena..." - pensei. Mas já não havia nada a fazer.

Acordei com vontade de fazer bolo de chocolate. Procurei a receita e comecei.
"Quatro ovos? Humm...é pouco! Vou fazer com oito. Não! E se fizesse com doze?" Decidi que, já que ia fazer, que fosse em grande! E acabei por usar dezasseis ovos e quadruplicar a receita.
O problema surgiu quando as pás da batedeira se começaram a afogar na massa. Não me incomodam nada os meus excessos, mas creio que, daqui para a frente, terei que começar a prever as situações em que enfrento massa a mais.
Por agora resta-me esperar por voluntários que comam os cinco bolos...

Ana Amorim Dias

Sentidos

Sentidos

Quando os miúdos entraram no carro ainda me perguntaram porque é que eu me estava a rir daquela maneira. Disfarcei o caso e acabei por me escapar à resposta: não me estava a apetecer nada ser alvo das gargalhadas deles.
O que aconteceu foi simples. Mas muito estranho. Enquanto fazia a manobra de estacionamento, cheirou-me levemente a queimado e, para apurar o olfato, baixei instintivamente a música.
"És mesmo parva! Achas que é por estares em silêncio que vais cheirar melhor?!? Doida...", brinquei comigo mesma.
Mas, claro, fiquei a pensar naquele instinto que, nesse momento, me pareceu tão descabido. No fundo, embora todos eles se completem, existe por vezes uma certa lógica em bloquear uns sentidos para intensificar os outros. Se fechar os olhos exponencia o sentir de uma carícia ou a perceção de certos sons, porque é que bloquear a audição não há-de melhorar o olfato? Além do mais, no que toca aos sentidos, o instinto costuma ser um credível e ancestral mestre.
Mas o que de mais interessante entendi foi que, ao bloquear o negativo sentido crítico, ativamos outros melhores, como os de aprendizagem e novos encantamentos.

Ana Amorim Dias

Discrepâncias

Discrepâncias

- Boa tarde. Estou a falar com algum familiar do Tomás Dias Rodrigues?-
Fiquei logo aflita com o início daquele telefonema. O que se teria passado?
- Sim, está a falar com a mãe dele.-
- Estou a ligar dos serviços centrais do registo civil. O processo de renovação do cartão de cidadão do seu filho veio para tratamento manual devido a uma discrepância detetada...-
Percebi logo o que estava a acontecer.
- Confirme-me por favor, minha senhora: ele tem doze anos e...-
- E mede um metro e oitenta e dois, sim! Posso-lhe confirmar isso agora, no mês que vem é que talvez já não possa!-

Numa loja, no outro dia:
- Desculpe, a senhora é portuguesa?- perguntou a senhora que me estava a atender.-
- Sim, claro. Porquê?-
- Como é tão alta...Eu, se pudesse, gostava de ser assim!-
- Infelizmente não é coisa que esteja nas nossas mãos, como o ser-se mais magro ou mais gordo...- respondi, para a consolar.

Compreendo tudo o que o Tomás sente porque, com a idade dele, também eu era demasiado alta e tinha que enfrentar constantemente as exclamações de admiração.
Ser alto é fantástico. Não é que dê um sentimento de superioridade, mas acredito que traz uma sensação de segurança e confiança que o oposto talvez não traga. Também tem inconvenientes porque há momentos em que, para nos integrarmos nos grupos, nos curvamos um bocado, já para não falar dos espaços apertados nos quais a única vontade que temos é a de enrolar as pernas à volta do pescoço e deixá-las lá penduradas.

Mas o que retirei deste episódio foi uma certa sensação de impotência perante a discrepância entre o ritmo de desenvolvimento das crias e a nossa preparação para tal facto: num momento estão de chupeta na boca, com o ar mais fofinho do mundo e, depois de piscarmos os olhos, metem-nos debaixo do braço e ensinam-nos coisas a falar já com voz grossa. Num momento somos o centro das suas vidas e, no seguinte, "apenas" o porto de abrigo onde se abastecem de tudo.
Se fico incomodada com estas discrepâncias? Nem por um segundo! O seu imparável desenvolvimento é como a altura: não está nas nossas mãos controlar. Mas a maneira como encaramos o facto e os acompanhamos durante todo o processo, é como ser-se mais magro ou mais gordo: depende da nossa vontade!

Ana Amorim Dias

De mestres a discípulos

De mestres a discípulos

- Ensinei-te bem!- exclamou ele perante uma atitude minha.
Sorri embevecida com o elogio. Creio que, nessa altura, não sabia ainda que a gratidão orgulhosa do discípulo pode ficar muito aquém do sentimento de realização do mestre.

É fácil perceber que todos podemos ser discípulos durante toda a nossa existência, desde que prestemos atenção. O que talvez muitos não se apercebam é que também somos mestres... do princípio ao fim da vida. Um recém-nascido, por exemplo, é um inconsciente mestre de amor; ensina, sem saber, à mãe, milhões de lições por segundo.

A cada momento somos (ou temos a obrigação de ser) mestres em relação a uns e discípulos de outros. É esta a mais natural lei do crescimento humano.

Na fotografia que acompanha esta crónica eu estava a olhar para o meu pai.Talvez em mais um momento de consciente aprendizagem. Ou então, como tantas vezes acontecia, estava eu a ser sua mestre. O que me importa reter da curta reflexão que esta lembrança me trouxe, é que todos nascemos mestres e que, na caminhada de construção da nossa mestria, nunca nos devemos esquecer de ser, também, discípulos.

Ana Amorim Dias

O meu rolo na parede

O meu rolo na parede

Se a crónica de hoje tiver alguma "moral da história", começarei a crer que não há impossíveis. Então vamos lá!

Eram quase duas da tarde quando dei por mim a inventar letras de músicas pimba e a proferir piropos às paredes. Como é que cheguei a isto?
...Tudo começou quatro horas antes...

Num minuto pensava que trabalharia toda a manhã à secretária e, no seguinte, vi-me com uma trincha na mão a pintar acabamentos numa divisão da casa. Segui um impulso estranho e avancei. Mas depressa constatei que havia muito mais para pintar. Troquei de roupa, fui buscar o escadote e pensei: "Vou pintar isto tudo!"
É tramado pensar isto. É muito cansativo medir forças com paredes de reboco irregular e com a nossa própria teimosia. Mas aproveitei o tempo para refletir. Sem pausas. Sem medos. Era só eu, a tinta e as paredes (ok,ok, e o rolo, os pincéis, o escadote, o pano para limpar as borradas, blábláblá).
Um dos debates mais interessantes que tive comigo foi o do perfecionismo versus o "bora lá despachar". Não é caso para ter carteira profissional, mas pinto paredes desde miúda e posso dizer que sei o que faço. Só que ontem, contra os meus próprios instintos de demorado esmero, obriguei-me a um ritmo célere e, simultaneamente, a um trabalho que não envergonhasse o melhor pintor de construção civil do mundo (também me perguntei quem será ele e o porquê de não aparecer em entrevistas nos jornais e na tv).
À medida que as paredes iam mudando de cor, fui constatando que a coisa até nem estava a correr assim tão mal, apesar de ter ficado com tinta desde a sola das botas até à sobrancelha direita (literalmente).
Depressa e bem não há quem? Qual quê! Com um empenho concentrado e motivado, tudo pode acontecer!
Mas vi que estava a abusar de mim mesma quando, já quase no fim, comecei a "descompensar" e a cantar alto músicas pimba inventadas no momento sobre a vida dos pintores (Óh Sr. Quim, se precisar de letras novas é só dizer!). Alternava as ditas cantigas com expressões como: "Anda cá parede, deixa-me esfregar-te o meu rolo"... Perante o abanar de cabeças, condescendentes, de outros trabalhadores que esporadicamente passavam por mim, entendi que estava na hora de pousar o meu rolo e ir almoçar.
Vida de pintor não é fácil, mas isto é como tudo: há que passar por elas para saber dar valor.

Ana Amorim Dias

Uma vida mais feliz

Uma vida mais feliz

No outro dia disse, em público, que, se me perguntassem há uns anos o que é que eu queria da vida, teria que pensar bastante e, provavelmente, daria uma extensa e pouco clara resposta. Agora é simples: quero passar o máximo de tempo possível a fazer as coisas que mais gosto.
Fazer-se o que se gosta dá uma trabalheira incrível. Desde logo porque, antes de tudo, é necessário perceber o que é que nos faz brilhar. Depois porque, a maior parte das vezes, os inícios nunca são fáceis e compensadores.
Para viver (também) é preciso dinheiro. E caçá-lo implica tempo: esse tempo que todos deveríamos usar a fazer-produzir o que mais prazer nos dá.

Sinto uma enorme alegria sempre que me deparo com quem exerce o seu ofício com prazer: é como se me estivesse a ser provado que os eixos da humanidade se estão a alinhar bem. Há, em quem ama aquilo que faz, uma certa dose de brilhantismo que supera as competências e o profissionalismo. Há, no trabalho dessas pessoas, uma dose de instinto amoroso que inspira e toca os demais.
Creio que quem está neste encantador enquadramento tem também uma responsabilidade acrescida: a de demonstrar a quem anda à deriva que é possível viver assim, maravilhado com cada novo dia de trabalho, mas que não foi o acaso que se encarregou de tudo... É que passar o máximo de tempo possível a fazer o que nos faz feliz, implica esforço, noção de prioridades, perseverança e uma força de vontade que, às vezes, vai para além do compreensível.
Para chegarmos a passar a vida assim é preciso fazer concessões, saber trabalhar para "aquecer" e saber (às vezes durante demasiado tempo) viver com muito pouco dinheiro. Mas, por outro lado, também não há dinheiro que pague uma vida mais feliz.

Ana Amorim Dias


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