(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

22.1.14

"Selvagicalidade"

"Selvagicalidade"

Acabei de reparar que os dias em que escolho guiar até um café mais distante, são os mesmos em que a crónica mais me entusiasma e desafia. Dou um tempo extra aos preliminares do deleite criativo, protelando o pináculo do prazer para que seja ainda mais intenso, numa lógica que, por certo, todos entenderão.

Foi ontem à noite que li esta bela questão: com que escritor escolheria jantar, se pudesse? Quem me lê sempre sabe a resposta. Ernest Miller Hemingway regressaria do grande desconhecido para partilharmos uma conversa sublime ao sabor de um enorme peixe grelhado, bom vinho e uns cubanos.
Sou fascinada por ele desde que me lembro. Mais por ele do que pelas obras, confesso. Mas, na minha visão dos factos, a obra de qualquer escritor vale tanto pela sua qualidade como pela personalidade apaixonante do seu criador. Os livros de escritores omissos, por mais excelentes que sejam, parecem-me algo apátridas e deixam-me um travo de orfandade que lhes retira valor. Livro que é livro, daqueles que marcam mesmo, precisa de trazer em si entranhado toda a intensidade e personalidade de autores só por si apaixonantes, caso contrário é só mais um.

- Gosto de pessoas com "selvagicalidade"- disse eu.
- Desculpa? Essa palavra existe?
- Não! Mas eu sou escritora, posso inventar palavras, se me apetecer!
Sempre admirei os escritores de uma forma tão absoluta que, ao constatar que era uma, a minha vida se tornou num constante sonho feliz. Nós, os escritores, podemos inventar e inventar-nos; podemos exagerar, subverter, criar irreais realidades. Nós, os escritores, somos de todos irmãos, pais, filhos, amigos e amantes. Nós, os escritores, somos magos capazes de transformar pensamentos, atitudes e vidas... tudo só com palavras e, claro, com a intensidade pessoal com que as fazemos bailar.

Passei muitos anos desiludida com o meu herói literário. Como é que um homem tão intenso e apaixonante se mata? Porque é que desistiu? Como podia eu explicar tão absurdo paradoxo? A resposta é óbvia, na verdade. Mas só ao assumir-me na plena intensidade de emocionada (e emocionante?) escritora, logrei compreender a equação. Quando se viu encurralado numa existência física e mental que não podia controlar com a "selvagicalidade" que lhe era natural, o Ernest fez a única coisa que podia ter feito para se respeitar a si mesmo. Não foi um paradoxo, foi uma inevitabilidade.
Mas eu só desejava jantar com ele. Nem que fosse uma torrada.

Ana Amorim Dias

A perfect gift

A perfect gift

A inspiração oferece-se. E é uma prenda perfeita. Alguém que nos dá um bom exemplo ou faz aumentar em nós a energia para seguir: que prenda mais perfeita!
A felicidade oferece-se. Um sorriso franco, encorajador. Um olhar que nos diz "Estou aqui! Sigo ao teu lado para te apoiares em mim se quiseres". Que grandiosa oferenda!
A coragem oferece-se. "Se eu consegui, tu também consegues, podes estar certo/a". Que poderosa oferta!
A sabedoria oferece-se. Palavras. Exemplos. Vidas. De quantos lados diferentes vem esta perfeita prenda!?
O bem estar oferece-se. A nós mesmos: "Hoje não me dói nada, consigo ver, ouvir, cheirar, saborear; consigo mexer-me e pensar e sentir." Que colossal oferta!

Deram-nos a fitinha vermelha durante o jantar. Uma para cada um. Todos a colocámos, ficando a pertencer a uma espécie de irmandade capaz de entender o grandioso valor (e sabor?) das prendas perfeitas.
Mais tarde, ao serão, ofereceram-me uma companheira para a fitinha vermelha: a pulseira com o trevo das quatro folhas. Não consegui tirá-las mais!

A sorte oferece-se, tal como o amor aos outros, que nasce sem explicações: a sorte de conseguir amar os outros como eles são, percebendo que todos os dias, se estivermos atentos e soubermos receber, temos tudo (mas mesmo tudo) a ganhar.

Ana Amorim Dias

Segunda-feira de sonho

Segunda-feira de sonho

Abri os olhos. Espreguicei-me. Estiquei o braço para alcançar o IPad e vagueei uns minutos por aqui.
"Segunda-feira mais deprimente? Hoje? Mas porquê? O dia estará cinzento? Mas é normal, é inverno. Ah, talvez seja por estarmos na altura do ano mais distante do verão..."
Quem determina, afinal, o sentimento dos dias? Por que critérios se regem? Seremos eternamente prisioneiros dos desígnios da carneirada? Ou temos a sempre presente capacidade de escolha?

Um banho. "Acabou-se-me o amaciador para o cabelo. Vai ficar uma coisa gira. Isto é a maldição de segunda-feira..." Ri-me com sarcasmo.
Vesti-me. E estava a fazer a mala quando o despertador tocou para não me deixar atrasar para a entrevista das dez. "Podia ter dormido mais um pouco, mas já estava a perder algo."
Desci para o farto pequeno almoço dos bons hotéis. Uma panqueca no prato. "Mel ou açúcar?" E de repente lembrei-me que seria estúpido escolher vinagre, por exemplo. "Porque é que as pessoas escolhem começar a semana com sentimentos de vinagre se podem escolher mel ou açúcar?"

"Tenho que me despachar para entrevista com o Eric e com o Hugo que, se calhar, já me esperam lá em baixo." Daqui a pouco cada um irá para seu lado. O biografado, para o Sul de França; a biógrafa para o Sul de Portugal. Regresso ao ninho dos meus outros três heróis. Regresso à frenética e imparável odisseia diária de matriarca que não descansa um segundo porque os sonhos implicam um trabalho sem tréguas. E as segundas feiras são sempre uma altura ideal para recomeçar com a energia mais colossal que conseguirmos arranjar.

Comi a panqueca com mel. Jamais escolheria vinagre. "Segunda-feira mais depressiva?" Ri-me de novo. "Só para quem a escolher assim. Para mim é só mais uma segunda-feira de sonho(s)."

Ana Amorim Dias

Tripas enfarinhadas

Tripas enfarinhadas

Eram quase cinco da manhã e eu caminhava sozinha. Mãos bem quentes nos bolsos e suave sorriso no rosto. À minha volta as vozes alegres dos noctívagos soavam em gargalhadas indiscretas e canções mal entoadas. A energia vibrante desta cidade fria, cheia de calorosas pessoas, quase me fez voltar para trás e ir de novo ter com as minhas anfitriãs. Mas não; continuei a caminhar sozinha até ao meu quarto de Hotel, recordando os pontos altos desta noitada no Porto: as pessoas.

- Come, a sério!
Hesitei. "Tripas? Ai caneco!!"
- É muito bom, vais gostar!
Decidida, ataquei um bocado rechonchudo que me encheu a boca toda. "Se tem que ser que seja em grande." Mastiguei e mastiguei, senti o sabor a invadi-me, e continuei a mastigar.
- Bolas, meninas, isto parece pastilha elástica de tripa! - reclamei, dando por finda a experiência.
- É porque tiraste um bocado dos grandes. Experimenta um mais pequeno. - Aconselhou a Marina.
- Sim! Temos que dar uma segunda oportunidade a tudo!- ajudou a Paulina.
Voltei a comer e converti-me, num instante, numa apreciadora convicta.

"Quantas coisas boas perdemos, ao longo da vida, por causa das primeiras impressões falseadas?" pensei enquanto caminhava na alegre e fria noite. "Quantas convicções de 'não gosto', 'não sei', 'tenho medo' e 'não consigo' deixamos que se criem em nós por não nos darmos ao trabalho de experimentar de novo!?"
A miúda gira meteu-se comigo, arrancando-me às divagações.
- Canta connosco!
- Hã?
- Só o refrão, vá lá!
Pior do que não dar a nós mesmos a segunda oportunidade é nem sequer dar a primeira. Cantei com eles até chegar ao hotel. E foi lindo!

Ana Amorim Dias

No nosso primeiro mundo

No nosso primeiro mundo

Lembrei-me de quando era mesmo bem pequenina. De quando, aos sábados de manhã, saltava para a grande cama dos meus pais e me sentava na barriga dele, a falar sem parar. Fiquei para sempre com a ideia de que me ouvia encantado. Não faço ideia do que dizia ou contava, mas creio que era o seu ar deliciado que colocava ainda mais alegria e convicção no meu discurso infantil.

Com os meus irmãos e a minha mãe, sempre foi a mesma coisa: chamavam-me às decisões; ouviam-me; valorizavam-me; apoiavam-me.

Hoje olho para mim, para o que faço e como o faço, e atribuo a todos eles grande parte dos créditos por esta confiança tranquila que me faz avançar sem quaisquer hesitações. Tenho eternamente presente a forma construtiva e atenta como me escutaram e valorizaram desde que me lembro de ser gente.
É por isso que sempre falei com os meus filhos não como crianças mas como pessoas fantásticas cujas opiniões e sugestões escuto sempre com uma deliciada atenção: porque não me posso esquecer que a maior confiança em nós mesmos se forja desde o início da vida, naquele que é o nosso primeiro mundo.

Ana Amorim Dias

Carga humana

Carga humana

Saiu com o caminhar determinado e inconfundível que já conheço tão bem. Eu esperava-o no aeroporto há meia hora. Pu-lo a par de todos os planos que nos esperam por estes dias e, como de costume, reafirmou que me entregava, de olhos fechados, a agenda.
Jantámos a falar dos assuntos de sempre. Projetos, criação e arte. Desejos, sonhos e metas.
Mas o que vira no terminal do aeroporto não me saía do pensamento: as pessoas a chegar, puxando as suas malas, e a reencontrarem felizes quem feliz os esperava.
"Caramba, como é importante a carga humana que as viaturas transportam. Como é importante cada pessoa em particular!..."
Lembrei-me da pergunta que me fazem sempre, quando me entrevistam a propósito do último livro: "Ana: quem é Eric lobo?". Tenho respondido de muitas maneiras diferentes, mas hoje direi que é alguém que entende o valor de cada pessoa; que é um homem que compreende e exulta o valor da carga humana. Porque não são os grandes feitos que fazem as grandes pessoas. A única coisa que faz com que sejamos realmente excecionais é a humanidade que somos capazes de usar em cada um desses feitos.

Bem, e agora deixem-me ir que temos encontro marcado na praça da alegria.

Ana Amorim Dias




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Filhos de chocadeira

Filhos de chocadeira (para não dizer de outra coisa)

Cada vez me convenço mais de que a maior parte dos governantes são filhos de chocadeira (para não dizer de outra coisa). Ou que, pelo menos, nisso se transformam depois de chegarem ao poder e engrenarem os seus comportamentos nos códigos de conduta da coroa dos intocáveis. Muitos deixam de ser humanos, creio. Deixam de se lembrar que são filhos e netos de alguém que envergonham, e que os seus ascendentes talvez tenham trabalhado muito para que eles pudessem chegar mais longe.
Quando os responsáveis pelos destinos dos países chegam aos lugares cimeiros e passam a deter o poder das grandes decisões, esquecem tudo o que proclamavam, deixam de acreditar em tudo o que acreditavam e, mais grave que tudo o resto, perdem a humanidade. Tudo se converte em cifras.
- É o único caminho, a única solução.- proclamam, como se falassem para uma massa descerebrada e disforme, esquecendo que foi das costas de quem agora roubam da mais ilegal e vil maneira que saiu a riqueza que, de tanto servir os mamões, não chegou para suportar a viabilidade económica da nossa maravilhosa nação!
Há sempre outros caminhos e outras soluções. Pelo menos para quem não se rende às mafiosas regras do poderio corrupto que desde há décadas governa este nobre povo.
Poderia continuar, mas mais não digo.

Ana Amorim Dias



As forcas de autoridade andam a identificar os idosos que vivem sozinhos


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Os gatos não fazem rotundas

Os gatos não fazem rotundas

Era um dos primeiros do dia deste ano. Eu estava numa rotunda... com um carro da polícia mesmo atrás de mim. "Ohhh shit! O que é que disseram nas notícias, mesmo? Ah, sim: fazem-se sempre por dentro e só se pode ir para a faixa de fora mesmo antes da nossa saída... Ou haverá hipótese de sair na seguinte?"
Nesse dia safei-me às garras da justiça. Nem de outra maneira podia ser pois costumo ser cumpridora. Mas fiquei a matutar sobre as rotundas pois sabia que seriam a analogia perfeita para algo.

Ontem estava a trabalhar e o gato sentou-se ao meu lado, com aquela carinha de mimo impossível de resistir. Parei o que estava a fazer e fiquei a olhar para ele: tentou roer-me os auriculares, espreguiçou-se, recebeu umas festinhas, bocejou, adormeceu, voltou a acordar, olhou para mim (juro que acho que ele me sorri) e tornou a recostar-se, com um ar cansado mas satisfeito.
- Tu nunca ficas de mau humor, pois não?- perguntei-lhe baixinho. E lembrei-me outra vez das rotundas.

Sempre gostei de rotundas e sempre hei-de gostar. Porque nos não a hipótese de escolha. Quem nunca deu nelas mais do que uma volta para perceber melhor a saída certa?
Mas o que pensei ontem, ao olhar para o meu gato que nunca se irrita, foi que as pessoas têm o hábito de ficar presas nas "rotundas do mau humor" sem saber dar pisca, encostar à direita, e sair dali o mais depressa possível. Quando atitudes alheias nos deixam de mau humor, gostamos de ficar a cozê-lo em lume brando, sem perceber que que a culpa do nosso estado de espírito é única e exclusivamente nossa; sem perceber que é sobre nós que recai a escolha de não desperdiçar tantas horas às voltas nesse círculo interminável de uma irritação que não nos compete.

Os gatos não fazem rotundas: limitam-se a enroscar-se no sofá com a tranquilidade própria de seres muito sábios. E nós? Será que da próxima vez que alguém nos irritar, saberemos dar pisca e sair rapidamente da nossa rotunda de mau humor?

Ana Amorim Dias

Como um samurai

Como um samurai

Creio que já não é a primeira vez que narro este episódio, mas hoje preciso dele de novo.

O catraio devia ter uns seis anos e ia no carro com o irmão mais velho ao seu lado. Como tantas vezes, conseguiu (já não recordo de que maneira) fazer com que a minha paciência entrasse em curto circuito. Preparada para lhe dar uma lição memorável, encostei o carro na berma e saí pela minha porta, direita ao banco de trás. E foi então que ouvi: "Depressa, Tomás! Traaanca o caaaarroooo!!"
Fiquei do lado de fora, sem saber se havia de romper em gargalhadas ou deixar crescer ainda mais a minha já intensa fúria...

O novo ano trouxe-me pessoas a precisar de ajuda. Aparecem-me sem aviso, chegando à minha vida das mais inusitadas formas. Tento ajudar como posso, percebendo que é com as palavras que algum positivo efeito vou conseguindo causar.
- Já não consigo ler o futuro, Ana!-
- Ah tu eras vidente, é?-
- Não, mas conseguia ler o futuro e preparar-me para ele!-
- Deixa-te de merdas! Estás é com uma pena de ti que até mete nojo! Devias respeitar-te mais e saber ler, sim, as tuas capacidades para enfrentares a vida!
Sei que posso ser um pouco dura mas, às vezes, só assim é que fazemos estremecer os alicerces alheios, levando-os um pouco mais para o contra-ataque aos problemas.

Ou então são desgostos de amor:
- Já não sei viver mais com esta dor... Dói demais, Ana, eu não merecia.
- Ninguém merece sofrer, querida! E muito menos por amor! Concentra-te em ti, agora. Procura o amor próprio durante uns tempos e não o que vem de fora. Tenta esquecer e avança!

Passamos demasiado tempo a lamber feridas e a fugir de enfrentar os touros pelos cornos. Passamos demasiado tempo em auto comiserações patéticas que nos desrespeitam e enfraquecem, quando na verdade devíamos fazer como o meu filho mais novo: encontrar soluções instantâneas e guerrilheiras para a supremacia do nosso bem estar.

Naquele dia, há tanto tempo, o João safou-se de umas belas nalgadas por ter "desarmado" o "inimigo" com fortes gargalhadas. Mas o certo é que todos os dias são dias de desarmarmos a nossa pena de nós mesmos. Todos os dias são dias de esquecermos o que nos magoa e aprendermos a ler o futuro usando a lei da boa atracão a nosso inteiro favor. E, sim, todos os dias são dias de investirmos contra os problemas, como um samurai que se "vai a eles" com a atitude vencedora que os desfará em pó... ou gargalhadas.

Ana Amorim Dias

De filtros limpos

De filtros limpos

- Mas que raio..
Olhei para a máquina com desagrado. A loiça estava muito mal lavada. O que se estaria a passar?
Olhei lá para dentro, abri os compartimentos e dei com um filtro cheio de porcaria.
- Humm...
Tirei-o, limpei-o e votei a pôr a máquina a lavar.
Mais tarde verifiquei que o assunto estava resolvido: de filtros limpos a "criatura" já funcionava bem!

Fiquei com a ideia de que muitos problemas deixam de existir se andarmos de filtros limpos. As atitudes alheias que nos desagradam e encaramos como um ataque pessoal, por exemplo, ficam absolutamente desvalorizadas quando as recebemos de filtros limpos. Ou seja, ao termos a capacidade de nos elevar, entendendo que aquela certa frase ou atitude é do outro e não nossa, percebemos que o problema não é nosso e que não nos devemos desgastar com ele. Ao termos a noção de que quando coisas más nos acontecem isso não é a vida a conspirar contra nós (e sim apenas algo menos bom que por vezes acontece) conseguimos continuar ligados à nossa energia essencial e seguir com a nossa vidinha, construindo o que ficou destruindo ou, simplesmente, seguindo outro caminho.
Ter os filtros limpos equivale a encarar a vida com otimismo e não permitir que as coisas menos boas afetem o que sentimos, o que queremos e a forma como agimos. Ter os filtros limpos é aceitarmos-nos e mantermo-nos na nossa trilha, sem deixar que as pedras encontradas no caminho nos façam tropeçar e cair; é continuar a acreditar em nós mesmos e em todo o nosso valor.

É por isso que ninguém me tira da ideia que, com os filtros desta maneira limpos, a "máquina" que todos somos cumprirá a sua missão.

Ana Amorim Dias

Saber a letra de cor

Saber a letra de cor

Eu abanava-me toda, enquanto ia fazendo o jantar. Já não sei qual era a música que a aparelhagem tocava, mas eu cantava com a convicção de quem se crê em pleno palco.
- Oh mãe, se já sabes a letra de cor, para que é que estás a ouvir isso?
Pimba, o estupor do miúdo pequeno tem que me baralhar sempre as ideias. Como não me saiu resposta pronta, reservei a frase cá dentro, no cantinho cerebral dos temas por explorar.

Hoje regressei à consciência com a sensação de ter passado a noite inteira a sonhar. Não consegui lembrar-me dos sonhos mas não me importei. Sei que foram bons. Apeteceu-me um banho no mar: há já quase dois meses que não me entrego ao seu chamamento, que eternamente em mim mora. "Vinte e seis de Janeiro..." pensei, "no ano passado, o primeiro banho foi a vinte e seis de Janeiro". Ponderei fazê-lo hoje. Cá no sul não há vento e o sol brilha. "Nááh... Fica para outro dia, para quando não aguentar mais as saudades!"

Há chamamentos interiores que moram eternamente em nós, da mesma forma que há sonhos que sempre nos acompanham. E então, ainda deitada na cama, lembrei-me do comentário que o João fez ao ver-me ouvir uma música que eu já sabia de cor. Há sensações que conhecemos de cor, mas a que nos entregamos sempre como se da primeira vez se tratasse. "Em breve, mar, em breve mergulharei em ti e até talvez leve a prancha!"

Ana Amorim Dias

A coisa mais importante

Talvez a coisa mais importante que poderás ler:

De cada vez que consigo fazer entender os factos a uma nova pessoa, sinto-me vitoriosa.
Sei que somos sete bilhões neste planeta, mas cada um conta para lá do imaginável! E, de facto, a alegria de iluminar novas almas é algo que não se pode comparar a mais nada. Sabermos que fomos (ou estamos a ser) responsáveis pela mudança energética, emocional e comportamental de alguém, dá-nos uma nova dimensão à vida.

Grande parte da humanidade faz depender a sua alegria de fatores externos: ou daquilo que se tem, ou da atenção e amor que lhes é entregue por outros. Os relacionamentos humanos são um dos maiores responsáveis pela felicidade com que se vive e, de entre eles, os mais determinantes são, claro está, os amorosos.
Creio que ninguém discordará se eu disser que, para a grande maioria, a felicidade depende do "outro". Vive-se a incessante luta pela atenção, pelas manifestações de carinho e pelo amor, porque tudo isto faz a diferença entre o vazio absoluto e a mais completa alegria. É óbvio que precisamos de amor, de amizade, de relacionamentos humanos sólidos e estáveis e da sensação de pertença. Mas a que custo? Quantos milhões de relacionamentos patológicos existem? Quantos milhões de chantagens emocionais e de lutas pela supremacia relacional? Quantos milhões de pessoas conformadas em relacionamentos que consistem apenas na incessante guerra pela conquista da energia alheia?
Desconfio que há mesmo muitos milhões que desconhecem o verdadeiro amor; que não sabem em que consiste a troca abnegada de energias e afetos...por nunca a terem vivido. Será azar? Não! É algo tão simples quanto a compreensão de que somos nós e apenas nós os responsáveis pela nossa alegria. Ela vem de dentro. Sempre.
Vivemos na ilusão de que são os outros que nos fazem felizes.
Acordemos pois para a realidade: a escolha da frequência, da alegria ou da tristeza, compete-nos a nós! Só sobre nós recai essa responsabilidade, sobre mais ninguém. E é nessa altura, em que entendemos e integramos em nós este entendimento, que a vida começa a conspirar a nosso favor de todas as maneiras possíveis.

Nenhum comportamento pode alterar a minha consistência feliz, mas sem dúvida que encaminhar os outros para a energia correta me faz ainda mais plena!

Ana Amorim Dias

Sabedoria em cadeia

Sabedoria em cadeia

- Mas, Ana, que grande dedicatória! Não era preciso tanto...
Expliquei-lhe que sim, que é preciso. E justifiquei-lhe porquê.
- Quando um escritor entrega um livro seu, tem a obrigação de ser generoso nas palavras, só assim honra de facto a sua obra e quem a irá ler. Não o fazer seria desvirtuar as centenas de páginas seguintes.
Observei o seu ar encantado e prossegui.
- Quem me ensinou isto foi o Eric. E tenho sempre presentes todas as suas lições.

Foi ontem, ao almoço, que nos conhecemos. Falámos sem parar durante mais de duas horas e percebemos como vai nascer, íntegra e fiel, a versão inglesa de "Olho Ubíquo". Achei piada ao facto de, por várias vezes, a minha homónima Ana, a tradutora, se ter perdido a falar de mentores, professores e pessoas que a inspiraram. Sempre com um brilhozinho nos olhos.

À noite recebi uma mensagem muito extensa de alguém, que ainda não conheço, a explicar o quanto ler-me a ajuda. Terminou dizendo que quase lhe apetecia dormir agarradinha à dedicatória que lhe escrevi, pois não se cansa de a ler.

Não fiquei siderada nem com o ego inflamado. Sorri apenas, sentindo-me agradecida pela sabedoria que me tem sido entregue por todos os meus mentores. No fundo é tudo uma sequência em cadeia: eles aprenderam com alguém, escolheram-me como discípula (ou o inverso, talvez) e agora, enquanto vou exercendo cada um dos ensinamentos, percebo que é na sua realização que também me vou tornando mentora.

Ana Amorim Dias

Crescer e amar

Crescer e amar

Hoje isto vai ser um dois em um. Não porque os temas sejam indissociáveis, mas simplesmente porque são mais eficazes juntos.

- Sabes uma coisa?
- Diz.
- És convencida, manienta, mas gosto de ti!
Fartei-me de rir. E desmistifiquei-lhe a confusão.
- Nada disso! Isto é só uma coisa que também vais aprender a ter: um amor próprio à prova de bala! Gosto de mim como nunca ninguém poderá gostar. E é tão bom!

Ontem à noite, em conversa com uma outra amiga, o tema regressou. Sem que me recorde já a que propósito se dirigiu a conversa nessa direção, dei por mim a dissertar de novo sobre ele.
- O amor mais importante de todos vem de dentro e vai para dentro. Só quando sentimos este amor, a funcionar num circuito interno perfeito, é que estamos finalmente prontos para amar incondicionalmente os outros, com todo o perdão e toda a compreensão, mesmo os desconhecidos. E sabes o que é que é giro? É que quando se vive neste estado, tornamos-nos tão magnéticos que toda a gente nos ama, de uma ou outra maneira.

Desconfio que o amor de circuito interno está diretamente ligado ao crescimento. Quem ama assim quer aprender tudo, anda atento, está pronto para se construir até às últimas consequências porque tem a consciência da obrigação de dar o melhor de si. A si mesmo e aos outros.

Há quem seja convencido e maniento para passar ao mundo uma imagem de perfeição que talvez não corresponda à realidade. E há quem passe erroneamente a impressão de ser convencido e maniento, por se amar com uma auto-suficiência consciente das imperfeições e de tudo o que lhe falta crescer.
Assumo, humildemente, o risco de parecer algo que não sou. Mas alimentarei para sempre o circuito interno deste forte amor por mim, na certeza de que batalharei todos os dias por continuar a crescer e a tornar-me na pessoa que sonho vir a conseguir ser.

E tu?

Ana Amorim Dias

7.1.14

Prazo limite

Prazo limite

- E isto é para estar pronto quando?
- Hoje!
E pronto, ficam a olhar para mim com aquela expressão que não consegue esconder o "...Esta mulher é louca..."

Estou muito habituada ao olhar "esta mulher é louca". Não sei se consigo chegar a fazer com que essa ideia se desfaça, mas estou-me absolutamente "nas tintas". Sei que é uma consequência da gulodice apressada com que vivo. A sensação que muitas vezes tenho é que o meu filme passa numa velocidade mais rápida ou a de que, enquanto me desloco ao meu próprio ritmo, tudo à minha volta vai ocorrendo em câmera lenta. Ao decidir algo, não espero: penso um pouco (por vezes chegam a ser alguns longos minutos) e começo em seguida.
Acho que as decisões não podem esperar: a ação espera por nós e, acreditem, não é na inércia pensativa que a vida acontece. Aliás, a vida nem acontece, nós é que "acontecemos" a vida. Venham-me cá falar em tomar as rédeas do destino quando se age ao relantim, sem qualquer convicção ou, pior, não se agindo de todo.
Provavelmente muitas pessoas não metem mãos à obra por não se crerem capazes. Ou talvez não o façam porque vai implicar muito esforço ou muito tempo ou por pensarem que vão desistir antes de chegarem ao fim. E agora pergunto eu: qual é o gozo de viver sem desafios? Qual é a piada de não ter projetos hercúleos, prazos impossíveis, provas insuperáveis? Qual é o encanto de nos ficarmos pelo pensamento, sem a adrenalina da pressão que colocamos a nós mesmos só pelo gozo de nos surpreendermos se acaso formos capazes?

Continuarei a afirmar aos outros que o fim do prazo é hoje, mesmo quando é impossível. Talvez assim percebam, pelo menos, que devem impor a si próprios que o prazo para começar deve ser agora!
Na parte de ação que me toca, não desistirei de querer tudo já, e depressa, e bem. Quanto mais não seja pelo doce sabor de ser olhada com a costumeira expressão do "Esta mulher é louca!"

Ana Amorim Dias

Instinto

Instinto

Enquanto tomava o pequeno almoço e ouvia as notícias relativas ao funeral do "pantera negra", recordei as histórias da sua genialidade desportiva e do respeito que tinha ao próximo, que o chegava a fazer tratar por "senhor" o capitão de equipa. "Instinto...tudo se resume ao instinto..."

Tenho que confessar a mim mesma que a escolhi desde o primeiro momento, desde as primeiras palavras que trocámos. Manda a lógica que quando se contrata alguém, para o que quer que seja, se comparem currículos, orçamentos e provas. Manda a razão que se somem as "classificações" e nos decidamos pela média mais alta de todos os itens. Mas creio que, em mim, mandará sempre o instinto; aquele que me diz, sem margem para dúvidas: "suspende as buscas, a "tua" pessoa está aqui". Porque para um trabalho resultar perfeito, mais do que aptidões e provas dadas, o que conta é a união enquanto equipa; é a relação de confiança e a empatia perfeita.
Seja para eleger a tradutora, o biografado, a cozinheira ou chefe de sala, apercebo-me que acabo por só dar ouvidos ao instinto. Mais do que gostar de trabalhar com pessoas competentes e esforçadas, imponho-me formar as minhas equipas com pessoas em quem o que mais prezo é o caráter compatível ao meu para lá de quaisquer explicações.

Enquanto presto silenciosa homenagem a alguém que partiu e realmente as merece, pergunto-me se nem todas as pessoas têm a sorte de poder dar asas livres aos seus geniais instintos ou se, pelo contrário, não sabem simplesmente ouvi-los... e segui-los.

Ana Amorim Dias

Tu conheces-me tão bem!

Tu conheces-me tão bem!

Fartei-me de rir. Espreitei o facebook antes de dar à chave e lá estava o patife, ainda acordado: "Demoras? Despacha-te!" Na mensagem seguinte, um bonequito com ar zangado, mostrava-me os afiados dentes.
"Olha, olha... O pirralho, com doze anos, a querer mandar na mãe..."
"A caminho!", respondi-lhe, segura de que quando eu chegasse ele já estaria a dormir.

Pus a salada de couscous e camarão sobre a mesa.
- Mãe...- começou o Tomás.
Virei-me e, qual super heroína doméstica, entendi-lhe uma travessa de couscous simples, bem mais ao seu gosto.
- Tu conheces-me tão bem!!-
Há qualquer coisa de desarmante na maneira como o meu filho mais velho me diz constantemente esta frase. Este "tu conheces-me tão bem" implica mais que orgulho e cumplicidade. Este "tu conheces-me tão bem" é dito sempre com uma espontaneidade tão redundante e satisfeita que jamais me deixo de comover e emocionar.

Cheguei já tarde da jantarada de amigos. Fui ao seu quarto dar-lhe um beijo e ajeitar-lhe o cobertor. Já sabia que teria uma das pernas destapada. Todas as mães conhecem melhor que ninguém os seus filhos... o que não sei é se todos os filhos têm esta perfeita noção disso.

Ana Amorim Dias

Iogurte de baunilha

Iogurte de baunilha

Eram seis e meia da tarde e eu estava a guiar. Lembro-me de ter pensado que não tinha ainda tema para a crónica de hoje. Fiz a rotunda e pensei: "olha, aqui tens um bom tema para uma das cómicas".
Ao longo das horas seguintes, vários interessantes temas me foram chegando à ideia e eu, ora os apontava por escrito, ora os anotava na mente.
Cheguei à noite com cinco candidatos bastante interessantes. "Ui, vai haver guerra para decidir qual sai primeiro..."

Devia ser uma e tal quando abri o frigorífico. Algum dos devoradores implacáveis da casa tinha exterminado todos os aromáticos de morango. Agarrei outro qualquer (que devo ter comprado sem reparar porque não é, de todo, costume) e levei uma colherada à boca. E, num segundo mágico, enquanto o sabor a baunilha se me desfazia no palato, fundi-me nas páginas do "Olho Ubíquo". "Uau, que sensação mais estranha!" Quantas pessoas se sentirão transportadas para as páginas de um livro, ao sabor de um iogurte?

(...)- Pode ser de baunilha?-
- Desculpa?-
- Avisaste-me para ter iogurtes porque comes sempre um à noite, lembras-te? Pode ser de baunilha?-
- Claro. De baunilha é perfeito.-
Ficamos os dois à mesa, cada um entretido com o seu iogurte, a conversar sem palavras.(...)

Voltei ao iPad e ao musical "Notre Dame de Paris". Era talvez a décima quinta vez que estava a ouvir "Belle". Desde miúda que sou viciada em musicais, como é que desconhecia este? "Oh Lucifer, Oh laisse-moi rien q'une fois, glisser mes doigts dans les cheveux d'Esmeralda". Arrepio total.

A vida devia ser um musical. No mínimo assim de emocionante e tão sentida.
Continuei a saborear com a boca, com os ouvidos, com a alma. "Sim, a imortalidade deve ser isto..."

Ana Amorim Dias

Num qualquer mês de 1990

Num qualquer mês de 1990
Baixa de Faro

Ele parou quando a viu. Beijaram-se e ficaram a falar uns minutos, enquanto eu preferi afastar-me um pouco e esperar.
Regressou junto a mim.
- Então? Não vais perguntar quem era?
- Não.
Tínhamos começado a namorar há pouco tempo e eu tinha só quinze anos. Mas creio que já sabia muitas das coisas mais importantes que convém saber.

Hoje, olhando para trás, dou vais valor a esta pequena atitude, que me saiu por instinto, do que a muitos outras que me poderiam parecer bem mais impactantes.
Temo não ser entendida quando digo que as pessoas se "prendem" por dentro. Nunca por fora. Jamais por fora. Aliás, a autoconfiança implícita na atitude segura com que nos conduzimos, dá-nos uma aura que atrai.
Não fazer "filmes", não deixar que a imaginação leve a melhor, dá-nos um tipo de aura que não só é benéfica ao nosso bem estar interior como emana uma segurança que "prende" o nosso/a bem amado/a a nós (isso e muitas outras aptidões, claro está).

A minha relação com o ciúme é talvez demasiado radical e, seguramente, muito incompreendida. Se o ser humano foi abençoado com a capacidade de amar, creio que foi também amaldiçoado, desde o princípio dos tempos, com o horror do ciúme. Recuso-me a render-me a esse instinto primário sem lhe dar a mais dura luta. Sou um ser pensante e racional que sabe dever a si mesmo essa batalha. Se já senti ciúmes? Claro. Mas massacro-os sem piedade com a minha espada interior. Se já fui vítima de ciúmes? Claro. Mas nunca me rendi a pressões. Aliás, tão culpado é quem os tem como quem os admite. E saberá o universo quantas relações magníficas se perderam no flagelo.

Na verdade a equação é bem simples: se estamos dispostos a perder um amor potencialmente perfeito em nome de algo tão estúpido, talvez não o mereçamos. Se não estamos dispostos a perdoar um ou outro "deslize", quem sabe se não estamos a penhorar uma vida feliz?
Bem sei que cada um sabe de si e que este combate é titânico. Mas, na parte que me toca, estou determinada a levar até às últimas instâncias este combate que até nem me é assim tão difícil. Não me permito senti-los nem ser vítima deles por parte de ninguém. Quem quer estar na minha vida, seja de que maneira for, terá que ser suficientemente seguro/a para saber que só me prendem por dentro. Nunca, jamais, por fora.

Ana Amorim Dias

Quantas crónicas me faltam?

Quantas crónicas me faltam?

Olhei para a publicação no meu mural: "Merecia uma crónica da menina... Não acha?", sobre a artista que reencontrou um grande amor do passado. Respondi que já tinha escrito sobre eles. Duas vezes!
Um pouco mais tarde, uma encomenda de um leitor, por mensagem privada: "E o ciúme, devias escrever sobre o ciúme!"
Entretanto tinha tido duas "birras" de amigas: "Escreveste sobre aquela e a outra, e eu? Quando me dedicas uma crónica a mim?"
- Calma. Tenho crónicas para escrever todos os dias da minha vida! A tua vez chegará, tem paciência!-

Escreverei crónicas todos os dias até ao fim da vida? Quantas crónicas dará isso? Servirão para alguma coisa? Cansar-me-ei? Não escrevi já sobre tudo ao longo deste milhar que se está a completar?
Terei inspiração? Saberei surpreender? Continuarei a fazer sentido?
Ou será isto apenas uma teimosia da minha criatividade eternamente insatisfeita?

Constato que há sempre novos leitores a chegar. Novos leitores que não leram tudo o que para trás ficou escrito. Apercebo-me que o devir dos dias me ensina sempre algo e tem o condão de trazer novas abordagens aos temas e novos episódios para os enquadrar. Talvez assim quem me acompanha há anos não se chegue a aborrecer e queira continuar a ler a minha visão da vida.

Quantas crónicas me faltam? Não faço ideia. Talvez tantas quanto os dias que me sobram, que não poderei jamais saber quantos são exatamente. Mas de uma coisa estou certa: enquanto sentir que as palavras trazem algo de bom aos outros, sei que não me vai faltar a voz interior...aquela que todos os dias vos escreve com a mesma emoção invacilável!

Ana Amorim Dias

O mistério das cuecas azuis

O mistério das cuecas azuis

- Ana!-
- Hã?
- Fecha a boca!-
Eu sabia que a minha mãe tinha razão. Sentia-me absolutamente boquiaberta com o que estava a ouvir. Era normal que o queixo me tivesse caído até aos colares.
- Agora imagina o meu desespero quando a senhora da tal loja me disse: "Não há, e estão esgotadas em todo o centro comercial!"- continuou a minha cunhada a explicar. - Nesse momento percebi que tinha que avançar para os chineses, lá tinha que haver.-
No meio da minha embasbacada incredulidade eu ia-lhe perguntando:
- Tu estás a gozar comigo, não estás? Confessa lá!-
Amo loucamente esta minha cunhada, divertida e gozona, e estava à espera, a qualquer momento, que soltasse uma das suas gargalhadas triunfantes, revelando que me estava a pregar mais uma partida.
Mas não, desta vez era a sério.
- E se entrasses no novo ano sem umas cuecas novas azuis?-
- Impossível! Seria a primeira vez na minha vida!-
Ainda com todos sentados à mesa, continuei a perguntar-lhe os porquês, sem obter qualquer tipo de respostas consistentes.
Brindei a meia noite com as cuecas azuis a atormentarem-me o espírito e, um pouco mais tarde, quando fui ter com as minhas amigas à discoteca, percebi que estava perante uma epidemia!
- Vocês estão, portanto, a dizer-me, que cheguei aos 39 anos sem saber disto?!? Como?- sei que sou distraída mas isto superou todos os limites!

Na pista de dança, uma sensação estranha apoderou-se de mim! Estariam todas aquelas pessoas a cobrir as suas partes mais íntimas com a cor celestial de peças de roupa a estrear? Senti-me num filme de mutantes, a dançar no meio de uma invasão intergaláctica de cuecas azuis! Desejei ter visão raio X para verificar. Desejei começar a perguntar a todos: "Desculpe, está de cuecas azuis?"

- Fazes isso por mim?-
- Por ti? Claro, tudo!-
E lá fomos à casa de banho, tirar a fotografia às cuecas, para eu poder ilustrar a primeira crónica do ano.

Guiei sozinha até casa. Cinquenta quilómetros de um nevoeiro cerrado que só se desfez em Tavira. Sempre obcecada pela razão deste fenómeno: "Mas que raio de motivo pode justificar este tipo de epidemia? A única razão lógica é ter havido, há muitos anos, alguma loja com um grande stock encalhado, a lançar esta crença de que o ano só corre bem se nele se entrar de cuecas azuis a estrear!
Foi quando o nevoeiro se desfez lá fora, que o mistério se me revelou por completo, com a mesma nitidez da noite que se tornou cristalina. Não sei porque é que existe esta crença, nem me interessa, na verdade. O que eu gostava mesmo de saber é porque é que as pessoas não se questionam! Como se pode passar uma vida inteira a entrar em cada novo ano com cuecas azuis a estrear sem haver um fundamento lógico para tal? Não devemos agir sabendo porque o fazemos?
Estacionei o carro à porta, grata pelas minhas ligações neuronais que me permitem perguntar os porquês... E grata ao estranho mistério das cuecas azuis que me permitiu entender que a vida é muito mais interessante (e verdadeiramente repleta de significados) quando insistimos em descobrir as razões de tudo!

Ana Amorim Dias

Conexão humana

Conexão humana
2014

Considero sempre esta uma das mais importantes crónicas do ano. É como se, ao fazer o balanço do ciclo que se encerra e ao dar as boas vindas ao que está a começar, conseguisse produzir uma alquimia potente e de maravilhosos efeitos.

- Estou aí dentro de meia hora!- disse-lhe ao perceber que ele estava na minha terra.
Minutos mais tarde levantou-se, ao ver-me chegar, e abraçámo-nos, como sempre.
Enquanto ouvia as suas histórias, narradas num inglês caricato, e sentia o odor que se lhe desprendia do cachimbo, dei por mim a pensar: "O que é que faz nascer uma amizade assim entre uma escritora portuguesa e um motard alemão duas décadas mais velho? Esta é a quarta vez que nos vimos e temos conversas profundas, faladas com a alma toda numa empatia perfeita!"
- Estava com esperança que este café me inspirasse para a crónica de amanhã, Ralf! Diz lá: que desejos, sonhos, projetos, tens para o ano que vem? Ou então, se preferires, que balanço fazes deste?-
Ajeitou o tabaco no cachimbo e, com um sorriso sábio e enigmático, continuou a história que me estava a contar, parecendo ignorar por completo a minha complexa questão, mas sabendo muito bem que me estava a dar as respostas.

Gosto de sorrisos genuínos e de palavras francas ditas em conversas profundas. Gosto da espontaneidade de quem comenta sem pensar muito. Gosto dos gestos, das peculiaridades e dos paradoxos de cada pessoa que conheço. Gosto das reflexões e amizade com que me brindam todos os que estão ligados a mim, mesmo sem nos conhecermos. Gosto dos velhos amigos que me aceitam tão bem a chegada de todos os novos amigos, sabendo que nem o tempo nem o sentimento se esgotarão jamais para eles.
Gosto de pessoas. E sinto de facto que somos o que de mais belo existe.

No fundo eu já sabia que, hoje, faria um hino à conexão humana. Sabia que o balanço deste ano que termina seria resumido na mensagem: "triunfei de mil maneiras diferentes!" Foi um ano bom, generoso, porque estabeleci incontáveis novas conexões e aprofundei tantas outras. No fundo é isto que todos buscamos, alguns talvez sem saber: estar ligados uns aos outros; estabelecer laços fortes, emocionantes, produtivos, comoventes; conquistar empatias e conhecer-nos melhor no reflexo dos espelhos que os outros são para nós.
Talvez um ano assim, tão repleto de divinos momentos e saborosas conquistas, pudesse deixar saudades. Mas não. Para os trezentos e tal dias que estão mesmo a começar, prevejo novas conexões humanas e mais intensidade naquelas que já estabeleci. Prevejo a continuidade consistente e emocionada da missão que assumi com toda a minha energia: almejar tocar no mais nevrálgico centro de cada um de vós, inspirando-vos a que lutem por chegar a este total encantamento... com os outros e com vós mesmos.

Feliz 2014!

Ana Amorim Dias

Ainda há tempo

Ainda há tempo

Faltavam dez minutos para começar a apresentação do livro na biblioteca.
- Olha! Esqueci-me de pintar as unhas!-
O Eric andava entretido com o técnico, à volta de cabos, ligações e testes de som e imagem. Ignorou-me por completo, claro. Creio que isto é normal nos homens: nem mesmo os que têm uma enorme sensibilidade artística conseguem perceber a crucial importância de umas unhas bem pintadas.
Sei que nem a inteligência nem o dom da palavra me entram pelas unhas através do verniz mas, talvez por ser tão manualmente expressiva, adoro tê-las bem arranjadas sempre que falo em público.
- Dez minutos dá mais que tempo!- disse baixinho. Sentei-me no chão e comecei.
Aí sim, prendi a atenção do fotógrafo das tribos perdidas, que largou o que estava a fazer e se agarrou à Leica para capturar o momento, provavelmente pensando: "que espécie de género é este, capaz de se pôr a pintar unhas a uma hora destas?"

Anda-me a incomodar um bocado, a mania que as pessoas têm de começar a desejar "Bom Ano" ainda antes do Natal. Para mim só faz sentido fazê-lo no dia 31 de Dezembro! Porquê? Bem, porque as coisas só acabam no fim, não há porque desistir antes. Porque, quando eu publicar esta crónica, o ano de 2013 ainda vai ter cerca de 36 horas nas quais tudo pode acontecer; trinta e tal horas nas quais podemos fazer tantas coisas quantas a nossa vontade determinar.
Desejarei um bom ano amanhã, quando este estiver quase esgotado. Hoje a mensagem é outra: é a de que ainda há tempo para uma infinitude de coisas. Ainda temos tempo para fazer o balanço das conquistas e das oportunidades que, por receio, perdemos. Ainda há tempo para aquele telefonema, para aquele abraço, para aquele café que anda "pendurado" há meses. Ainda há tempo para nos encantarmos, para inspirarmos alguém, para demonstrarmos amor ou dizer o que não foi dito. Ainda há tempo para encher bem os pulmões e cantar a viva voz uma canção inventada, para dançar onde quisermos ou fazer figura de urso. Ainda há tempo para rir e arrancar gargalhadas, para pagar aquela conta, ou maravilhar alguém com uma inesperada atitude. Ainda há tempo para criar, para tomar decisões, para perguntar e responder; para ser sincero, para acreditar que tudo é mesmo possível.
Sim, trinta e tal horas são tempo mais do que suficiente para dar mais sentido à vida... e para pintar as unhas, claro, que entrar no novo ano de unhas mal "amanhadas", nem pensar!

Ana Amorim Dias

Nós, mulheres

Nós, mulheres


Ela sentou-se quase ao meu colo e abraçou-me com toda a força dos seus braços de menina. Não percebi as razões de todo aquele sincero carinho, mas também não me detive muito a buscá-las. Talvez fossem as duas piscadelas de olho que eu lhe dera, divertida, desde cá do fundo da mesa... Mas, claro, eternizei o ternurento momento.

Horas antes, em casa:
O João gritava como um louco.
"Mas o que é que este miúdo tem? Aos oito anos já não se dão guinchos destes!"
- Podes calar-te?-
- HHHIIIIIIIIIAAAAAAAA!- e dava saltos, também, o magano.
- João, a sério, já chega!-
- IIIIIIIIIIIÓÓÓÓÓÓÓÓÓHHHHHH!!!-
Não percebi o que é que me enfureceu mais, se a continuidade dos guinchos, se a sua desobediência trocista. E, de um segundo para o outro, abandonei a postura de educadora calma e transformei-me numa "Hulka"
descontrolada. O patife percebeu a mudança e correu escada acima. Mas já o fez demasiado tarde porque o apanhei lá em cima, capaz de lhe administrar um par de açoites à antiga.
E foi então que entendi tudo! No momento em que lhe agarrei no braço e lhe virei a cara para a minha, para nos olharmos nos olhos, percebi o que o move! O misto de terror e prazer que o seu olhar emanava, desfez a "Hulka" em que eu me transformara: "Então é isso, ele só me irrita, nestes dias monótonos, por falta de adrenalina!! Ele só precisa de emoção!" Como o compreendi!
- Dás mais um grito e vão-te saltar os dentes!- e vim-me embora, podendo apostar que tipo de sorriso lhe decorava o rosto depois da cinematográfica (e falsa, não fiquem com dúvidas) ameaça.

No dia seguinte:
- Mãe, mostra lá outra vez a fotografia da filha da tua amiga!-
Passei-lhe o telefone com a imagem.
- Como é que ela se chama?-
- Carlota.-
- Hum...- e deixou-se ficar algum tempo, muito calmo e pensativo, a olhar para a fotografia da sorridente Carlota. "Pois, meu menino, esta adrenalina já não te faz estar aos berros, pois não?" pensei enquanto o observava. Quantos olhares compostos de prazer e terror terá ele pela frente? Seja lá como for, de uma coisa estou certa: as mais poderosas potenciadoras das adrenalinas deles somos mesmo nós, as mulheres!

Ana Amorim Dias

Odisseia 4

ODISSEIA

- Ana?-
- O que foi agora?-
- Preciso que me ajudes aqui...-
- Com o quê?-
Pôs o pequeno vídeo a passar e mostrou-me.
- Quero que estas imagens tenham ainda mais força. Gostava que escrevesses algo. Tu sabes...-

"Sim, sei". E comecei.

Isto hoje é só para os fortes! Pela mensagem e pela forma; pela imagem e pela voz.
Creio que há ainda alguns ajustes a fazer no vídeo, facto pelo qual talvez saia "do ar" momentaneamente, para voltar mais tarde, ainda mais perfeito.

Acompanho o link do vídeo com o texto original, escrito em inglês, que prometo traduzir ainda esta tarde. Espero que gostem desta produção Eric Lobo/Chris Maverick/Ana Amorim Dias:

Odisseia

There are times in life
When we have to start our engines
And leave
Pack our things
As few as we can
And find our Road
Choose how we're going
And leave
To find what's out there
To meet who's out there
And realy discover ourselves
By connecting with others
Learn
Experiment
Observe
And dive again in the journey
Of bringing new worlds
To our personal universe
Surviving the crashes
Accepting to stop
Learning to wait
For the right time
To leave again
Whatever the Road
Regardless the dangers
Embracing the differences
Conquering smiles
And unexpected blessings
Allways keep mooving
To capture the stories
That can set us free
From all our own history
Sometimes even feeling
Too lost And alone
In a world full of differences
But even so understanding
The unexplainable
True meaning of life
Then leave once again
To find real freedom
To understand what being rich is about
To feel the power
Within
Leave for the quest
Of brotherhood
And redemption
Go for the epic:
The journey of life
Of humanity
Of strenght
Of courage
Allways keeping in mind
Every mark left by life
Go for the dream
Even not understanding
What the dream is about
Leaving
Because there's no other way
To return
See with other people's eyes
Touch with other people's hands
Finding the laws of connection
And leave again
Through the roads
Of resilience
And humility
Allowing ourselves
To feel amazed
By wonders And magic
Beyond our imagination
Life is a journey
And it doesn't matter
Where the Road will take us
The big challenge is not
Making it through
The real challenge is
What we learn on the way
How we love on the way
The ultimate meaning of every journey?
Just finding the way
Back into ourselves


Ana Amorim Dias

A gordura das pestanas

A gordura das pestanas

Estava no café com a minha mãe.
Ela agarrada ao "Olho Ubíquo", a rir alto de uma qualquer passagem, e eu a olhar para o iPad sem fazer a mínima ideia do tema da crónica de hoje.
Quis saber qual era a história que lhe estava a causar gargalhadas.
- Quando ele começou a comer caviar às colheradas, num aeroporto russo...- e depois ficou a olhar para mim e mudou de assunto:- Ah, olha, também estás a ficar cheia de brancos deste lado!- e continuou a ler, muito tranquilamente.
Fixei os olhos no iPad desligado, a ver nele o meu reflexo, sem confessar à minha mãe que o tema de hoje teimava em não me chegar.

Durante a ceia de Natal fartei-me (como é costume) de rir com o meu irmão. A ligação genética do nosso humor continua a ser insuperável. Até porque, quando o gozo até à exaustão, ele simplesmente aceita e junta-se a mim nas gargalhadas.
- ... E, claro, não se pode encostar o olho à lente!- ele estava a falar de uma lente super especial que comprara para o seu enorme telescópio.
- Mas não se pode encostar o olho à lente porquê, Miguel? - inquiri, enquanto me recordava que o meu professor de fotografia nunca me chamara a atenção para o facto.
- Para não sujar a lente com a gordura das pestanas!-
Não sei como é que o pedaço de rabanada que eu tinha na boca não me saltou disparado pelo nariz. Tive que me levantar da mesa porque as gargalhadas me roubaram o ar todo dos pulmões. Foi de tal ordem, o ataque, que nem me recordo se os outros também riram muito e se a minha cunhada fez o costumeiro ar de "vês o que eu aturo?"
- Ilda, Ilda! Temos que começar a comprar champô específico para pestanas gordurosas!- comentei quando a voz me voltou.
- Tu estás para aí a gozar mas não se pode pôr gordura nas lentes.- retorquiu, sem qualquer sombra de amuo perante o meu gozo cerrado.
Fiquei a pensar como é que ele, com todo o seu elevadíssimo QI, se sai com tiradas tão brilhantes.

Voltei ao meu reflexo no iPad desligado, em busca de mais cabelos brancos e da gordura nas minhas pestanas.
"Como vais escrever todos os dias, Ana? Como vais conseguir manter o teu prazer e o interesse de quem te lê?"
Acho que nunca tinha colocado assim os factos: como um desafio.
"Como vais fazer quando o tema te faltar e ficares assim, quase três minutos a olhar para o teu reflexo?"

E depois voltou-me a gargalhada das pestanas gordurosas, e a de ter mais cabelos brancos. Vai dar tudo ao mesmo: são só células mortas, não importa a sua cor nem oleosidade! O mais importante são as células vivas do nosso fantástico cérebro. O mais importante é saber continuar a beber no nosso manancial de felizes gargalhadas. O que realmente me interessa é que todos entendam que a idade não se prende com a cor branca dos cabelos: a nossa idade é simplesmente tão avançada quanto a nossa sabedoria e tão jovial quanto a nossa inocência.

Ana Amorim Dias