(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

20.1.12

No rio das flores



    Enquanto a minha mãe e o Vítor, que se conhecem desde os tempos da infância em África, se deleitam a recordar episódios irrepetíveis, eu e a Micá olhamos uma para a outra sem perceber patavina.
- E tu não gostavas de  bibinca? – Pergunta o Vítor à minha mãe.
- Não. Eu gostava mais dos paparis e do tépué que o meu mainato Luis me preparava.  – Responde-lhe ela.
- Bons tempos… Tu eras maningue xunguila!
- E lembras-te como eles diziam “ Juro xiquembo chanhaca”? – Tornou ela.
- Claro. Tinha um mufana satanhoco que estava sempre a dizer isso… - Nos olhos brilhava-lhe o encanto das memórias.
  Por esta altura do jantar de ontem, eu comecei a desconfiar que eles estavam  a falar, propositadamente, num código secreto ancestral, para que os demais comensais nada entendessem…
Deixei o episódio do jantar de ontem a marinar-me no espírito até que hoje, ao passar o dia na Fazenda União (onde,  segundo me foi dito, o Miguel Sousa Tavares escreveu parte do “Rio das Flores),  percebi um pouco melhor a sensação do colonialismo. À medida que  o almoço nos era servido, com todos os erres e efes, na casa senhorial da dita fazenda de café, eu comecei a imaginar-me como filha do barão, e a meditar sobre o que faria depois do almoço.
Comentei o meu delírio em voz alta e a minha mãe, prontamente, rompeu a rir, perante a perspetiva de eu ir bordar e ter lições de piano.
- Tu serias daquelas sobre quem se escrevem livros… andarias como louca a montar um cavalo inteiro pelo meio das plantações … - começou a divagar,  divertida.
- … e teria um romance tórrido com algum capataz enquanto morria de tédio nas tardes de chá com o nobre com quem o meu pai me tentaria fazer casar… - Completei-a eu.
  Mas, delírios à parte, a conclusão é só uma: quem nunca viveu na primeira pessoa as delícias do colonialismo, jamais entenderá a experiência! Seja o colonialismo de há dois séculos ou do próprio século vinte; seja o do Brasil, o de África ou de qualquer dos outros territórios ultramarinos, o certo é que a sensação de aventura e de se viver em condicionalismos absolutamente únicos, é algo pessoal e intransmissível; algo que, quem teve a sorte de viver pode relatar, mas jamais conseguirá explicar.  Descobri isso hoje, mesmo ao lado do Rio das Flores.
Tradução:    Bibinca- doce indiano de gema de ovo ;  Paparis – espécie de panqueca fina, feita à base de milho;  Tépué – Farinha de milho com molho e camarão seco;  Mainato – empregado doméstico; Maningue Xunguila – Muito bonito;  Juro xiquembo chanhaca – Juro pelo amor de Deus;  Mufana – moço de recados;  Satanhoco – filho da mãe.
Nota: não ofereço garantias de que a “tradução” esteja 100% correta nem que as palavras estejam bem escritas.
Ana Dias