(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

9.10.14

Ensino burocratizado

Ensino burocratizado

- Não gosto lá muito desses calções, João.
- Mas são bons para levar hoje, porque tenho "expressão físico-motora".
- Ah, tens ginástica?
- Não, mãe: expressão físico-motora!
É claro que não lhe disse, mas aquilo fez-me logo imaginar que estivessem a ensinar aos putos como fazer manguitos e espetar expressivamente o dedo do meio.

Porque é que não chamam as coisas pelos nomes? Não entendo! É para sermos mais finos? É para passar a ideia que temos um ensino muito eficaz? Porque é que não há nome nenhum composto por menos de três palavras? No meu tempo tínhamos "contínuas" em vez de auxiliares da ação educativa que, apesar do modesto epíteto, eram bem eram mais respeitadas. As fichas de avaliação diagnóstica chamavam-se testes e ai de nós se não estudássemos com afinco. Não tínhamos psicólogos de volta de nós a analisar o nosso enquadramento psico-socio-emocional: levavamos um par de reguadas e, com um bocadito de sorte, em casa, mais um aconchego no pêlo.
E os professores? Que felicidade não seria, não terem três resmas de papel para preencher e sete reuniões por mês, podendo apenas ensinar? Fiscalizações ao ensino? Que eu me lembre, se as havia, deviam ser muito suaves porque consigo visualizar perfeitamente a minha professora Alexandrino a mandar-lhes um daqueles pares de berros que nos punha a todos em sentido.
E não, nunca fiquei traumatizada. Nem pelos gritos nem pelas reguadas. Nem pelos nomes de uma só palavra nem pela ausência de rigorosos mapas a dividir os minutos dados ao ensino da matemática ou do português. O que me traumatiza, agora, é ver pessoas capazes e cheias de boa vontade, que não podem ensinar os nossos filhos e netos porque estão atolados num lodo burocrático que lhes rouba o tempo para fazer o que devem e querem: ensinar.
Da mesma forma, espero não vos traumatizar ao dizer que, por mim, os burocratas bem podiam ir todos passar uns meses a cavar, lá nas minas da Sibéria. Podia ser que voltassem com as ideias mais claras e parassem com a tendência, tão difícil de inverter, de regulamentarizar cada passo que se dá.
Pensando melhor: podiam lá ficar a cavar para todo o sempre!

Ana Amorim Dias
26/9/2014


Enviado do Writer


Enviada do meu iPad

Paixão pelo cérebro

Paixão pelo cérebro

Falei-lhe do livro que estava a ler e ela, no dia seguinte, foi comprá-lo.
Duas semanas depois, ao encontrá-la de novo, foi a sua vez de me falar de algo:
-"Lucy"! Tens de ver!

A primeira vez que fui ao cinema tinha seis anos. E fui sozinha. Entendi nesse dia que não precisamos de companhia para ver um filme: os nossos sentidos bastam, e o entendimento também. Lembro-me tão nitidamente da combustão sensorial que trazia, ao chegar a casa, que quase a consigo ainda sentir, tão pulsante e intensa como naquele momento.

- Lucy? Nunca ouvi falar desse filme.
- Pois, mas vais adorar: eu só me lembrava de ti e de todos os métodos de que me falas para exponenciarmos ao máximo as nossas capacidades cerebrais.
A Ângela é das pessoas mais inteligentes e cheias de personalidade que conheço. Perceber, por isso, a elevada consideração que tem pelo meu cérebro, deixa-me deveras encantada.

Enquanto, ontem, via o filme, lembrei-me de Salvadora, a personagem principal de um livro que me ficou no quinto capítulo por culpa do Eric Lobo. Tinha-me esquecido completamente dela e, à medida que ia vendo os efeitos da poderosa droga que se libertava dentro da Scarlett-Lucy, ia verificando a similitude comportamental entre ambas. Também na Salvadora eu quis ensaiar os efeitos de um crescente controle das potencialidades do cérebro. Recordei-me do quanto me estava a divertir ao fazê-lo: quase tanto como sempre me divirto ao tentar constantemente expandir os limites do meu próprio cérebro e consciência.

Regressei a casa com a mesma sensação de há trinta e quatro anos: pura combustão. E, no meio de todas as reflexões e novas sinopses, anuí comigo mesma quanto à derradeira mensagem de "Lucy": o propósito da existência, desde o primeiro homem, é a transmissão da célula... do conhecimento.

Guiei até casa em estado de absoluta paixão. Talvez estarmos apaixonados por ele seja o primeiro passo para começar a usar o cérebro com algum sopro de eficácia!

Ana Amorim Dias
24/9/2014

Piratas e piratas

Piratas e piratas

Não sei como funcionam os outros na escolha matinal da roupa a usar. Provavelmente há de tudo: quem use a do dia anterior; quem vista a que está mais à mão; quem se resigne ao que está lavado e passado; e até quem, num exercício de organização extrema, planeie os modelitos para a semana inteira.
Eu sou daquelas que acorda e pensa numa peça em particular, normalmente as botas. Depois tudo o resto gira em volta do estilo e cor das botas eleitas.

Hoje foram umas pretas. Com pouco salto e de cano alto, como gosto. As calças foram escolhidas em cinzento e depois dirigi-me ao armário das blusas pretas. Reparei que a do "Kiss me / I'm a pirate - with proud" não tinha sido usada o Verão inteiro. Pu-la com satisfação. Gosto de vestir o papel de pirata irreverente, capaz de fazer sonhar os leitores com estórias de mil aventuras. Gosto mesmo.
Cheia de energia, desci as escadas e, na companhia de um copo de leite gelado, pus-me a ver as notícias...

Dizem que os três milhões de processos judiciais não desapareceram. Mas ninguém sabe em que vórtice da desvirtuosa virtualidade do citius se encontram. Normal.
Dizem que não houve luvas no processo dos submarinos. Mas os alemães foram dentro. Cá? Nada. Normal.
Dizem que os condenados no "face oculta" afinal são inocentes. Tanto que o menino Sócrates nem sequer foi julgado. Os condenados vão apresentar recurso e, quase aposto, ter carta branca para continuar a piratear a nação. Normal.
Podia ficar aqui o dia todo, a semana inteira, até! Mas estes exemplos chegam para perceber que há piratas e piratas. Há os aventureiros, sãos e heróicos, que continuam a fazer voar o imaginário das gentes. E há os filibusteiros nojentos, que costumam escapar impunes por mais asneiras e pulhices que façam. É normal.

Ana Amorim Dias
23/9/2014

Encontrados

Encontrados

Passei a manhã do segundo dia de Outono num dos meus muitos escritórios. A manhã, inicialmente ensolarada, foi dando lugar a nuvens, vento e alguns relâmpagos. Tentei por duas vezes começar a escrever a crónica mas abortei de imediato, em ambas as ocasiões, por não estarem reunidos os dois sentimentos imprescindíveis: paixão pelo conteúdo e desejo pela forma. Não que os temas não fossem bons, simplesmente não os estava a sentir.
Decidi esperar pelo momento em que a luz se acendesse e avancei, manhã fora, a tratar de muitos assuntos pendentes enquanto as primeiras folhas se desprendiam das árvores, deixando-se levar pelo vento.

O almoço tardio fi-lo eu. Algo simples, só para mim. Sentei-me de novo no alpendre, mas tive que voltar à cozinha pelo guardanapo de pano. Foi então que reparei que eles estavam ali, na mesinha da entrada: os brincos que há tantas semanas perdera.

Acredito que a reação que escolhemos ter, perante tudo na vida, condiciona o subsequente desenrolar dos acontecimentos que nos atingem. O que é o mesmo que dizer que o nosso pensamento transforma a nossa realidade, uma vez que é o pensamento que comanda (deve comandar) as nossas reações.
Ora quando eu perco alguma coisa só há dois caminhos possíveis: ou apenas reparo que perdi o que perdi após o encontrar de novo; ou escolho a atitude despreocupada do "calma que logo aparece". Em casos graves digo adeus à coisa ou pessoa perdida e agradeço o tempo que as tive. Ponto final. O resultado? Tudo o que perco volta a mim. Tudo! Até quem perdi para a morte me regressa quando o chamo.

Acabo o meu café a pensar que agora sim, tenho a crónica do dia. Foi trazida por um par de brincos que tiveram saudades minhas.

Ana Amorim Dias
22/9/2014

We are family

We are family

- Precisas de alguma coisa?
- Não, está tudo.
- E o teu copo?...
- Cheio!

Nos casamentos, costumo passar pelos vários bares para verificar se falta alguma coisa. Faz parte da lista das verificações averiguar se os meus meninos estão alimentados e felizes. Não me passa pela ideia, por exemplo, que o Paulo esteja a cortar um presunto inteiro sem ter ao seu lado um copo de cerveja bem gelada.

- É a sua patroa?
Ainda oiço um convidado a fazer a pergunta depois de virar as costas.
- Sim.
- Que sorte!
Sorrio e concordo.

Às tantas da manhã, interrompo uma conversa.
- Desculpem, eu já volto, vou só ali animar as tropas.
E regresso para junto deles. Estamos todos cansados, é normal. Mas sei o que tenho a fazer: o que sempre faço. Trago energia. Incentivo. Trabalho um pouco ao seu lado. Faço loucuras. Digo disparates. E dançamos enquanto levantamos as mesas ou servimos bebidas. Depois bebemos um copo. Gozamos uns com os outros e rimos. Rimos muito. Lembramos velhas histórias e rimos de novo. O cansaço esvai-se na sensação de equipa, de pertença, de festa.

Quem tem sorte sou eu. Tenho umas equipas de sonho; umas tropas invencíveis que nunca se rendem ao cansaço nem à falta de paciência. Eles só se sabem render à felicidade de alguns momentos em que sentimos que, mais que equipa... "We are family"

Ana Amorim Dias
21/9/2014

Uniões

Uniões

Conheço bem a história do Reino Unido? Não.
Saberia explicar as vantagens e desvantagens da saída da Escócia? Pelo senso comum sim, fundamentadamente, não.
A decisão do referendo de ontem tem implicações diretas e palpáveis na minha vida? Não.
Então porque é que fiquei contente com a decisão dos escoceses? Simples: a união é sempre muito mais bela que a cisão.
Fiquei foi para aqui a pensar como se seria se pertencêssemos ao "Reino Ibérico Unido"... Soa-me bastante bem. E aqui sim, sei exatamente porquê!

Ana Amorim Dias
19/9/2014

Abalos e terramotos

Abalos e terramotos

Se me tiveste visto de fora, acho que teria tido medo. Sim. Definitivamente teria pensado: "chiça, com esta não me meto eu, não!" ou então "credo, há pessoas que não se sabem mesmo controlar..."
Passado o par de impropérios trovejantemente vociferados e o voo picado das mesas que fiz desaparecer do meu caminho, lembrei-me do "Zeca Diabo" (personagem de uma das novelas que via em miúda) e da forma como se regenerou da sua vida de malfeitor contando até dez sempre que se irritava, na esperança de que a vontade de espancar ou matar alguém lhe passasse. Segui-lhe o exemplo. Acalmei o ritmo cardíaco, estabilizei-me um pouco e procurei apreender se conseguia tirar algum ensinamento de tão explosiva atitude.
"Será que as pessoas devem tentar reagir sempre com toda a calma? Ou será produtivo que, de tempos a tempos, se passem um bocado?"

Normalmente aconselho os outros a nunca tomarem decisões ou reagirem de cabeça quente. Então porque é que eu hoje soltei a minha fúria e só não fiz tantos estragos como um tornado por me ter controlado depressa? Para onde foi a evolução da tempestuosa criatura que em mim habita e que tenho aprendido a domar?
Decidi ordenar os pensamentos na certeza de que, subsequentemente e como sempre acontece, também os sentimentos e a vida se ordenariam.
- Olha pá...-disse a mim mesma - isto é como a crosta terrestre: enquanto forem ocorrendo uns ligeiros abalos telúricos para estabilizar o planeta, não ocorrem os colossais terramotos...
Percebi que talvez não estivesse totalmente errada: enquanto nos formos passando só um bocadinho e apenas de vez em quando, não precisamos de nos passar de todo nem para sempre.

À cautela, e para prevenir algum outro sismo temperamental, vim arrefecer a temperatura ao único que tem mão em mim: o Mar!

Ana Amorim Dias
18/9/2014

Divinos genes

Divinos genes

O meu Deus adora rir às gargalhadas, gosta de Sol, mar e conversas profundas. O meu Deus adora arte e é fã incondicional do Ser Humano. O meu Deus não julga, não castra, não vinga. Ele entende, aceita e perdoa; limita-se a observar e esperar, não pelo dia do juízo final mas pela era em que tenhamos finalmente juízo.
O meu Deus não lança pragas colossais nem condena ninguém ao inferno; o meu Deus não é terrível nem temível, e sim tão tangível que quase se torna incredível.
O meu Deus está-se nas tintas para ser o único. Porque sabe que em cada Homem existe uma célula do seu todo; sabe que enquanto os Homens se injustiçarem e matarem em "seu nome", é como se Ele tivesse um cancro que precisa de ser curado para que sobrevivamos todos.
O meu Deus não se importa com o tamanho da minha fé, mas com o tamanho da minha humanidade e amor ao próximo.
O meu Deus não faz da sua existência a minha desresponsabilização, pelo contrário: sou tão mais responsável pelo meu melhoramento constante e pelo seguro futuro do mundo, quanto mais entendo que sou, como tu, portadora do gene divino.

Ana Amorim Dias
17/9/2914

As alterações perdidas

As alterações perdidas

Não percebo como é que perdi mais de duas horas de trabalho! Ou melhor, até entendo. Erro humano. Como quase sempre. Mais de duas horas a trabalhar cinco páginas. Nunca tal me tinha acontecido. Quis aproximar-me o mais possível da minha melhor forma, no que à estética literária diz respeito. Estava a senti-la entre os dedos quando as alterações se perderam. Num desespero pouco angustiado procurei, em vão, recuperar a noite de trabalho...

"QUATRO", o quarto livro que escrevi, esperou na gaveta quase dois anos. Foi paciente e merece por isso absorver, na sua forma, os reflexos da evolução da autora. Penso no assunto, no meu escritório, a ver a chuva cair: exercício bonito este, de comparar a escritora que fui com aquela em que me tornei. No conteúdo sei que não tocarei porque a acompanhante sádica, a assassina profissional, o ex-pugilista e o idoso repleto de segredos, nunca me enganaram: têm histórias fabulosas. Mas até cada frase soar exatamente como eu quero, muitos dias passarão.

Quanto às alterações perdidas... Bem, as de hoje serão melhores e tomarei mais cuidado!

Ana Amorim Dias
16/9/2014

Fertilidades

- Espera! Então não tiramos a selfie?
Olhei-o de lado, desconfiada. Teriam passado por ali alienígenas e trocado o Capitão por um sósia insuspeito?
- Pois é! A fotografia que tiramos sempre, no primeiro dia de aulas!- concordou o Tomás.
Saímos prontamente do carro. Todos menos o João, que ainda andava a recolher a mochila e a ajeitar o cabelo, ao mesmo tempo que saía de casa.

Dois. Três. Quatro disparos de iPhone e o Capitão sem reclamar nem revelar a impaciência com que sempre brinda estes momentos de captura. Estranho. Muito estranho.

A viagem até às escolas dos rapazes foi absolutamente festiva. O entusiasmo de uma nova manhã memorável foi brindado com gotas de chuva libertadoras do mais intenso e perfeito cheiro da terra.
Como num bom augúrio, imaginei que toda aquela alegria e odor a fertilidade se fundissem numa benção: a da fecundação das mentes com iluminação e cultura.

Quando, há pouco, os fui buscar, vi as suas expressões ainda felizes e recordei-lhes de novo que a preciosa oportunidade de ir à escola, que tantos milhões de meninos não têm, é um privilégio que deve ser celebrado com sede de aprender mais e mais. Quanto ao Capitão... Bem, o beijo apaixonado com que me recebeu, neste final de tarde, dissipou quaisquer dúvidas: pode ter solicitado a selfie mas nenhum alienígena o trocou por uma simples imitação.

Ana Amorim Dias
15/9/2014

Pequenos mestres

Pequenos mestres

Acordei com ele às turras pelo quarto. Aquilo não era desespero, apenas convicção. Entrou pela janela que fica aberta o verão todo e não estava a conseguir encontrar o seu caminho de volta à rua.
Era demasiado cedo quando o passarito me arrancou ao sono. Mas não me irritei nem indignei. Com toda a solenidade, após o capturar em imagem, abri-lhe outras janelas de oportunidade. Saiu num instante, o espertalhão. Voou feliz de regresso aos seus pares e ao seu mundo. E eu atirei-me em voo para a cama. Contudo já não dormi mais. Fiquei a divagar sobre o abrir de portas e janelas. E de novo chegou o amor: não se ama alguém prendendo-o junto a nós. Não se completa, não se potencia, não se faz feliz ninguém, fechando-lhe as portas e janelas. Só o inverso é real.

Não fosse a pequena ave e ainda estaria a dormir... Mas agradeci-lhe a sorrir aquele duplo despertar.

Ana Amorim Dias
14/9/2014

Cinco anos

Cinco anos

Três voltas na cama. Se calhar foram trinta. Quase três da manhã. Tateio na escuridão e ligo o IPad no "writer".
"Escrever é pôr a imaginação a fazer amor com as palavras. É tentar subverter o mito de que já tudo foi dito, descrito, narrado, inventado. É brincar aos Deuses, como se de facto o fôssemos."
Tinha que registar isto. Era-me forçoso gravar os pensamentos que a madrugada trouxera: os caminhos e estradas que escolhemos percorrer só fazem sentido se forem sentidos com a mesma verdade com que um escritor escolhe as palavras dos seus mais emblemáticos aforismos.
E então lembro-me do glorioso primeiro passo na estrada da minha mais plena existência. Lembro-me da secretária em que estava, do caderno no qual as primeiras linhas se desenharam. E sim, oh sim, consigo lembrar-me do prazer soberbo que de imediato senti.
Cumprem-se hoje cinco anos de escrita. Tem sido a melhor estrada. O mais belo caminho até vós. E a mais eficiente viagem de regresso... a mim.

Ana Amorim Dias
13/9/2014

Amor é achar lindo que

Amor é achar lindo que alguém pendure assim a toalha!

O grande fora para o treino de basquete. Já o pequeno, alegando estar completamente farto de praia, declinou o convite e preferiu ficar a ver televisão com o gato ao colo.
Lá fui um bocado à praia, na exclusiva companhia do capitão. A sequência foi a do costume: parar o carro bem perto, pousar a toalha na areia, tomar um prolongado banho, dar meia dúzia de beijos e gargalhadas e, depois de cinco minutos ao sol, confessar-me entediada e desafiá-lo para uma cerveja na esplanada. Até aqui nada de novo. O mote desta crónica só surgiu depois de chegarmos de novo à Quinta: quando fui pendurar a minha toalha ao estendal, vi a que ele acabara de "estender". Não me contive e fotografei a deliciosa imagem, enquanto sorria embevecida. O que me despertou o espanto não foi a incongruência entre as suas fabulosas capacidades de conseguir coisas incríveis e a forma tosca como pendurou a toalha. O que me deixou mesmo extasiada foi a quantidade de amor que senti por ele ao ver como estendera a toalha. Foi então que aprendi algo novo sobre esse sentimento tão estranho: amor é achar lindo que alguém pendure assim a toalha!

Ana Amorim Dias
12/9/2014

Sem desconto

Sem desconto

Decidi comprar o melhor. Não com a tonta desculpa do "eu mereço" e sim pela justificada necessidade de um melhor desempenho.
Tenho dois livros para rever muito bem antes de publicar; um outro que está histérico, aos saltos, para sair cá de dentro; e qualquer coisa como mil e duzentas crónicas e artigos para organizar. Se queria um computador capaz de enfrentar estoicamente, a meu lado, estas desejadas labutas, tinha que optar por algo realmente bom.

-Olá, boa tarde, quero um daqueles. E com a memória máxima, se faz favor.
O senhor esbugalhou ligeiramente o olhar. Não deve ser assim que as pessoas costumam efetuar compras destas.
-Ouvi dizer que tem desconto para estudantes...- eu fora prevenida com o cartão de cidadão do Tomás e uma declaração da sua matrícula.
-Só universitários.
-Ahhh...
-E professores. Os professores também têm um desconto. Dez por cento. Bem como os jornalistas.
-Pois... Mas já agora diga-me: para escritores? Há desconto?
Novo trejeito expressivo. Quase me passou pela ideia que ele estivesse a começar a temer-me.
-Não.

Para escritores não há desconto. Mas também não vale a pena porque as nossas horas de trabalho são sempre pagas a peso de ouro. Todas elas. Não precisamos de desconto, muito obrigada. Temos o fôlego suficiente para nos sustentarmos de outras formas, mantendo a energia e inspiração para escrever o resto do tempo. Não precisamos de desconto. A sério. Ganhamos tanto em prazer que tudo o resto é, numa palavra, irrelevante.

Ana Amorim Dias
11/9/2014

Mães

Mães

- Ahh, fizeste outra tatuagem, filha?
A naturalidade com que fez a pergunta deixou-me com vontade de rir.
- Não, mãe, esta é daquelas falsas que saem nas batatas fritas.
Voltei ao passado ao recordar a tarde em que, vinda de Buenos Aires, reencontrei a minha mãe no Brasil. Ao mostrar-lhe o sol que tatuara no meu pescoço, tive imenso trabalho a convencê-la de que não estava a gozar e que aquela era de facto uma tatuagem real.
Fiquei a olhar para a tartaruga no meu braço, e a pensar que além de todos os milhões de qualidades que as mães normalmente têm, existe uma outra à qual eu ainda nunca dera o devido valor: a capacidade de adaptação mais rápida e eficiente de todas as espécies.

Ana Amorim Dias
10/9/2014

A estrada não é só tua

A estrada não é só tua

Não cumpres os limites de velocidade? És uma besta! Aquilo não é para ti, pois não? És superior a isso, guias muito bem, tão bem que até fazes trezentos quilómetros numa hora e vinte. Grande campeão. Campeão da estupidez, entende, minha grande besta.
Fazes as rotundas inteirinhas por fora, eu sei, e até aproveitas para passar à frente de uns quantos tótós que não põem em causa a tua segurança como tu colocas a deles e a de qualquer um que se cruze no teu caminho. E ainda és capaz de buzinar e reclamar, estou errada?
E os traços contínuos? Fazes ideia da sua razão de existir? Se calhar até fazes mas, seja ele só um ou duplo, a ti não se aplica porque a estrada é só tua... Besta! Grande, grande besta!
Aproximas-te das passadeiras sem abrandar, por vezes até ultrapassas mesmo em cima delas. Menos ao pé da escola onde os teus filhos andam, porque aí, meu anormal, sobra-te um resto de consciência, não é?
E os SMS que mandas enquanto conduzes? Vais ao facebook ou a ler mails? Muito importante, hã? Até ao dia em que entendas que não, que devias ter prestado mais atenção à condução.
Já para não falar das tangentes que fazes aos ciclistas e aos impropérios irritados que lanças a quem vai de mota. Sim, sim, eu sei, és o rei da estrada e podes tudo porque tens um carro tão bom e guias tão divinalmente bem que a ti as leis não se aplicam!
És um assassino em potência, sabes? No fundo deves saber, mas a pressa e a ganância de ser o dono absoluto da estrada, impedem-te de ter juízo.
E um suicída, também. Mas isso dá-nos igual desde que te mates sozinho contra uma parede de betão.
A estrada não é só tua, pá. Tem calma. Pensa que podes espatifar o carro que, a menos que te tenha caído das nuvens, até te custa a pagar.
Pensa, minha besta, que um dia os teus excessos podem tirar a vida a alguém. Pode ser a tua mulher ou o teu marido; os teus filhos ou os teus pais; podem ser desconhecidos ou um cão abandonado. A consciência depois pesa, sabes? Eles vão acompanhar-te sempre, mortos ou só estropiados, vão viver no teu remorso a vida que lhes ceifaste.
A estrada não é só tua. E antes que algum outro condutor, por ti irritado, te redirecione o alinhamento dos dentes, ou antes que alguma desgraça pior aconteça, lembra-te, por favor, que cabemos todos em segurança na estrada que não é só tua.

A todos os que, como eu, pertencem ao grupo de "tótós" cumpridores das normas de segurança rodoviária, as minhas sinceras desculpas e votos de viagens seguras.

Ana Amorim Dias
9/9/2014

E cá vou eu

E cá vou eu

Desafiaram-me e fiquei a pensar no assunto. "Miami? Daytona? Porque não? Tinha mesmo que ir fazer uma viagem qualquer para me inspirar para o próximo livro... Ora ele pode muito bem começar por lá, na Main Street..."
Não precisei de meditar muito. Embora o ambiente selvagem e opulento em silicone, álcool e loucura, me pareça demasiado exagerado, não deixa de ser tentador mergulhar num universo humano tão curioso.
Não sei se vou em busca de memórias inolvidáveis ou de pessoas fantásticas. Nem sei sequer se vou para capturar a essência da liberdade motard ou tentar identificar, no meio da multidão ruidosa, o "ultimate biker". Sei que vou. E sei que, como de costume, as estórias que viverei serão quase tão fantásticas como as que plasmarei em palavras.
(A reportagem sairá na edição seguinte da REV, que conseguiu o exclusivo em terras lusas.)

Ana Amorim Dias
8/9/2014

Home again

Home again

Baixo os máximos para médios, não quero encandear ninguém. Mudo a estação de rádio, de novo. Poderia esta compulsão constante da busca da música perfeita ser um hábito irritante para terceiros, mas nada disso importa: estou sozinha no carro. Depois do barulho, o quase silêncio. Depois de horas de ininterruptas conversas, a atenção regressa apenas a mim e aos pensamentos que em breve gravarei por escrito. Depois do caos estou na ordem regrada de uma condução feita com plenos e apurados sentidos.
Não me lamento por sair e não beber. A consciência com que tudo se observa e absorve, compensa as leves euforias a que por vezes permito entregar-me. O prazer de guiar, noite fora, pela estrada das profundas inspirações que as madrugadas atentas sempre me trazem, compensa tudo.
"Ahhhh, uma música boa!!", alegro-me. "Home again", Michael Kiwanuka. Faz-me recordar os anos-luz de distância entre a oca noite de Albufeira e o pleno sentido da minha tribo e do meu chão. Recordo a enorme quantidade de grupitos que vi na noite: ou só eles ou só elas, vestidos de igual ou com faixas identificativas, provavelmente em despedidas de solteiro/a. "Nem que me pagassem fortunas embarcaria eu naquilo." Sou demasiado individualista e independente. Sempre fui. Por isso nunca pertenci a qualquer grupo. Porque odeio regras e horários e tudo o que me possa roubar o ímpeto livre do imprevisto constantante.
"Home again, hoooome again... Someday I know I'll feel home again...", canta o Michael, cheio de soul. Sorrio. Dentro de pouco, já ali, no fim da minha estrada, estarei "home again", no único grupo a que pertenço de facto: o clã.

Ana Amorim Dias
7/9/2014

A descair

A descair

Eu juro que estava sossegadinha do meu canto, metida comigo mesma, a fazer as caipirinhas. Observei a miúda tentando não a julgar. Devia ter uns dezoito, vinte anos no máximo. De silhueta elegante mas exageradamente provocante na indumentária escolhida. Talvez tivesse um certo déficit de atenção pois falava alto e monopolizava indisfarçadamente as conversas.
Consegui não julgar, ficando a pensar apenas em tudo o que a miudita ainda terá que aprender. Senti uma certa compaixão, pois vi naquela exuberância toda uma fragilidade estrutural propícia aos dissabores.
E foi então que ela veio ter comigo:
- Estou-me a sentir a descair... Não se importa de me ajudar aí atrás com as alças do top?
É que nem baixou a voz para disfarçar a descaidela e eu, atónita como poucas vezes fico, lá a auxiliei a combater a gravidade peitoral.
- Pronto, querida, já está.- respondi-lhe com uma voz segura e meiga.
"O culpado disto tudo é o Newton! Dele e da maçã que lhe caiu no cucuruto", concluí. Devo ter soltado uma gargalhada quase tão imprópria como a atitude da imatura miúda. Mas aos quarenta (independentemente do volume das femininas extremidades e da força com que a magana lei de Newton as possa fazer descair) sabemos ter atitudes que, ao contrário de nos fazerem descair, nos elevam. Fiquei mesmo com a sensação de ser imune à gravidade, pelo menos na segurança estruturada das atitudes com que todos os dias brindo as minhas horas de ação.

Ana Amorim Dias
6/9/2014


Enviado do Writer


Enviada do meu iPad

Desmistificar o amor

Desmistificar o amor

O Ébola que continua a matar. O conflito entre a Ucrânia e a Rússia que prossegue. Os Isis apanhados das ideias que insistem em infetar o mundo com a sua cegueira diabólica. A menina que mal chegou a viver por culpa do malfadado cancro... O sorriso que tende a apagar-se perante tanto sofrimento alheio que, por solidariedade ou receio, acaba por ser sempre um pouco nosso também.
Sinto a impotência com desgosto. Com indignação. Como se combatem estes males com palavras? E então lembro-me: estes não são os únicos males do mundo e há alguns contra os quais posso levantar a voz utilmente.

As pessoas confundem-se muito. Chamam amor à mera necessidade que têm do outro; chamam felicidade àquele instante de atenção que a outra pessoa às vezes lhes dá. E aceitam condições relacionais humilhantes sem sequer se aperceberem disso.
Poderei ser um pouco dura, mas hoje terá que assim ser.
Amar não é sentir na pele a saudade a queimar. Amar é querer a felicidade alheia com uma força maior do que aquela que usamos para almejar a nossa.
Amar não é impor comportamentos ou a ausência deles; não é exigir nem proibir o que quer que seja: é gostar do outro como de nós mesmos, aceitando os enormes defeitos a par das pequenas virtudes.
Amar não é tesão nem paixão nem desejo. Amar é a paz absoluta, a ausência total de dor e, ainda assim, a emoção mais potente de todo o universo conhecido. Quem te instruiu em contrário enganou-te. Amor e dor não têm por que viver de mãos dadas.
Agora olha para ti, com honestidade, por um minuto que seja, e pergunta-te se não tens andado a tentar mudar a pessoa que dizes amar. Pergunta-te se não lhe impões, se não lhe exiges, se não reprovas tanta coisa. Mais: pergunta-te se não o/a estás a forçar a ser alguém que ele/ela não é. Pergunta-te também até que ponto tu és mesmo tu e fiel a ti mesmo/a ao lado da pessoa que diz amar-te.

Amor? Amor é amá-lo até aos defeitos e saber perdoar tudo o que me apetecer.
Ser amada? É poder ser eu mesma o tempo todo e vê-lo a sorrir-me apaixonadamente mesmo quando faço as mais acabadas asneiras.
O que não seja assim, desculpem-me a franqueza, é pura perda de tempo.

Ana Amorim Dias
5/9/2014

Planeta da imensidão

Planeta da imensidão

Ontem, na Costa Vincentina:

- Deves ter vindo do planeta da água fria, tu...
Respondi com um sorriso. Ele deve ter razão. Quando estou nas ondas o termostato desativa-se.
Deu um mergulho rápido e saiu a tiritar. Já eu regressei lá para o fundo, para a distância exata que fazia o nadador salvador levar o apito à boca, hesitar, e não apitar. Um metro mais à frente e ele fá-lo-ia. A corrente puxava imenso mas, apesar da sova do mar rebelde, rebelei-me eu também contra as ondas que não me empurravam com todo o vigor que eu queria, e insisti em apanhar uma e outra e mais outra, até sentir as pernas como aço e a alma como uma pena.
"Do Planeta da água fria? Será? Se entrar no jogo do 'de que planeta vieste' a que conclusão é que chego? Do planeta da espuma? Do das palavras? Do planeta da liberdade ou do da emoção?". Acabei por esquecer o tema, de tão empenhada que estava em abraçar toda aquela energia.

Hoje, na costa algarvia:

- Vou andar de caiaque, vens?
- Não me apetece, vai tu.
Agradeci em silêncio. Não há libertação maior do que entrar na imensidão tendo por única companhia a silenciosa melodia de nós mesmos. Remei até estar bem longe da costa, oferecendo sempre a proa ao rebentar das ondas daquele encarneirado mar. O doce balanço do corpo. O brilho incandescente de milhares de pequenas cristas. O sol a aquecer-me inteira até me levar às explosões dos mais inocentes prazeres.
Voltei algum tempo depois. Remei para terra. Vinda do meu planeta. O da imensidão.

Ana Amorim Dias
4/9/2014

Enviado do Writer


Enviada do meu iPad

Maravilhosas conversas

Maravilhosas conversas

- Consideras escrever um dom ou uma consequência directa da inteligência?
- Que maravilha! Encantadora questão! Considero que cada escritor tem a sua própria verdade neste campo. E não me parece que escrever mesmo bem seja exclusivamente um dom. No meu caso é simplesmente algo que amo fazer acima de todas as coisas e que, à custa de tanto o fazer, tenho melhorado consideravelmente. A inteligência é fundamental para se escrever bem, creio, tanto na forma como no conteúdo. Mas apenas te posso responder por mim.
- Ou seja, é algo trabalhável.
- Sim, sem dúvida! O bom escritor não nasce feito, faz-se. A capacidade de pensar por si mesmo, saindo de todos os padrões e formatações que vida nos impõe, é fundamental também.
- Eu sou um pensador por natureza, mas um escritor?... Estou longe disso.
- Se escreveres todos os dias, todos, e o fizeres como quem respira, sê-lo-ás.
- Talvez...
- Mas perguntas-me isso por considerares que eu tenho esse dom? Isso é algo muito relativo, não te parece?
- Não. Pergunto porque ao ler-te ponho em causa a minha inteligência...
- Desculpa??
- Eu sou das pessoas mais inteligentes que conheço... estou seguro disso. Sei um pouco de tudo, tenho 3 cursos superiores e 1 mestrado, quando alguém quer saber algo sai da mesa onde está e vem perguntar-me (sinal que esta é reconhecida e não apenas uma ilusão minha), sou habilidoso, um faz tudo... mas ao ver o que escreves e como escreves, sinto uma inveja enorme...
- Pois eu só invejo quem passa meses e anos a viajar.
- Já o fiz, durante dez anos!
- Vês? Estamos empatados em invejas... Agora deixa-me dar-te um conselho: continua a escrever mas procurado acima de tudo o prazer, de outra maneira não merece a pena. A beleza e a aproximação ao ideal da perfeição é daí que vem. Não te esqueças que o verdadeiro escritor é um vampiro. Um vampiro com pensamento rápido, milhares de novas sinopses constantes e uma memória treinada para a infalibilidade. A ordem, para mim, é viver, sentir e depois narrar as estórias com a máxima precisão, emoção e beleza, até conseguir transmitir tudo aquilo que senti ao ver o que vi e viver o que vivi.

Ana Amorim Dias
3/9/2014

Café duplo ou dois cafés

Café duplo ou dois cafés

- Ana, tira aí um café duplo, por favor.
Virei-me para a máquina. Dois toques no moínho. Prensar o café. Engatar o manípulo... e antes de ligar o botão que me fez ver o poderoso líquido a escorrer, já a questão me saía boca fora:
- Porquê pedir um café duplo quando se pode pedir um café e depois outro? Não entendo!
Os demais presentes ignoraram-me totalmente, abanando impercetivelmente a cabeça, quase aposto.
Entendo que os meus dilemas possam parecer banais, apatetados até, aos olhos de quem não os lê, depois, transformados em pequenas dissertações do foro existencial.
Coibi-me pois de expressar qualquer outra palavra que manifestasse o caudaloso fluir dos inquietos pensamentos. Mas eles estavam lá, por trás das outras conversas mundanas, a tentar perceber se é melhor um café duplo ou dois cafés de seguida. A imediata analogia à vida, surgiu com a habitual rapidez: é preferível uma dose enorme daquilo que queremos ou doses sucessivas de prazer? Não precisei de pensar muito para obter a minha resposta nem para entender que ambas as opções são excelentes.

- Bom dia! Arranjava-me um café duplo, por favor?
- Olá Ana, trago-lhe já.

Ana Amorim Dias
2/9/2014

O derradeiro tesouro

O derradeiro tesouro

- Sai da minha cozinha!
- Sim senhor, ó marinheiro da treta... Mas preciso de mais pães e depressa!
- Estão prontos quando estiverem, mãe: a perfeição leva tempo!

A Nau das Índias fez-se ao mar numa quinta-feira quente. Como comandante da embarcação, instruí bem o segundo capitão quanto a todas as suas funções. Partimos em busca de riquezas e glória, trocando estranhas sangrias e pães do tesouro por uns papelinhos e chapas metálicas com uns números inscritos.

- Tomás!!! Iça as velas aos fornos! Estamos a ser atacados por aldeões esfomeados!
E ele ria-se.
- Olha o pããão...- Gritava ele, da cozinha, quando saiam novas fornadas.
E então ria-me eu.

Todos os progenitores deviam ter a hipótese de partir para o mar com as suas crias. Ensiná-las a pescar, a caçar, a navegar pela vida. Poder ter, na tripulação, o sangue que nós próprios gerámos e confiar no seu desempenho mesmo nas horas mais duras, é privilégio de poucos. Mas o sabor de vê-los crescer assim, ao nosso lado, a guardar-nos as costas e a lutar por um fim comum, até chega a ser comovente.

A Nau das Índias enfrentou fortes tempestades e ventos, com fiscalizações, faltas de luz e outros percalços mais, contudo fiz ver ao Tomás que mesmo as intempéries mais duras podem ser superadas como quem vai navegando ao sabor uma suave brisa. Entendeu mil lições: que quando a viagem começa temos que ser a equipa perfeita lutando até ao final; que a simpatia vende; que as amizades fluem; que há momentos de esforço intenso mas não se pode ceder ao cansaço. O meu imediato portou-se como um homem e sei que nem eu nem ele esqueceremos estes dias em que os nossos laços se transformaram mais ainda em grossos cabos de navio.

- O que leva o pão do tesouro?- perguntaram-me vezes sem conta.
E eu respondia sempre que é um pão de sementes com recheio de queijo, especiarias, ervas frescas, cebola... Não houve ninguém que não gostasse. Pelo contrário, ficavam por ali a gemer de prazer e a convencer outros transeuntes curiosos a experimentar por si mesmos. Quanto a mim, não me restam dúvidas: o derradeiro tesouro transportado pela Nau das Índias não ia dentro do pão, encontrei-a na cumplicidade sublime que vivi com o meu filho mais velho.
Só que agora... agora que a Nau ancorou e ele partiu para umas curtas férias longe de mim, entendo que vou ter mesmo saudades.

Ana Amorim Dias
1/9/2014

Filibusteiros

Filibusteiros

Notei as vizinhas das barraquinhas dos crepes e das sandes de leitão, muito agitadas. Lancei um olhar interrogativo ao Paco, o vendedor de tâmaras, e percebi que eles andavam ao ataque.
Agentes da autoridade por um lado, fiscais das finanças por outro, ASAE, enfim, o pratinho completo.
Verifiquei de novo as temperaturas dos frigoríficos e registei-as. Consultei as emoções e analisei-as. Não, eu não estava apavorada nem a correr às voltas com o nervosismo que denotava em alguns outros. Fiz, com o capitão, o melhor possível para, como sempre, ter tudo em ordem. Se acaso implicassem com algo, isso não deveria perturbar o meu prazer de ali estar.

Chegaram. Faltava a guia de transporte do pão no meu carro. Ocorreu-me perguntar ao senhor fiscal se também pedem guias de transporte aos filibusteiros que saqueiam o país e levam o dinheirinho que bem suamos para as suas contas offshore. Calei-me. No fundo o senhor até era simpático e chegou a confessar-me que preferia estar ali só a passear. Mas da multa acho que eu e o capitão não nos safamos... A menos que me recorde, assim de repente, de algo que não lhes disse: é que o pão talvez não tenha vindo de carro e sim nos alforges da burra Joaquina II.
Foram-se embora e analisei de novo as emoções: o prazer de ali estar, ninguém mo pode tirar. E quanto a faturas e guias de transporte, há algumas que jamais me poderão exigir: as de todas as crónicas que, por puro prazer, vos entrego.

Ana Amorim Dias
30/8/2014

Estranhas surpresas

Estranhas surpresas

Estava à espera que ela chegasse no autocarro do meio dia e vinte. Enquanto aguardava fiz soar o CD no rádio do carro.
"Ora vamos lá ver..."
Logo na primeira faixa uma voz sensual falava em francês, com melodia de fundo. Um texto lindo. Sobre a nobreza de partir e sobre a incomensurável riqueza de certas viagens. Não estava à espera, mas arrepiei-me e sorri.
Fui passando as músicas e voltei a deter-me na penúltima. A mesma voz de mulher. Desta vez com outro fundo musical, a voz soava em inglês, pausada, profunda.
- Olá tia!
- Olá querida.
Uma pausa.
- Bem, ó tia, parece mesmo a tua voz!!
Pisquei-lhe o olho.
- Brutal!- exclamou ela.
Estou habituada a ligar o rádio e ouvir, por vezes, músicas com letras escritas por mim... Mas emprestar a voz a algumas faixas de um CD? Digamos apenas que a vida tem estranhas, mas saborosas, surpresas.
Obrigada Chris!

Ana Amorim Dias
(27/8/2014)

O desgosto de amor

O desgosto de amor

Contou-me uma amiga que, ao frequentar o Conservatório, assistiu ao exame de piano de um virtuoso colega. Ao terminar uma execução perfeita, as palavras do examinador foram ainda mais sublimes:
- Tem talento e a sua técnica é excelente... mas falta-lhe um desgosto de amor!

- O nosso amor é único...
Soltei uma gargalhada sonora e simulei um convicto vómito. Quando vejo televisão ou cinema, adquiri o incomodativo hábito de, silenciosamente, criticar a previsibilidade e falta de originalidade de alguns argumentistas. "Credo, e pagam-lhes para isto?..." Entretanto recito em pensamento o rumo que eu teria dado às conversas das personagens. Estranho hábito, talvez, mas que se me tornou natural.
"O nosso amor é único", repeti. Que estupidez. E no entanto é a crença sonora de tantos seres mergulhados no intenso fogo de um apaixonado amar. "Que inocentes crianças... como pode alguém crer em tal tamanha falácia?" Ninguém detém a exclusividade da intensidade de amar; não existe casal, por mais que se ame, que o faça de maneira jamais antes sentida. Ou vivida.
Amar não são rosas e velas nem champanhe com morangos num pôr do sol sobre o mar. Amar faz-nos divinos e só por isso transmite a sensação de ser único no universo inteiro naquela intimidade que funde corpos e almas. Mas amar, por mais que nos queime inteiros enquanto o tempo e o espaço congelam, não é exclusivo e irrepetível. Nunca será. E o amor, aquele mesmo robusto, é feito de silêncios que falam, de discórdias que se superam, de perdões impossíveis que acabam por acontecer; é construído década após década, na certeza de se viver na luta de uma construção diária que dá o verdadeiro sentido a toda a nossa existência. Amor mesmo é aquele que é consciente, informado, maduro o suficiente para entender que todos os casais que se amam vivem os mesmos momentos.

E nós, enquanto seres mutáveis na nossa eterna (re)construção pessoal, jamais seremos inteiros até termos sofrido um devastador desgosto de amor.

Ana Amorim Dias
(26-8-2014)

Irmãos

Irmãos

Ele inventou a regra de sortear duas propriedades no início de cada jogo de monopólio. Virava os cartões para baixo e eu, que ainda não sabia ler, não percebia como lhe saía sempre a rua Augusta e o Rossio.
Ele não tinha com quem jogar xadrez, por isso ensinou-me...e dizimou-me vezes sem conta.
Ele ficava horas perdidas a falar-me do universo com todas as suas estrelas e galáxias e, como eu não conseguia apreender bem a magnitude daquelas dimensões inimagináveis, fez-me começar a ler Carl Sagan aos dez anos.

Chamei-o para se deitar comigo na manta estendida na relva. Falhei-lhe dos meus próximos projetos e li-lhe a crónica de que tem ouvido falar por pessoas que nem sequer me conhecem. Dois irmãos a namorar à sombra de uma árvore numa tarde de verão. Momento mais perfeito.
Estendi o braço para a selfie.
- Mano, importas-te?
Sorriu. Já não se importa.
O que me faltou dizer-lhe, neste novo dia de festa, foi "obrigada". Por ser o mano sempre presente e por, mesmo na traquinice da sua infância, ter sabido contribuir tanto para a beleza que mais prezo: a interior.

Ana Amorim Dias
25/8/2014

Ubíqua

Ubíqua

Vi-os a deitarem-se nas toalhas e percebi que iria para a esplanada sozinha. Aborrece-me estar no areal estendida, a grelhar o corpo ao sol. Quando o tempo não está demasiado quente aproveito bem a maresia, entretendo-me por ali um bocado a brincar com pensamentos mas, quando o sol se agiganta e me obriga a ir ao mar a cada três minutos e meio, faço de qualquer esplanada a minha mais perfeita praia.
- Ficam aí?
- Eu fico! Quero bronzear-me um bocado.
- Eu também!
- Então espero por vocês na esplanada. Prefiro bronzear-me às riscas.

Sentei-me a saborear a cerveja e recordei a noite de ontem...

- Por aqui está tudo organizado, conseguem sobreviver sem mim uma hora, certo? Se precisarem de alguma coisa, telefona e eu venho de imediato.
Guiei até ao outro negócio. Sete minutos. Sete minutos inteirinhos de silêncio. Sete minutos para estar confortavelmente sentada. Que privilégio!
Entrei no Piratas e sorri perante a confusão ruidosa. Não foi necessário trocar palavras com a tripulação para perceber que viram a minha chegada como a dos heróis dos filmes, que aparecem no último segundo em que ainda é possível salvar o que precisa de ser salvo. Trabalhei como um robot do futuro: a eficiência suprema. Ou como uma feiticiera, daquelas que tocam na ponta do nariz e "plim": magia!
- Tomás, avisa-me dez minutos antes das onze e meia, porque tenho que estar na Quinta precisamente a essa hora.
- Mãe? São onze e vinte. Agora!
Voei. Fiz o que tinha a fazer e, no preciso segundo em que terminei de orientar de novo as tropas para me poder voltar a ausentar, recebi o mayday do capitão.
- Tranquilo. Já estou a arrancar para aí.

Fresca e feliz, levei a imperial à boca e perdi o olhar na imensidão do oceano. "Teria dado jeito, ontem como tantas vezes, ter o dom da ubiquidade, um dos que mais ambiciono desde que tenho entendimento de gente." Depois, enquanto me ia bronzeando às riscas, pensei melhor e percebi: podemos não ter os atributos divinos totalmente desenvolvidos mas, se os quisermos mesmo muito, conseguimos algo bem parecido!

Ana Amorim Dias
(24/8/2014)

As pastilhas nas bebidas

As pastilhas nas bebidas

- Então?? Voltaste?
- Já estava com saudades... - respondeu ele com o que me pareceu ser o vislumbre de um beicinho.
O Nuno tinha-se despedido há pouco mais de uma hora. Era a última noite em Altura e no Piratas... e ele decidiu voltar e aproveitá-la até ao fim.

- Ana! Vou confidenciar-te algo...
- Conta, Carlos.
- Estavamos a tapear em Ayamonte e o que todos queríamos era voltar para aqui!
Conheci o André e a Márcia na concentração de motas de Faro. E parece que há mais de mil anos me dou com estes deliciosos seres. Ri-me e contei-lhes a história das "pastilhas nas bebidas".

Há muitos, muitos, anos, quando as vizinhas ainda não estavam habituadas a que existisse vida noturna em Altura, exprimiam a incompreensão que tinham quanto ao sucesso do bar, com uma curiosa equação: "O sítio com o café mais caro e sempre tão cheio de gente? Eles devem pôr pastilhas nas bebidas para viciar as pessoas e fazê-las voltar! Só pode ser isso!"
Há duas décadas que eu e o capitão nos rimos com esta infantil pérola de difamação.
Há magia, sim. Mas não é servida em comprimidos colocados nas bebidas. O Piratas vicia com a energia intensa de lugar que tem alma própria. Vicia com o sabor das gigantes tostas e com o sopro literário que se impregna em cada caipira. Vicia com o casal sorridente que, atrás do balcão, esporadicamente se esquece de servir alguma bebida por estar tão empolgado em conversas. Vicia com as cores quentes e decorações que são pedaços de história. Vicia por algo intangível e inexplicável.
Não, não usamos pastilhas, só a alegria de estar sempre prontos a fazer novos amigos.

Ana Amorim Dias
(23/8/2014)

As verdadeiras leis do amor

As verdadeiras leis do amor

A espanhola de meia idade, sentada sozinha ao balcão, geme de prazer à primeira sorvidela.
- Delicioso, su mojito!
- Yo sé. Los mejores del mundo!
Sigo com os meus afazeres e esqueço-me da sua presença até reparar nela de novo. Por instantes aquele olhar triste e perdido inspira-me amor. Simplesmente amor.

Dois motards desconhecidos cruzam-se na estrada. Enquanto conduzo o meu carro, vejo o respeito com que se cumprimentam. "Que os anjos vos acompanhem...", desejo-lhes. E, de novo, aquele sentimento de amor.

Está-me sempre a acontecer. É com alguém que tem o olhar preso no vazio, nalguma esplanada onde eu estou; com o velhote que lentamente atravessa a passadeira; com o casal apaixonado que se beija à beira mar; com o miúdo pequeno que olha apaixonado para a mãe... Completos desconhecidos que tenho a certeza que amo naquele vértice temporal totalmente inesperado.

Dizem que só se pode amar uma pessoa. Estipularam que tem que ser do sexo oposto e que deve ser para sempre. Lembraram-se de instituir que tem que se usar uma anilha, com o nome do outro gravado. E toda a gente acatou.
"Não se diz 'amo-te' por dá cá aquela palha, isso seria banalizá-lo"; "É impossível que ames um desconhecido que nunca mais verás na vida"; "Não podes dizer 'amo-te' às amigas, e aos amigos muito menos." Se seguirmos as leis que o Homem estabeleceu para o amor, estas premissas são verdadeiras. Mas se escolhermos viver de acordo com as leis do próprio amor, podemos senti-lo por tudo e por nada, por todos e mais alguns! O amor é daquelas raras substâncias que quanto mais sentimos mais ele em nós nasce, mais poderoso fica; mais nos cura e eterniza.

Não é amando muitas pessoas que se banaliza o amor. É ao refreá-lo, de acordo com redutoras crenças, que estamos a banalizá-lo... e a matar o que há de mais natural em nós.

Ana Amorim Dias
(22/8/2014)
Enviado do Writer


Enviada do meu iPad

Crónica da sedução a mim mesma

Crónica da sedução a mim mesma

E de repente lembrei-me do que uma amiga me disse ao consultar o seu livro sobre astrologia cármica.
- Tu tens o carma de Dom Juan... Ou então o da liberdade, não percebo aqui muito bem...
O costume: atirei a cabeça para trás em sonora gargalhada.
- A sério, Ana! És uma sedutora!

Não sei porque me fui lembrar disto agora. Acho que foi por me estar a interrogar se manipulo um bocado as pessoas para que gostem de mim. Concluí que não. Como toda a gente, gosto que gostem de mim, mas não me transformo no que não sou só para que tal aconteça. Porque manipular implica fingir, não ser natural; implica desviarmo-nos de comportamentos que nos são instintivos e eu não faço isso... a não ser por mim. Sempre que eventualmente altero reações instintivas, faço-o conscientemente em prol do meu supremo bem estar emocional. Disso tenho a certeza! Creio que foi nesse momento que a equação começou a ganhar forma: vivo no constante desafio de me seduzir a mim mesma. Sim, sem dúvida! E desconfio que é por isso que escrevo. Sei sentir o que os outros sentem e consigo explicá-lo em palavras. Mas antes... antes explico tudo a mim própria enquanto me seduzo com bergeraquianas palavras e sorrisos de Don Juan.

Ana Amorim Dias
(21/8/2014)

A amolgadela

A amolgadela

O senhor José foi fazer a inspeção ao carro atempadamente, nos primeiros dias de Agosto. Quando chamaram pela sua matrícula, fez marcha a trás sem olhar e... bem, eu ainda gritei mas já não serviu de nada.
- De quem é este carro? - perguntou, desorientado.
- Meu...

Eu tinha ficado tão contente por aquilo estar assim tranquilo que até fizera planos de ir descansar um pouco à tarde, antes de voltar ao trabalho. "Raios partam o homem, já tenho uns quantos dias estragados!", foi o meu primeiro pensamento. Mas o segundo, ao ver o seu desespero, emendou o rumo da situação:
- Deixe lá isso, então! Pode acontecer a qualquer um.
- Oh menina, desculpe!! Em quarenta anos de carta é a primeira vez que me acontece!
Vi-o tão aflito que não me restou mais remédio:
- Acalme-se vá, também não precisa de ficar assim. Não vê que é só chapa? Eu nem estava dentro do carro...
- Não me conformo, não me conformo! E agora o que fazemos?
Assumiu a culpa e pediu-me que fosse eu a preencher a declaração amigável porque estava demasiado nervoso.
Quando entrámos finalmente com os carros na linha de inspeção, gritei-lhe com um ar teatralmente apavorado: "Cuidado! Não me bata outra vez!". E ele riu-se a bom rir.

Bateram-me no carro e eu vim-me embora a sorrir. Como mudei. Como cresci!
A peritagem já está feita mas combinei só deixar o carro na oficina no início de Setembro. Até lá andarei com a minha porta amolgada e continuarei a sorrir de cada vez que a olhar... porque cada vez gosto mais das minhas reações à vida.

Ana Amorim Dias
(20/8/2014)

Os Algarvios

Os Algarvios

Caro Henrique, deixe que me apresente: sou escritora, advogada e empresária. Sou, como quase todos, uma algarvia sorridente, e é nessa qualidade que lhe venho agradecer efusivamente a oportunidade com que a sua viperina crónica veio exacerbar o orgulho que tenho em sê-lo. Se o ataque fosse pessoal, repare, nem me dignaria a entregar as minhas palavras ao tema mas, quando atacam os meus, o instinto é protegê-los.
Agradeço-lhe profundamente a capacidade que teve de me fazer refletir um pouco e orgulhar-me, mais convictamente que nunca, por fazer parte integrante deste grupito de portugueses mais bafejados pelo Sol e por uma maresia mais quente.
Gostaria, contudo, que entendesse que, se há algarvios que não lhe sorriem e lhe parecem tão secos e tisnadamente antipáticos, talvez tal se deva ao facto de muitos de nós trabalharmos dezasseis horas em vez de oito, sem fins de semana nem folgas, durante vários meses seguidos, para conseguir que todos os turistas (e habitantes locais) vejam as suas necessidades supridas. Ou ao facto de termos os serviços entupidos e as estradas, além de esburacadas, repletas. Ou talvez ainda, se deva ao facto de não estarmos para aturar miúdos que aparecem, esporadicamente entre todos os turistas, e que, como o menino, não valem o cafezinho que tomam, de tanta soberba e cagança que trazem nessa atitude.
Não posso terminar sem lhe recordar ainda que, ao atacar a parte, está a enfraquecer (e ofender) o todo. Somos simplesmente portugueses, uns mais simpáticos outros menos, a lutar por sobreviver e levantar a economia.
Por agora é tudo, Henrique, mas talvez seja bom o menino ir a banhos para outras paragens, pelo menos por uns tempos. É que nos outros locais não sei, mas se aparecer no meu bar, terei todo o gosto em, sorridentemente, lhe servir uma das minhas maravilhosas caipirinhas... por essa cabecinha oca abaixo.

Ana Amorim Dias
(19/8/2014)

A boa surpresa

A boa surpresa

Entrou na sala de triagem com mais de trinta e nove de febre. Instalaram-no de imediato numa maca e deram-lhe atenção, soro e medicação. A mim foram-me dando perguntas e espanto: aparentemente ter um filho com treze anos, setenta quilos e um metro e noventa, não é coisa que se faça. Tal facto, contudo, pouco tem de espantoso. O que me deixa admirada é o notável estoicismo com que os profissionais de saúde enfrentam tanto trabalho. O que me indigna é o mau uso de milhões de euros que, em vez de serem gastos na educação, saúde e tantos outros campos votados ao desastroso abandono, são usados para tapar buracos que impunes filhos da bosta deixam abertos. Mas isto não é nenhuma surpresa neste pedaço de mundo que tanto tem de encantador como de miseravelmente governado pela corja de bandidos intocáveis que se protegem mutuamente.
A surpresa, inversamente boa, é ouvir da boca do meu filho mais velho: "coitadas das pessoas todas que ficaram lá fora à espera, mãe...Espero deixar esta maca livre depressa para quem precise mais."

Ana Amorim Dias
(18/8/2014)

Deslizo

Deslizo

Não sinto frio nem calor. Esse conceito físico desvanece-se ante a felicidade febril de estar de novo nas ondas. Vem outra. Apanho-a no momento certo. Deslizo depressa, envolta em espuma, embrulhada na energia pura do mar que generosamente se funde na minha. Deixo a imensidão do momento cavalgar-me no peito enquanto desejo fundear em mim todo o poder deste mar.

Cinco da manhã e não conseguia dormir. Demasiado cansada, talvez. Demasiado excitada com todos os planos de um futuro tão próximo quanto repleto de desafios que me apaixonam. Ocorreu-me, mesmo antes da entrega aos sonhos adormecidos, que o entusiasmo está para a alma como a tesão para o corpo. E, cinco horas mais tarde, desperto refeita e pronta para a promessa do bem amado Levante.

Olho as pessoas ao meu redor. Alguns, de prancha como eu, trocam comigo os olhares cúmplices de quem entende aquilo de que a vida deve ser feita. Outros, meio adormecidos ainda, falham tal entendimento. Deslizar não se explica, não se descreve, não se ensina. Deslizar vem de dentro, nasce com o mesmo prazer de quem desce a montanha de skis, ou faz as curvas de mota. Deslizar não é só paixão, adrenalina ou pura emoção: é saber existir em pleno.

Apanho só mais uma. E depois só mais outra. E outra, e outra. Até que me lembro que tenho dois filhos e uma sobrinha, em casa, à espera que o almoço seja posto na mesa. Beijo o mar em nova onda... e deslizo para casa.

Ana Amorim Dias (17/8/2014)

Resumos

Resumos

Continuam a chegar todos os dias. Leitores já informados ou simplesmente pessoas que tropeçam nalguma crónica que, pairando no limbo virtual, lhes desperta a atenção.
Ocorreu-me há pouco que, ao contrário dos fiéis amigos que há tanto tempo me acompanham e conhecem bem a mulher por trás da escritora, quem se inicia na leitura dos meus dias feitos escrita, deve ficar um pouco perdido.

Tratarei de situar, então, os recém chegados, buscando a máxima eficiência num breve resumo.

Cenários:
- A Quinta do Monte, onde vivo. Lugar de bucólicas aventuras, de animais insubordinados, de pessoas felizes e muita largueza. Situada no sotavento algarvio, também por cá se fazem, de quando em vez, casamentos.
- O Bar Piratas em Altura. Vinte e dois anos de estórias. Inspirador sobretudo nas caipirinhas, na mesa de matraquilhos e nos clientes, capazes de me levar à criação de personagens fantásticas. (Qualquer semelhança com o conto "O Galeão" de "Histórias do (A)Mar", não é mera coincidência.)
- O meu carro. Embora modesto e pouco dado a velocidades, é aos seus comandos que muitas histórias se escrevem.
- O Mar. Eterno. De preferência com ondas!
- E todos os locais por onde vou viajando, sentindo e completando o crescimento desta nómada e irrequieta alma.

Personagens:
- O capitão. De seu nome Ricardo. Meu marido. Atura-me há vinte e quatro anos e nunca precisou de acompanhamento psiquiátrico (um dos poucos mistérios que jamais entenderei). Pseudo-anti-exposição-da-vida-privada-nas-redes-sociais, escolhe não aparecer. Respeito-o na sua escolha... Mas nem sempre.
- Tomás. O filho mais velho. Um metro e noventa aos treze anos de vida. A meiguice, o apurado sentido de humor e a admiração pela imprevisibilidade da mãe, fazem dele a companhia perfeita para quase tudo.
- João. O herdeiro mais novo, intrépido aventureiro com que a vida me brindou para eu ser ainda mais feliz e escrever crónicas de chorar a rir. Pescador convicto e dono de uma inventividade de muitas maneiras expressada, ensina-nos imensas coisas a um alucinante ritmo.
- A soberba mãe Laura, que continuo a desconfiar ser uma princesa que se perdeu do palácio; o pai João, influência suprema nas artes e na honra, que me acompanha cada passo desde o lado de lá das estrelas; a sogra, "menina Glorinha", a energética e super cool matriarca da Quinta...
- Eric Lobo, o fotógrafo-escritor-aventureiro-globetrotter, biografado no último livro: "Olho Ubíquo". Mentor e instigador de todos os meus crescimentos. Artístico companheiro de cumplicidades e pactos: salvaremos juntos os sonhos perdidos de quem nos lê.
- E mais os amigos de sempre, as amigas eternas, os encantadores facebookianos que me entram no coração... E os gatos, o porco Luisinho e tantos outros.

Quanto a mim... bem, ou digo apenas que o meu "brinquedo" preferido é o meu cérebro... ou este texto descambaria num novo livro.

Ana Amorim Dias (16/8/2014)

Aquecer

Aquecer

- Repara bem como ela se evapora à minha passagem!
Ele riu-se.
Estou certa de que conseguiu imaginar a fria água do mar a tornar-se escaldante junto ao meu irrequieto corpo. Se se inquietou, esperando mais explicações, não o demonstrou nem com a voz nem com o corpo.
- Estive a pensar, sabes? E por mais fria que a água esteja, os trinta e sete graus de cada corpo aquecem-na...
Mais um sorriso encantado.
- Pode ser quase imperceptível, mas é inegável, também... Não?
- Espera. Estou a ver a água a arder à tua volta!
Vindo de outro qualquer poderia ser trocista. Dele não, jamais.
Dei outro mergulho e continuei:
- Passa-se exatamente o mesmo com a energia que libertamos para este enorme mundo, Ricardo! O calor humano que emanamos não é uma candeia de Diógenes. Mesmo que só funcione sobre a realidade que nos é mais cercana, podemos de facto aquecer tudo ao nosso redor.
Ele abraçou-me. Pergunto-me se se terá queimado.

Ana Amorim Dias (14-8-2014)

Crudívoros

Crudívoros

- E, Ana? Os dois vegetarianos de que lhe havíamos falado, afinal subiram de escalão e passaram a crudívoros...
A noiva explicava-me a necessidade de alteração do menu para esses dois convidados.
- Crudívoros? Hum... Isso soa-me a doloroso...
- Está aqui a lista do que comem. Só frutas e vegetais, e tudo cru.
- Coitados! Isso até deve ser perigoso!

Esta manhã fui ao lingueirão. Um pouco de sal sobre os buracos alongados (os redondinhos são casulo) e, quando o lingueirão vem espreitar, apanhamo-lo e puxamo-lo, devagar mas com firmeza.
Lembrei-me dos crudívoros e falei com o lingueirão: "Podes não ser um vegetal... Mas, e se eu te comesse cru?"
Olhei-o e hesitei. Depois imaginei que estava numa ilha deserta sem mais alimento. Usando o livre arbítrio de quem quer saber se consegue, enfiei-o na boca e mastiguei. Cozinhados são melhores, mas à fome, por asco, não morreria eu. Sou crudívora e "cozinhadívora", foi a minha conclusão.

O que não consegui concluir, ao comê-los cozinhados já em casa enquanto via notícias, foi como podem ser "desprogramados" os terroristas fanáticos que andam a espalhar o horror no Médio Oriente.

Ana Amorim Dias (13-8-2014)

Especializações maternais

Especializações maternais

- Fazemos uma equipa "infernal", mãe! - disse-me ele com um entusiasmo vibrante enquanto colocava o gelo nas caipirinhas e mojitos que eu estava a preparar.
- Fazemos é uma equipa "celestial", João! Sabias que, de toda a família, és o mais novo a ter alguma vez ajudado cá no Bar?
Orgulhoso, agitou-se ainda mais, revelando-me capacidades e iniciativas que me deixaram boquiaberta.
O Tomás, por sua vez, com a energia de serenidade que lhe é tão característica, ia ajudando o pai a servir e entreter outros clientes.
Invadiu-me uma alegria sem precedentes. Daquelas que sabemos vir a recordar, nos anos vindouros, como algo quase palpável. Daquelas alegrias simples e, no entanto, tão absolutas que ficamos com a sensação de se nos cravarem nos genes. Pela primeira vez senti o poder familiar em forma de calafrio dinástico. Perceber-lhes as raízes, a pertença, e a paixão pelos (modestos) patrimónios empresariais fundados pelos progenitores, foi uma sensação colossal.

Sinto-me cada vez mais próxima destas duas criaturas. Não é que o amor tenha aumentado porque o amor de mãe afigura-se-me como sendo, desde os primeiros instantes da gestação, algo simplesmente absoluto. O que tem vindo a crescer são as mútuas aptidões para que nos relacionemos num plano de transmissão de energias brilhantes. Como se todos estivéssemos a fazer constantes especializações, mestrados e doutoramentos na área do entendimento maternal e filial.

Ana Amorim Dias (12-8-2014)

A perfeição do limão

A perfeição do limão

Cortei-o ao meio. Depois, sem saber porquê, fiquei a olhá-lo, maravilhada, quase agradecida.
- Já viste, Tomás? É perfeito!- e espetei-lhe com uma metade mesmo em frente aos olhos.
O miúdo olhou-me, com a cara de surpresa que tantas vezes me devolve, e perguntou:
- Não vais ficar a olhar para ele a noite toda, pois não?
- É que a perfeição é algo tão simples e natural...

Apercebi-me que um senhor, que estava ao nosso lado a jogar snoker, se deteve a ouvir-nos. Desconfio que o deixei a pensar.

Ana Amorim Dias (11-8-2014)

Entre caipirinhas e livros

Entre livros e caipirinhas

No burburinho da praia repleta, só consegui ouvir conversas sobre comida. "Esperámos uma hora por mesa e mais duas pelos bifes", queixou-se um senhor, à beira do mar. "Fazemos uma canjinha com pouco sal para o jantar, e agora grelhamos o peixe", comentava outro. "Vamos ao café, comer qualquer coisa?", "Meninas, o pai vai indo para o restaurante, querem grelhada mista?", "Bolinhas! É com creme e sem creme!", "Mãe, passa aí as bolachas", "Fazemos o quê para o jantar?"
Nada. Não se falava de mais nada. Como se os dias, as férias, e a própria vida inteira, fossem um sequência ininterrupta de servidão alimentícia.
"Caramba! Se um décimo da energia que gastam a tratar de alimentar o corpo fosse gasta a alimentar a mente, que super povo não seríamos...", pensei.
Revoltada com o delírio coletivo da escravidão à comida, e incomodada pela elevada quantidade de corpos demasiado próximos do meu, arrastei o Ricardo para fora da praia.
- Anda, vamos almoçar!
- Onde? - quis saber.
- Eu guio e verás quando lá chegarmos.

O requinte com que comemos algo leve, naquele ambiente seleto e colonial, fez-me viajar com a imaginação. Almocei com o mar ao fundo, pássaros e árvores verdejantes por perto; rodeada por paredes grossas e ventoínhas de teto, suspensas no alpendre tranquilo. No bistro daquele campo de golfe, eu estava resguardada das gordas hordas de gente para quem alimentar o espírito e a mente pouco importa, desde que o estômago esteja tratado com alguma qualidade.

Faz-me confusão a falta apetite de conhecimentos e a ausência de sede de evolução interior. Se sem comida e água o corpo não sobrevive, como podem as mentes e as almas sobreviver sem que as alimentem também?

Esta divagação acompanhar-me-á até ao princípio da noite, quando, ao trocar momentaneamente o Bar Piratas pela Feira do Livro de Altura, ficarei a equacionar se mais fazem sonhar as minhas caipirinhas... ou os livros e crónicas que vou inventando enquanto as preparo.

Ana Amorim Dias (10-8-14)

As férias dos Deuses

As férias dos Deuses

Praguejei contra os Deuses do mar. "Nereu, Neptuno, Poseídon, Calypso! Que andais a fazer, caramba? Em Agosto estamos, não tendes que tirar férias agora!"
Nortadas. Um frio líquido e salgado. E águas feitas planície.

Dou um mergulho decidido. Dois. Três. E saio desconsolada, sem o acolhimento sensual do caótico levante; sem a decantada lavagem das energias no mar.
Sou pessoa de levante. Pessoa de ondas emocionantes, tomadas sem moderação.

Há vinte e quatro dias que não deslizo na prancha. Ainda considerei continuar a praguejar contra os Deuses do mar, para que regressem depressa das suas despropositadas férias, mas depois pensei: "Que se lixe, mar é mar e o levante há-de vir."

Ana Amorim Dias

Suavemente ou à bruta

Suavemente ou à bruta

A única maneira certa de vivê-la? Como se estivéssemos a fazer amor com ela. E o amor, esse, só de duas maneiras se faz: suavemente ou à bruta. Dizem que suavemente é amor e que à bruta é paixão. Irrelevante, se assim é ou não.
Só que às vezes a suavidade não chega. São boas as carícias, sim, e a sensação de pertença, e os suspiros melosos. Sabem bem os murmúrios cúmplices, as entradas lentas, os gemidos sentidos da entrega. Sabem bem mas não chegam. Porque às vezes a vida tem que ser tomada à bruta. Pela cintura. Com ambas as mãos. Às vezes temos que lhe agarrar nos cabelos, cravar-lhe as unhas nas costas, dobrá-la ao meio e forçá-la de encontro a nós. Temos que olhá-la nos olhos e fazê-la entender que é nossa, só nossa, de ninguém mais... e que vamos possuí-la como antes nunca nada.
Só vale a pena se fizermos amor com ela. E às vezes tem mesmo que ser à bruta. Com paixão ou com amor, chamem-lhe o que quiserem. Sempre que a suavidade não chegue, temos que entrar nela com a nossa máxima força, com o grito surdo de um incontrolável desejo... e emprenhá-la de nós.

Ana Amorim Dias


Enviado do Writer


Enviada do meu iPad

A resposta do Shiva Pirata

A resposta do Shiva Pirata

Perguntei ao Shiva Pirata qual era a sua opinião. A resposta foi clara: "Claro que não perverteste ninguém! Estás louca ou quê, miúda?"

- Olhe, desculpe...
- Diga. - Virei-me para trás e rasguei o sorriso.
- É a senhora que faz as caipirinhas?
Era óbvio que sim, estava a fazê-las naquele momento.
- Sim, sou eu.
- É que eu não gostava de caipirinhas... até a minha amiga me dar a sua a provar. Pode fazer-me uma, por favor?
- Claro.

Espremi as limas, o açúcar e a cachaça, com a traquinice que os putos reguilas usam nas suas mais rebuscadas patifarias. Murmurei só para mim: "Ana Amorim Dias, a Pirata dos granizados de álcool, há vinte e dois anos a perverter abstémios..." Quase senti um leve reforço: e se a jovem senhora ficasse viciada em caipirinhas por minha causa? E se desgraçasse a vida e comprometesse o futuro devido ao novo "amor" que a minha mãozinha de barmaid a levou a descobrir?

Fui sentar-me ao pé do Shiva Pirata e confessei-lhe os
meus temores. "O que se faz com puro amor, nunca perverterá ninguém."
Gosto deste Shiva. Dá-me sempre boas respostas.

Ana Amorim Dias

O bom piloto

O bom piloto

- Ayamonte!
- El Rompido!
- Ayamonte!
- Não! El Rompido, já disse!
- Eu é que vou a guiar... - troçou ele.
E então calei-me. Já sabia que me levaria a almoçar exatamente onde eu queria.

Saí para a rua em bikini, com a mala a tiracolo. O vestidinho branco na mão, porque estava muito calor. Quase meio dia e eu em jejum. Abri o frigorífico do bar da piscina e cortei uma fatia grossa de queijo. À segunda dentada apeteceu-me desenjoar o palato, misturando-o com nozes. "Bolas, onde vou encontrar nozes, agora?"
- De que te ris?
- Lembrei-me que tenho um pacotinho de nozes, mesmo aqui, na minha mala!- misturei com satisfação os dois alimentos na boca.
Ele não entendeu a minha alegria. Como lhe podia explicar que hoje a vida me daria tudo, assim, de mão beijada?

Enquanto almoçavamos, precisamente no sítio que eu desejei ao acordar, ele contou-me o segredo que faz dele tão bom piloto de corridas:
- Quando te apercebes que o teu corpo é da terra e que o teu espírito é eterno, conduzes só com o espírito, sem medo do que possa acontecer ao corpo...
Arrepiei-me.

Mas foi só agora, ao ver na tv a notícia do aparecimento do neto 106, que me chegou a intensidade necessária para escrever bem o dia: quando a nossa energia é a certa, até no telejornal conseguimos ver boas novas.

Ana Amorim Dias

Os colares preciosos

Os colares preciosos

A cabeça dele encaixa no meu peito e, quando me abraça com força, reclama com os colares que lhe magoam a cara.
Ontem estava a mimá-lo, junto ao precipício do sono que, convicto, o chamava e, de repente, do nada, perguntou-me:
- Porque é que usas sempre tantos colares, mãe?
Ando sempre com eles, envergando por vezes vários, todos juntos, combinados, desnivelados, a fazerem-me sentir mais sensual e completa.
- É que cada colar tem uma história, sabes? Cada um foi comprado num certo local, ou oferecido por alguém especial em dias ainda mais memoráveis no meio de tantos dias bonitos. E eu gosto de andar assim, com muitas memórias ao pé do coração.
- Mas não tens de ouro, nem de pedras preciosas, não és uma verdadeira Pirata, mãe!
Sorri-lhe. Acariciei-lhe os cabelos e expliquei-me melhor.
- As coisas valem pelo que nos fazem sentir, João. Valem pelas memórias doces, pelos significados que só nós entendemos. Esta concha que hoje trago é preciosa porque ma deste, na praia, com um sorriso orgulhoso que eu nunca mais esqueci.
- É o teu colar preferido, mami? É precioso?
- É um dos meus preferidos. E sim, muito precioso. Como tudo o que nos coloca um terno sorriso no rosto.

Ana Amorim Dias

Nas nossas mãos

Nas nossas mãos

Embora aquele solo de saxofone soasse maravilhosamente, a dor de cabeça obrigou-me a baixar o volume. Aconcheguei melhor os óculos de sol ao topo do nariz. Com a mão direita remexi a mala, procurei um comprimido e engoli-o, esperando que se apressasse.
O carro deslizava em modo de piloto automático. Não fosse aquela dor crescente e tudo seria, naquele momento, perfeito. Comparei o tédio monumental que ontem se instalou durante algum tempo em mim, com o entusiasmo que estava a sentir agora...
Tinha-me esquecido completamente da letra "Perfect Moment" que escrevi para um músico francês meu amigo. Esta manhã informou-me que já está pronta e em CD.
Tinha-me esquecido que há três noites atrás, ao ver o realizador João Botelho a sentar-se numa mesa do Piratas, me dirigi a ele:
- Olá. Sei que os donos de bares normalmente oferecem um copo, mas eu vou oferecer-lhe este livro.- Entreguei-lhe o "Olho Ubíquo", devidamente dedicado, e recebi de volta uma simpatia sólida e tão naturalmente brilhante como a criação do artista.
Tinha-me esquecido do episódio, até relembrar, enquanto guiava, a maneira efusiva como me cumprimentou ontem, quando me viu de novo.
E o que mais me esquecera fora do pedido de amizade feito ao Erik Vauth, criador da mota mais bela que até hoje vi. Aceitou-me o convite esta manhã e poucos momentos depois já eu lhe conquistara uma entrevista exclusiva para as revistas nacionais.

A dor de cabeça começou a amainar, não sei se por efeito do comprimido ou se por causa dos entusiastas pensamentos que me varreram o tédio. Olhei para a minha mão, ao volante, e perguntei-me se as coisas belas que conquistamos serão produtos da sorte ou das nossas próprias mãos. "O que semeamos é trabalho nosso, mas talvez só a sorte dite aquilo que colhemos", pensei.

O saxofone soava de novo quando me chegou o convite para ir ao Daytona October bike week e andar na mota mais linda do mundo. Há frutos que brotam depressa.

Ana Amorim Dias

Faz-me aí uma destas!

Faz-me aí uma destas

Dizem que uma mota nunca de empresta. Dizem que fazê-lo é como emprestar a mulher que se ama. Não se faz. Nunca.

Tenho ouvido várias discussões sobre "a mota". A mota das nossas vidas, entenda-se. Aquela que é o sonho, por vezes tornado real; o ideal de prazer supremo. Aquela que nunca mais queremos largar e que, caso tenhamos que o fazer, fica na nossa memória para sempre como "the one and only" capaz de nos levar aos céus.
Há os motards do "qualquer uma serve", que se assemelham a quem se deita com qualquer mulher que os queira, pelo simples prazer de uma noite de sexo. E há os outros, que vão guiando as que podem, sempre à espera daquele amor perfeito e eterno. Não sei qual das utopias é a maior. A mota de sonho ou a mulher de sonho? O amor de uma vida ou a mota de uma vida? Será que existe mesmo, tal quimera? Como posso eu saber? Sou apenas uma mulher. Ainda sem carta nem mota. Mas quando vi esta criação do Erik Vauth, fiquei a pensar no assunto. Se eu fosse um homem ia querer uma mulher assim, como esta mota, única, requintada, destilante de personalidade e carisma. Talvez, se um dia eu escrever um best seller tão perfeito como ela, possa ir a Miami dizer ao Erik: "olha pá, faz-me aí uma destas, mas em negro."

Ana Amorim Dias

Patéticos clandestinos

Patéticos clandestinos

Eu estava metida na minha bolha, numa mesita do Piratas, a carregar crónicas no blogue. Tinha posto os fones para ouvir música e me abstrair das notícias sobre os casos "Bes" e "Monte Branco", a insanidade de Gaza e o mau tempo na Europa. Mas o capitão, gesticulando, chamou-me a atenção para uma inusitada reportagem.

Olhei para os encapuçados senhores do PND Madeira e libertei-me dos fones. Comecei a rir com a figurinha desconjuntada do orador, perguntando-me como conseguia ele ler o manifesto através daqueles dois buracos oculares tão diminutos e de dúbia horizontalidade. As boinas e as luvas completavam o ridículo quadro visual, enquanto a sonoridade da proclamada "clandestinidade revolucionária" me deixou entregue a duas ou três reflexões.
Sempre senti justificada repulsa por quem quer demonstrar algo sem aceitar mostrar o seu rosto. Isso não é atitude de pessoa íntegra, construtiva, idónea a revolucionar o que quer que esteja mal. Lembro-me logo de grupitos como o kkk, a "santa" inquisição e tantos outros que, em nome de algo que nada justifica, cometeram e cometem injustificáveis ações. Cada um pode escolher os grupos a que adere, aquilo em que acredita e o que quer defender. O que não está certo é fazê-lo a mal. Ou sem mostrar a cara. Porque isso, mais que cobarde, é patético.

Ana Amorim Dias


Enviado do Writer

30.7.14

A origem da luz

A origem da luz

- É o que somos. Energia. Por isso, quando nos separamos da vida e do que somos, sentimo-nos vazios e sem cor.
- Sim, sim! - concordei entusiasticamente. - Podemos escolher constantemente em que energia queremos vibrar... Mas infelizmente a maior parte das pessoas não sabe disto.
- Preferem ser parte de um todo cinzento, sem luz nem cor. Preferem decidir "não ser" - disse ele, completando-me.
- Dá-me pena: há tantos que só respiram. Não vivem. Não sabem como se faz. Ou não se lembram. A minha missão é combater isso; é devolver a emoção, a ilusão, os sonhos e a intensidade, à vida de quem me lê.- deixei-me levar, num vertiginoso arrepio.
- Estou seguro que sim. Porque tu és pura vida e emoção. Aliás, confiei tanto em ti porque vi toda a tua luz no momento em que te conheci.
- Pergunto-me porque é que as pessoas confiam tão facilmente em mim...
- É algo mais do que despertar confiança, Ana. É pura luz!
- ... Também me pergunto de onde vem ela...
- A luz?
- Sim. Acho que se me vir como a criadora da minha luz, posso fazer com que ela se apague. Humildade! Sei que a humildade é crucial!
Riu-se.
- Não podes perder a luz porque é a tua essência. Mas sim, a humildade é fundamental.
- Repara: se eu acreditar que a luz nasce em mim, temo tornar-me em alguém que não gosto nem quero ser.
- Mas a luz nasce de ti. A luz és tu; somos todos. Só que a tua sabe acender muito bem a dos outros, percebes? Ela ilumina a luz interior de todos os que estão dispostos a descobrir quem são na realidade, fazendo com que deixem de andar a dormir e despertem finalmente para a vida, que é o maior dos presentes! Há que estar disposto a viver entregando luz e este processo já começou, para ti, porque és livre, alegre e destemida. A tristeza e o medo andam de mãos dadas, sabes? E aquele que guarde temor no coração, não pode ser livre e, portanto, não pode distribuir luz.

Há conversas que, de tão luminosas, quase nos encandeiam. E há pessoas tão iluminadas que chegamos a perguntar-nos: "estarei a falar com um Anjo?"

Ana Amorim Dias

Leva-me ao céu outra vez

Leva-me ao céu outra vez

Dei umas goladas na garrafa de iogurte líquido e fechei o frigorífico. O silêncio adormecido de todos embalou-me a saída. Os olhos pousaram no CD, sobre a mesa. Dos Expensive Soul. Nunca o tinha visto. "Ora tu vens comigo", decidi.

Estrada. Poucos quilómetros a fazer, mas tinha estrada. À frente e atrás. E o carro só para mim. Eu comigo. E estrada. Janelas abertas, com o fresco a entrar. A manhã toda minha. E estrada para andar.

"Somos metade pés e metade asas; uma parte no chão e uma parte no ar", pensei. Uma felicidade suprema apoderou-se de mim enquanto guiava. E ele cantava: "leva-me ao céu outra vez..." A explosão deu-se então. Deve ser isto o nirvana. Fora do tempo e do espaço. Fora de tudo e dentro de nada. Existir só, só na estrada, só em cem quilómetros de caminho que se gastam num instante. Só sem estar só porque só nunca está quem se nutre a si mesmo.

Regressei do limbo completamente carregada, cheia, feliz. Acho que me levei ao céu outra vez.

Ana Amorim Dias

Monopólio

Monopólio

Apeteceu-me abraçá-lo em plena passadeira da praia. O meu bebé de um metro e noventa desperta-me uns instintos de mimo tão fortes que às vezes nem me reconheça a mim mesma:
- Namora comigo, baby... - tentei o tal abraço.
- Ai mãe, "deslarga-me"!
"Hum... Vou usar um ás de trunfo!"
- Está bem, então conto só ao Janicas!
Dirigi-me ao pequeno e perguntei-lhe:
- Queres saber algumas técnicas infalíveis para conquistar as miúdas??
Saltou para perto de mim como uma lebre.
- Conta, conta!
- Primeiro fixam o "alvo", mas lembrem-se que a beleza não é tudo, nem sequer o mais importante.- comecei, dirigindo-me aos dois e prevendo o que viria em seguida.
Não me enganei. Ao fim da primeira frase já o Tomás estava bem agarradinho a mim para não perder pitada.
- Depois têm que marcar presença. Uma presença segura, mas subtil; têm que insinuar-se com graça, inteligência e humor.
Nesta altura lutavam já entre si para conseguir estar completamente agarrados aos meus abraços.
- E agora vem o mais importante, aquilo que não poderão nunca esquecer...
- O quê, mãe? O quê? - alguma sofreguidão se apoderou do momento.
- As mulheres precisam de sentir proteção e monopólio! É fundamental!
- Importas-te de explicar? É que esta eu não percebi...- reclamou o Tom.
- Sim, mãe, o que é isso do monopólio?- corroborou o a
João.
- Qualquer mulher precisa de sentir que é a única, a exclusiva, a monopolista dos vossos corações. Se conseguirem mostrar que não há, nem nunca houve ou haverá outra, estão garantidos, prometo.

Consegui fazer a passadeira toda com os dois agarrados a mim. O que não sei se conseguirei é mantê-los a salvo de todo o poder que as mulheres sempre sabem exercer sobre os homens.

Ana Amorim Dias

A professora de francês

A professora de francês

- Eu podia ficar cá contigo e ia daqui a uns dias, de avião...
- Acho que o teu pai ia ficar triste, Philippine. Mas eu adorava!

Perguntei-lhe, assim que chegou, se podia ser minha professora de francês por uns dias. Riu-se e aceitou de bom grado. Tal como imaginei, o meu francês evoluiu bastante e passei a tagarelar constantemente com ela, explicando minimamente bem tudo aquilo que não sabia conseguir expressar nessa língua. O que eu não podia prever (ou talvez pudesse) era o tamanho do vazio que a sua franzina presença deixou ao partir. Habituei-me a ouvi-la cantar pela casa e a pregar partidas constantes aos meus filhos e ao gato. Habituei-me à voz de menina e aos beijos ternos que a toda a hora me dava; ao "obligada" que dizia no gozo; à ajuda que me dava no bar, a fazer caipirinhas. Habituei-me à encantadora loucura natural e à carita de mimo que, por tudo e por nada, fazia.

Disse-me, há pouco, que estava triste por partir. Não era preciso tê-lo feito: a sua linguagem corporal não a deixava mentir. Prometi-lhe ir em breve a Paris, raptá-la por dia, para me mostrar os seu locais preferidos. Prometi-lhe que estaria aqui para ela quando lhe apetecesse apanhar o avião e vir ver-me. E depois ela foi-se, com a lagrimita no olho.


Olhei para todos os pequenos corações, sobre a mesa, com a palavra "love" inscrita. E fiquei a pensar na quantidade de amores que cabem nos nossos corações; na quantidade de seres que vão chegando e se vão instalando cá dentro. Dói um pouco quando partem mas essa dor, mais que dor, é um dom. O dom de saber fazer com que todos os amores caibam cá dentro.

Ana Amorim Dias