(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

15.11.12

Para tudo fazer sentido



    Não sei quando é que isto começou, mas agora dou por mim a falar com a televisão.  Sei que quem lá está dentro não me vai ouvir nem responder, mas não consigo calar-me.
  O telejornal de ontem, por exemplo, além de me despertar  algumas reflexões,  arrancou-me várias observações.  Tentei não me exaltar demasiado e  compreender todas as “partes”, o que só se consegue se nos colocarmos na posição dos outros. 
   Dizia o senhor Primeiro Ministro que os portugueses têm sido muito corajosos; que têm enfrentado as  dificuldades com muita coragem…   - Coragem?  - Perguntei à televisão. -Coragem??? Coragem é outra coisa: é enfrentar o perigo por vontade própria,  não é passar fome devido a decisões políticas  dolosas, nem ser roubado à descarada para pagar dívidas que não se pediu para contrair. O povo português não é corajoso, é mártir, percebe? – Perguntei-lhe sem que me ouvisse. Mas depois olhei-o melhor e senti pena. Não queria estar no seu lugar. Tenho a leve ideia de que quando se instalou no poleiro já o país estava a naufragar à mão de todos os anteriores galos. Inspirou-me pena porque me fez lembrar aqueles advogados que sabem estar a negar graves  factos provados e conviver com isso diariamente é coisa que  deve causar doenças gravíssimas.
  Depois passaram as imagens da carga polícial sobre os manifestantes. Para que aquilo fizesse sentido tratei de me colocar nos dois lados  da escadaria.  Imaginei-me na manifestação. Em certas situações, as manifestações, mais que um direito, transmutam-se quase num dever.  Mas caso eu lá estivesse não teria a cara tapada. Caso eu lá estivesse, jamais atiraria pedras ou ofenderia os mesmos agentes de autoridade com quem conto para viver segura num estado de direito!  Não são eles os culpados do estado da Nação, pelo contrário,  merecem toda a nossa simpatia e respeito.  Caso eu lá estivesse, as pessoas que animalescamente assim procederam,  apenas estariam a comprometer a minha presença. De qualquer forma louvo quem lá estava,  a manifestar-se em paz, e permaneceu, mesmo tendo  que correr perigos e testemunhar momentos desnecessários.
   De seguida, e perante as nervosas declarações do porta voz das forças policiais,  repeti o exercício e imaginei-me um deles. Aqui as dificuldades foram maiores porque é-me intrínsecamente inconcebível imaginar-me a pertencer a uma estrutura hierárquica daquele calibre (a menos que estivesse eu no topo, claro).   Além do mais, quando se ferve em pouca água, muito dificilmente nos conseguimos visualizar a suportar hora e meia de provocações e agressões sem poder reagir. Só de imaginar o que eles deviam estara a sentir, até fiquei  eu própria com ganas de dar umas bastonadas.
   Convenhamos:  por mais vontade que se possa ter de esganar uns quantos políticos, alguém com o seu juízo perfeito, se sentiria seguro se a autoridade se demitisse do seu papel?  Estamos a falar de nobres homens que, também eles sacrificados mártires, ainda colocam os seus corpos entre o enraivecido povo e a mais vil classe que a humanidade gerou, para assim conseguirmos  manter alguma esperança de , quando a economia reagir, ainda vir a encontrar uma sociedade… que faça algum sentido.

Ana Amorim Dias