(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

30.7.14

A origem da luz

A origem da luz

- É o que somos. Energia. Por isso, quando nos separamos da vida e do que somos, sentimo-nos vazios e sem cor.
- Sim, sim! - concordei entusiasticamente. - Podemos escolher constantemente em que energia queremos vibrar... Mas infelizmente a maior parte das pessoas não sabe disto.
- Preferem ser parte de um todo cinzento, sem luz nem cor. Preferem decidir "não ser" - disse ele, completando-me.
- Dá-me pena: há tantos que só respiram. Não vivem. Não sabem como se faz. Ou não se lembram. A minha missão é combater isso; é devolver a emoção, a ilusão, os sonhos e a intensidade, à vida de quem me lê.- deixei-me levar, num vertiginoso arrepio.
- Estou seguro que sim. Porque tu és pura vida e emoção. Aliás, confiei tanto em ti porque vi toda a tua luz no momento em que te conheci.
- Pergunto-me porque é que as pessoas confiam tão facilmente em mim...
- É algo mais do que despertar confiança, Ana. É pura luz!
- ... Também me pergunto de onde vem ela...
- A luz?
- Sim. Acho que se me vir como a criadora da minha luz, posso fazer com que ela se apague. Humildade! Sei que a humildade é crucial!
Riu-se.
- Não podes perder a luz porque é a tua essência. Mas sim, a humildade é fundamental.
- Repara: se eu acreditar que a luz nasce em mim, temo tornar-me em alguém que não gosto nem quero ser.
- Mas a luz nasce de ti. A luz és tu; somos todos. Só que a tua sabe acender muito bem a dos outros, percebes? Ela ilumina a luz interior de todos os que estão dispostos a descobrir quem são na realidade, fazendo com que deixem de andar a dormir e despertem finalmente para a vida, que é o maior dos presentes! Há que estar disposto a viver entregando luz e este processo já começou, para ti, porque és livre, alegre e destemida. A tristeza e o medo andam de mãos dadas, sabes? E aquele que guarde temor no coração, não pode ser livre e, portanto, não pode distribuir luz.

Há conversas que, de tão luminosas, quase nos encandeiam. E há pessoas tão iluminadas que chegamos a perguntar-nos: "estarei a falar com um Anjo?"

Ana Amorim Dias

Leva-me ao céu outra vez

Leva-me ao céu outra vez

Dei umas goladas na garrafa de iogurte líquido e fechei o frigorífico. O silêncio adormecido de todos embalou-me a saída. Os olhos pousaram no CD, sobre a mesa. Dos Expensive Soul. Nunca o tinha visto. "Ora tu vens comigo", decidi.

Estrada. Poucos quilómetros a fazer, mas tinha estrada. À frente e atrás. E o carro só para mim. Eu comigo. E estrada. Janelas abertas, com o fresco a entrar. A manhã toda minha. E estrada para andar.

"Somos metade pés e metade asas; uma parte no chão e uma parte no ar", pensei. Uma felicidade suprema apoderou-se de mim enquanto guiava. E ele cantava: "leva-me ao céu outra vez..." A explosão deu-se então. Deve ser isto o nirvana. Fora do tempo e do espaço. Fora de tudo e dentro de nada. Existir só, só na estrada, só em cem quilómetros de caminho que se gastam num instante. Só sem estar só porque só nunca está quem se nutre a si mesmo.

Regressei do limbo completamente carregada, cheia, feliz. Acho que me levei ao céu outra vez.

Ana Amorim Dias

Monopólio

Monopólio

Apeteceu-me abraçá-lo em plena passadeira da praia. O meu bebé de um metro e noventa desperta-me uns instintos de mimo tão fortes que às vezes nem me reconheça a mim mesma:
- Namora comigo, baby... - tentei o tal abraço.
- Ai mãe, "deslarga-me"!
"Hum... Vou usar um ás de trunfo!"
- Está bem, então conto só ao Janicas!
Dirigi-me ao pequeno e perguntei-lhe:
- Queres saber algumas técnicas infalíveis para conquistar as miúdas??
Saltou para perto de mim como uma lebre.
- Conta, conta!
- Primeiro fixam o "alvo", mas lembrem-se que a beleza não é tudo, nem sequer o mais importante.- comecei, dirigindo-me aos dois e prevendo o que viria em seguida.
Não me enganei. Ao fim da primeira frase já o Tomás estava bem agarradinho a mim para não perder pitada.
- Depois têm que marcar presença. Uma presença segura, mas subtil; têm que insinuar-se com graça, inteligência e humor.
Nesta altura lutavam já entre si para conseguir estar completamente agarrados aos meus abraços.
- E agora vem o mais importante, aquilo que não poderão nunca esquecer...
- O quê, mãe? O quê? - alguma sofreguidão se apoderou do momento.
- As mulheres precisam de sentir proteção e monopólio! É fundamental!
- Importas-te de explicar? É que esta eu não percebi...- reclamou o Tom.
- Sim, mãe, o que é isso do monopólio?- corroborou o a
João.
- Qualquer mulher precisa de sentir que é a única, a exclusiva, a monopolista dos vossos corações. Se conseguirem mostrar que não há, nem nunca houve ou haverá outra, estão garantidos, prometo.

Consegui fazer a passadeira toda com os dois agarrados a mim. O que não sei se conseguirei é mantê-los a salvo de todo o poder que as mulheres sempre sabem exercer sobre os homens.

Ana Amorim Dias

A professora de francês

A professora de francês

- Eu podia ficar cá contigo e ia daqui a uns dias, de avião...
- Acho que o teu pai ia ficar triste, Philippine. Mas eu adorava!

Perguntei-lhe, assim que chegou, se podia ser minha professora de francês por uns dias. Riu-se e aceitou de bom grado. Tal como imaginei, o meu francês evoluiu bastante e passei a tagarelar constantemente com ela, explicando minimamente bem tudo aquilo que não sabia conseguir expressar nessa língua. O que eu não podia prever (ou talvez pudesse) era o tamanho do vazio que a sua franzina presença deixou ao partir. Habituei-me a ouvi-la cantar pela casa e a pregar partidas constantes aos meus filhos e ao gato. Habituei-me à voz de menina e aos beijos ternos que a toda a hora me dava; ao "obligada" que dizia no gozo; à ajuda que me dava no bar, a fazer caipirinhas. Habituei-me à encantadora loucura natural e à carita de mimo que, por tudo e por nada, fazia.

Disse-me, há pouco, que estava triste por partir. Não era preciso tê-lo feito: a sua linguagem corporal não a deixava mentir. Prometi-lhe ir em breve a Paris, raptá-la por dia, para me mostrar os seu locais preferidos. Prometi-lhe que estaria aqui para ela quando lhe apetecesse apanhar o avião e vir ver-me. E depois ela foi-se, com a lagrimita no olho.


Olhei para todos os pequenos corações, sobre a mesa, com a palavra "love" inscrita. E fiquei a pensar na quantidade de amores que cabem nos nossos corações; na quantidade de seres que vão chegando e se vão instalando cá dentro. Dói um pouco quando partem mas essa dor, mais que dor, é um dom. O dom de saber fazer com que todos os amores caibam cá dentro.

Ana Amorim Dias

Selvagens

Selvagens

Há mais de uma semana que não começava o dia a escrever. O que existe na manhã que faz dela uma incondicional aliada da produtividade? O que transforma a confusão das ruidosas esplanadas numa abundante nascente de ideias ordeiras? Não tenho a resposta. Talvez a obtenha daqui a instantes, devolvida pelas palavras que se plasmarão no ecrã. Talvez entenda também porque me disse ele aquilo...

- A culpa é tua...
- Culpa? De quê?
- De não saber regressar a uma vida normal. Receio não poder regressar nunca a uma existência normal, sabes?
A princípio pensei que estivesse a usar de uma boa quantidade de humor, misturada com aquele tipo de ironia gozona que quer deixar os outros confusos. Depois percebi que talvez estivesse a falar a sério, mas sem perceber ainda que o que dizia era falso.
- Acho que não te estou a entender: não podes voltar a um quotidiano regrado, a um emprego, a dias sempre iguais?
- Sim. É isso. Mostraste-me a todos como um herói. Obrigaste-me a ver-me assim, como um homem que vive coisas incríveis numa existência demasiado afastada de tudo o que é normal. Temo transformar-me num selvagem, num eremita, num aventureiro cujas experiências não serão entendidas por ninguém por serem tão alheadas de toda a normalidade que são capazes de entender.
- Estás a dizer que não sabes voltar à formatada vida de um escritório imobiliário e que a responsabilidade é minha?
- Sim, é isso que estou a dizer.

Acordei a pensar no que disse. Percebendo que crê de facto naquilo que afirmou. Acordei a perguntar-me até que ponto é fácil culpar os outros por opções que não aceitamos abraçar como o resultado acabado daquilo que a nossa alma pede. Será possível determinar tão violentamente as escolhas alheias? Será que temos a responsabilidade total das marcas indeléveis que vamos deixando nos outros? Até que ponto já influenciei as escolhas de vida de tanta gente com quem já me cruzei? Devemos ser mais contidos nas influências que a nossa passagem pode deixar? Saberia eu viver assim, sem marcar?

Ele pode não o saber ainda mas as escolhas são sempre de quem as faz, nunca de quem mostra o caminho através de tantos sinais diferentes. Se se sente selvagem, alienado, apartado de qualquer hipótese de uma existência comum, é porque o seu destino assim o quer. Tudo o que podemos ser é um espelho para os outros. Um espelho capaz de os fazer ver-se melhor. E quanto às nossas próprias escolhas, essas apenas de nós dependem.

A esplanada continua ruidosa e eu vou regressar à casa cheia que, por esta hora, já deve estar a escutar o despertar de muitas vidas selvagens e pouco dadas à normalidade.

Ana Amorim Dias


Enviado do Writer


Enviada do meu iPad

As ideias do capitão

As ideias do capitão

Tenho a leve suspeita de que a intensa agitação ajuda à prolixidade criativa. Só isso pode explicar a quantidade de novas ideias e projetos que me pipocam na vontade. Ou então é do calor.

- Já várias pessoas me perguntaram porque é que não escreves um livro sobre o Piratas...
- A sério?
- Sim. Já pensaste? A quantidade de histórias que o Bar acumulou ao longo destes vinte e dois anos?
Sorri. Como sorri quem recorda, num guloso instante, tantas memórias diferentes.
- E como se chamaria? "Crónicas de um bar de loucos"?
Riu-se.
- "Piratas da Rua das Flores", o que achas?
- Não soa mal.

Fiquei a pensar na sugestão do "Capitão", como carinhosamente lhe chamo quando o vejo agarrado ao leme deste já provecto navio. "Talvez não seja má ideia, mas já tenho tantas na calha..."
A quantidade de temas, ideias, conceitos e estruturas das narrativas vindouras não se prende nem com o calor nem com a agitação dos meus dias, resulta da sorte imensa de poder viver tantas estórias e de ter uma voz para contá-las.

Ana Amorim Dias

Fugi

Fugi

Cheirava a sardinhas quando fugi de casa. Bem sei: nem se foge de casa aos quarenta nem eu sou pessoa para fugir do que quer que seja. Mas são catorze cadeiras à mesa. Catorze pessoas em casa e nem um minuto para mim. O Ernest e o Fiódor já fugiram, escaparam-se à minha frente com uma tal velocidade que não lhes encontro os livros. Talvez não queiram ser lidos assim, com pouca atenção e baixa energia. Eles lá sabem. Como de costume aparecerão dentro de dias, ou de horas, quem sabe, quando tudo estiver mais calmo.
Não fugi para longe, apenas para o sítio mais silencioso e próximo de que me lembrei de repente. Se calhar nem fugi, vim apenas ver-me, sentir-me, cheirar-me. Vim apenas mergulhar em mim e recompor-me.

- Nós amamos-te!
O Ricardo reparou na iminente evasão e disse-me as breves palavras antes de eu arrancar com o carro.
Acho que vou regressar. Gosto de sardinhas e de estar perto de quem me ama.

Ana Amorim Dias

Os bons vizinhos

Os bons vizinhos

Primeiro os olhos humedeceram-se. Depois foram-se formando as lágrimas. Tentei impedir-me mas não encontrei razões para o fazer, e então comecei a chorar.
Assim que ele percebeu o que se estava a passar, pegou no comando da televisão e mudou do noticiário para um canal de música.
- Pronto, não vamos ver mais estas coisas más, está bem?
Fiquei, por momentos, mergulhada num misto de indignação e carinho: como pode tratar-me como uma miúda de quatro anos? Não é por mudar de canal que os problemas do mundo se evaporam nem a impotência triste nos desampara o peito. Mas acho sempre ternurenta a forma como me quer proteger das lágrimas, tentando oferecer-me um mundo mais musicado e colorido.

Na Palestina continua tudo na mesma. Toda a vida me lembro de ter sido assim. Há milénios que é assim e nunca mais aprendem.

Ao fim da tarde, antes de ir trabalhar, costumo sentar-me em silêncio no alpendre. E desde há algum tempo que o faço com a companhia invisível dos melhores vizinhos do mundo. A casa deles fica a uns quatrocentos metros da minha, talvez mais. Vejo-a bem ao fundo, por detrás das frondosas copas de muitos pinheiros mansos. E não os saberia reconhecer na rua porque acho que nunca os vi. Mas todos os dias, ao fim da tarde, durante o meu breve momento meditativo, fazem soar o mais encantador jazz e músicas dos anos vinte que me transportam no tempo para aventuras imaginadas que talvez um dia vos escreva. Ontem à tarde, ouvindo as encantadoras músicas que me fazem sentir a sua presença, pensei em tudo o que é necessário à boa vizinhança; perguntei-me se algum dia milhares de anos de inferno poderão ser substituídos por convivências harmónicas, discretas, pacíficas...

Espero que nunca me faltem as lágrimas para chorar os horrores que não sei combater. E espero que nunca me falhe a sensibilidade para saber sentir e agradecer as presenças invisíveis da harmonia humana.

Ana Amorim Dias

Uma noite com eles

Uma noite com eles

Ficamos a pensar que não lhes damos toda a atenção que merecem. Estão mesmo ao nosso lado mas temos saudades porque andamos demasiado ocupados a fazer mil coisas importantes, esquecendo que a mais essencial de todas é criar-lhes memórias felizes e (porque não?) eternas.

Ontem não trabalhei. Cheguei à Quinta às nove da noite e perguntei aos cinco o que queriam fazer. Eu estava ali inteiramente para eles. Perante a anarquia que brotava das diferentes vontades, usei a voz de ditadora, que tão facilmente me sai, e mandei-os calçar sapatos: dentro de cinco minutos partiríamos numa expedição noturna pelos campos.

- Au, piquei-me!
- Cuidado pá, largaste-me esse ramo mesmo na cara!
- Meninos, desliguem os telemóveis todos: caminharemos na escuridão para os nossos olhos se adaptarem!
Hesitaram mas acederam.
Parámos junto a um lago, mais ou menos distante, e ficámos a contar histórias baixinho, a ouvir o coaxar dos sapos e a observar estrelas, aviões e satélites.
- HUÁÁÁHHHH!!!
De vez em quando, um de nós escondia-se atrás de alguma moita e saltava, com um grito lancinante e a luz do telefone a iluminar o rosto, de baixo para cima. Ninguém se assustava porque todos queríamos ser os assustadores.
Regressámos a cantar o "Happy", entre tropeções e piadas tontas. Regressámos felizes. Cheios. Sintonizados uns com os outros.

Não sei se a tal memória feliz e eterna se agarrou às suas almas de criança. Sei que, com um simples passeio noturno, a minha ficou bem mais rica.

Ana Amorim Dias
(22-07-2014)

Despertador para o humor

Despertador para o humor

Ligou-me muito antes da hora habitual. Atendi enquanto punha a massa a cozer.
- Estou, filha?
- Hi mami!!
- Então? Estás bem?
Percebi logo a preocupação: quase sete da tarde e a crónica por sair.
- Tirando o mau humor que não me largou todo o dia e a vontade de fugir de casa durante um ou dois dias...
A minha mãe sabe o quanto gosto de ter a casa cheia e o quanto adoro todos os que cá estão de férias, mas também conhece bem a minha convicta necessidade de solidão.
- Ohhh, coitadinha. Tenta descansar um bocado. Mas hoje não escreveste, pois não?
- Para quê? Só iam sair palavrões embrulhados em má energia.
- Pois, assim é melhor estares quieta.
Deu-me mais um bocado de mimo e desligou.

Esta manhã já tinha escrito, mas a qualidade era tão baixa e a energia tão fraca que me remeti ao silêncio, esperando a inspiração feliz que sempre me explode no peito aquando da criação. Nada. Durante todo o dia nada me chegou.

Cortei a cebola para o refogado da carne. Liguei a aparelhagem. Uma versão chillout do "One more time" começou a desanuviar o ambiente. Enchi de Lambrusco um copo. Abri as janelas em par. E depois, enquanto fazia o jantar, a felicidade chegou. Tão absoluta e intensa como sempre, em forma de inspiração.

Costumo dizer que o bom humor é uma opção consciente. Que mesmo que despertemos mal dispostos todos os dias, devíamos programar o despertador para tocar de novo, meia hora mais tarde, recordando-nos do imperativo exercício de nos sintonizarmos com a boa energia. Era este o tema que abordara esta manhã...

O jantar fez-se, saboroso e feliz. Só tive pena de ter perdido um dia quase inteiro por me ter esquecido de ouvir o toque do meu habitualmente fiável despertador para o humor.

Ana Amorim Dias
21-07-2014

Samuel e a repórter de

Samuel e a repórter de Madrid

Não me lembro como começou a conversa. Encetei-a com tanta gente, e de tantas formas diferentes, que me é impossível reproduzir-lhe o início. Mas o Samuel entrou-me diretamente no coração, num daqueles momentos em que sentimos toda a intensidade com que a conexão se está a estabelecer. Mais do que a empatia, senti a química das almas. Senti-a a cada nova frase. Dele e minha. E a cada brilhar de olhos, como sempre acontece a quem sabe que o interlocutor está a entender mais do que tudo. A troca de ideias girou, tão veloz como a emoção, em torno de literatura e filosofias de vida. O Samuel também escreve. Não fiquei admirada. Ficarei apenas à espera que me mande escritos que nunca mostrou a ninguém.

Podemos ser completamente facciosos nos balanços que fazemos daquilo que nos acontece. Tudo depende do nosso humor, do nosso caráter e, claramente, da ordem existente na nossa escala de valores. Poderia concluir que a minha participação na Concentração de Faro, durante estes três dias de Julho do ano de 2014, foi um redundante fracasso. Colossal e avassalador, posso acrescentar, se analisar os fatos à luz de fatores económicos. As pessoas preferem crepes, cervejas e T-shirts a livros. É normal. Contudo sinto tudo de uma maneira diferente: estes três dias deram-me sensações, conhecimentos e inspiração; trouxeram boa gente nova ao meu círculo relacional; e fizeram-me entender o rumo criativo que há algum tempo buscava...

Da mesma forma que não recordo como começou a conversa com o encantador Samuel, também não me lembro do nome da repórter de Madrid. Pequenina, fresca, com o cabelo brilhante e um rosto de boneca que se acendia em franqueza. Conectámos, igualmente, em escassos segundos e falámos longo tempo. Acabei por lhe explicar como serão os meus próximos livros: a estrutura e tema de cada um deles e o fio condutor que os ligará entre si. Fui entendendo finalmente tudo, à medida que lhe falava, como se a atenção que me estava a dar fosse a chave do cofre das minhas boas ideias.

Os balanços que fazemos, das ocorrências da vida, dependem daquilo que somos. Perante resultados iguais, podemos dizer que "foi muito positivo" ou "foi muito negativo", consoante privilegiemos os valores materiais ou os imateriais. A verdade é que no fim, para fazer bem qualquer balanço, tudo recai na maneira como focamos a nossa visão interior.

Ana Amorim Dias

Confiança

Confiança

A meia lua minguante erguia-se no horizonte, coroando o meu caminho. A via do infante, deserta, estendia-se sob mim deixando-me a sensação de estar sozinha no mundo. Que delicioso silêncio! Entrecortava-o apenas o suave roncar do Eric, adormecido no banco de trás, e a banda sonora com que o rádio acompanhava a minha escrita mental.

Ao entrar para o carro, a Philippine, sentada ao meu lado, comentou que tinha sono mas que conversaria comigo para que eu não adormecesse.
- Ne t'inquiètes pas. Je n'ai pas sommeil. - e garanti-lhe que, caso o sono me chegasse, a acordaria para me manter desperta.
- Tu me promets?
- Oui, bien sûr.
Três segundos depois, quando olhei para o seu rosto de menina, já ela se entregara a um sono tranquilo. Sorri-lhe na mesma, embevecida pelos votos de confiança que os belos adormecidos depositavam em mim. Depois fiquei a saborear o silêncio, entregue a pensamentos serenos.

Ele era belga. E entrou a matar:
- Você é famosa?
Uma gargalhada de boca aberta e cabeça atirada para trás, foi a minha primeira resposta.
- Não. De todo. Mas isso não desvirtua o meu trabalho. - pisquei-lhe o olho.
Falámos um bom bocado e depois ele partiu. Regressou segundos mais tarde, olhou para os livros e para mim, sentada sobre a mota, e pediu:
- Pode escrever-me aqui o seu nome?
Assenti com um olhar curioso.
- Assim, quando você for famosa, vou poder dizer que a conheci!

Questionei a Lua, altaneira, à minha frente, se faria sentido estar a fazer as coisas assim. Apenas três livros partiram durante um dia inteiro. Perguntei-me o que prefiro: ter um produto rentável, como tantos, mas medíocre e igual a milhares de outros, ou ter a certeza que criei algo realmente bom e que o meu ofício-arte se vai refinando a cada novo texto? Respondi-me simplesmente que ainda não escrevo tão bem quanto posso vir a escrever e que todas estas experiências de humildade e intensidade são apenas o caminho mais certo para a construção da escritora.

Fixei a Lua de novo. Sorri-lhe e brindei à vida, com todas as suas lições. Percebi que confio tanto em mim como quem me fala da fama vindoura ou como quem adormece num sono profundo, confiando, nas minhas promessas, a sua vida.

Ana Amorim Dias

Livros "Euróticos"

Livros "Euróticos"

Mesmo antes de saírmos da concentração, já bem tarde, fui interpelada por uma senhora que fez questão de orientar o rumo temático da minha criação literária.
- Você tem que escrever é livros que toda a gente queira ler, sabe? Já leu as "cinquenta sombras de Grey"?
Expliquei-lhe delicadamente que tenho pouco tempo para ler e que apenas me permito dar atenção aos grandes autores, os únicos capazes de me melhorar o estilo e a forma.
- Olhe, mas nós, as mulheres normais, gostamos da fantasia e de fugir à rotina com livros assim! É claro que ninguém consegue fazer tanto sexo como a senhora do livro faz, mas lá que aquilo nos distrai, distrai!
- Vou pensar nisso, em criar uma super heroína do sexo, também.- decidi fazê-la feliz por uns instantes.
- Sim, sim, faça isso. Toda gente quer ler é livros "euróticos", são os melhores!

Depois de controlar firmemente as gargalhadas que queriam soltar-se, e de me despedir da solícita senhora, fiquei a pensar no que haveria a dizer sobre o erotismo na Europa. Paralelamente, abordar, por exemplo, a forma como a Alemanha se monta sobre Portugal não me pareceu muito apelativo.
Meditando um pouco mais seriamente sobre a questão, percebi porque é que nunca me deu para o "eurotismo" literário: a minha escrita tem sempre tanto de mim em si que todos assumiriam que as cambalhotas descritas seriam as minhas. No entanto, vendo bem as coisas, que importa que confundam erotismo com "eu-rotismo"? Pensarei no assunto e quem sabe um dia escreva também um romance "eurótico".

Ana Amorim Dias

Primeira concentração

Primeira concentração

Vinha esta manhã para a concentração de motas de Faro com a Philippine, a filha do Eric, e combinámos, entre gargalhadas, fingir gostar muito do ambiente que vamos viver nos próximos dias.
A voluntariosa jovem parisiense, dona de um carácter tão bem disposto como o do seu progenitor, assentiu, com uma careta cómica, nesta combinação. Comentavamos que gostamos ambas de ambientes mais requintados e menos ruidosos e poeirentos, mas estabelecemos o pacto de não torcer o nariz a nada para manter o globetrotter feliz.

O Ralph abraçou-nos com a intensidade do costume. A Catarina ficou louca quando nos viu de novo. E o Luís Braga... bem, esse conheci-o hoje mas vai ficar-me no coração. Nunca antes eu ou a Philippine tínhamos estado numa concentração motard. Fazíamos ideia do íamos encontrar, é certo, mas o conceito do que nunca antes se viveu em nada se compara com a magnitude das vivências. A extrema organização, a imensa quantidade de gente, a intensidade da música, a energia alegre e a beleza de motas que jamais sequer em revistas eu vi, tudo isto é um encantador mundo novo. Por isto e por tudo o resto, ou muito me engano ou nem eu nem ela iremos ter grande dificuldade em, mais que manter o nosso secreto pacto, adorar realmente cá estar.

Ana Amorim Dias

Calçar as luvas de novo

Calçar as luvas de novo

Bati com a porta do carro. Com a de casa fiz o mesmo. Atirei o capacete, o blusão e as luvas para cima do sofá mais próximo. Vinha a ferver. Ia mergulhar na piscina quando chegou a mensagem: "Estou perdido entre Castro Marim e Tavira." Pedi-lhe para procurar alguma toponímia. "São Bartolomeu", respondeu. Disse-lhe que em cinco minutos estaria lá para lhe indicar o caminho da Quinta.
"Raios partam! Uma hora depois de chumbar no exame de mota, chega o globetrotter motard para, dentro de dois dias, irmos para a concentração de Faro."

As palavras de apoio e consolo chegavam de todos os lados, mas os ferimentos do meu ego ainda estavam demasiado quentes para eu lhes sentir a verdadeira intensidade.
- Sabes? Prefiro que tenhas chumbado e que te prepares melhor! A estrada é demasiado perigosa para motards inexperientes... Motas potentes não são para alguém com apenas dezoito horas de duas rodas numa vida inteira! - explicava-me o Eric, intercalando os conselhos com histórias de acidentes que o seu calo permitiu evitar.
O pior foi à noite. A birra que se adensou ao longo de toda a tarde e noite, rebentou, já de madrugada, numa pluviosa tempestade.
- Mas tu estás a chorar? - perguntou o Ricardo quando chegou à cama. E a questão transformou as silenciosas lágrimas naquela convicta choradeira infantil que, entrecortada em soluços, até me deixou de nariz entupido.
Ele começou a rir.
- Oh pá, tu és tão mimada e fofinha!!!
O choro, não sei como, conseguiu piorar.
- E tu ris-te?!??
- Só me estou a rir porque desejo que os teus "grandes" problemas sejam sempre como este.
Chorei mais um bocado, com a ferida do ego a doer mais a frio, e acabei por adormecer.

Sete e meia da manhã. Não conseguia dormir. Decidi pegar na prancha e ir para as ondas. Se calhar estes dois motards, que menosprezaram o meu profundo desgosto, têm ambos razão. Que todos os meus problemas tenham sempre este calibre. E que os vindouros meses me brindem com muita experiência.
Ainda com o biquini a pingar, fui calçar de novo as luvas. Só pelo prazer de as ter nas mãos. "Ainda nas mãos hei-de ter os domínios que me faltam."

Ana Amorim Dias

O que nunca me ensinaste

O que nunca me ensinaste

- Continue, continue!
Regressei à resposta que lhes estava a dar, exatamente onde a tinha deixado. Ao vê-lo a retomar a conversa com quem estava ao seu lado, voltei a calar-me.
- Prossiga, então!?
- Para quê? Ninguém me está a ouvir!
Corria o mês de Julho do ano de 1995 e eu chumbei naquela cadeira, tendo que a deixar para Setembro. Foi a primeira e única vez que provei de verdade o humilhante travo da derrota.

Mais tarde, quando lavada em lágrimas te liguei, a carpir as dores do falhanço, proferiste a única resposta de consolo que alguma vez tiveste que dar-me: "Anutchka!! Pára imediatamente antes que eu me zangue contigo! Que mal faz chumbar de vez em quando? É normal!" Depois riste-te da minha birra inconsolável e deste-me mimos ao longe.
Costumavas dizer "Lá enganaste mais uns!" de cada vez que eu trazia uma nova cadeira feita e mais um ano passado, lembraste? Costumavas nunca te preocupar porque sabias que eu não ia falhar e, se acaso falhasse, lá estarias, com o teu vozeirão patriarca, para me fazer ver a patetice da magnitude que eu conferiria àquela dor. Só o fizeste dessa vez. Não foi preciso mais. Talvez por isso eu nunca tenha aprendido como se falha.
Habituei-me a ver tanta admiração, pai, no reflexo que a minha imagem devolvia através do teu olhar, que a passei a procurar eternamente no meu próprio rosto e no conceito que tenho de mim. Habituaste-me mal por me veres sempre como uma vencedora em potência, aquela que te fazia sorrir por te saber fazer frente, aquela que te enchia de orgulho. Um orgulho tão grande que ainda hoje o sinto... É por isso que sei que falhaste em ensinar-me como se falha.

Acabo de chegar, pai. Fui fazer o exame prático de mota. Levei-te atrás, agarradinho a mim. Levei-te a pulsar-me nas veias e a bater-me no coração. Levei-te dentro. Mas sabes, desta vez falhei de novo, só que agora, ou muito me engano, ou ainda estás bem a tempo de me ensinar como se falha...

Ana Amorim Dias

Na obra de uma vida inteira

Na obra de uma vida inteira

Num artigo de Lauren Martin, que não resisti a partilhar por aqui, pude ler, esta manhã, uma frase tremendamente bela: "Finding someone who reads is like dating a thousand souls." Ou seja: encontrar alguém que lê é como namorar mil almas. Defende a autora (apoiada, consta, por estudos científicos) que as pessoas que lêem são os melhores indivíduos por quem nos podemos apaixonar. Faz todo o sentido. Quem lê sabe-o. Vivemos tantas vidas e aventuras quantas as que conhecemos nas páginas que desfilam ante o nosso olhar pejado de encantamento. Absorvemos sabedoria e novas visões do mundo e da humanidade, a cada palavra, frase, parágrafo...
Ler enriquece tanto quanto viajar, sentir e viver. Intensamente. Com verdade. Daí que os meus eternos heróis sempre tenham sido os escritores. Esses que, desde a infância, me formaram como pais, como mestres, e me deram tanto do que carrego em mim.
Ler é uma opção de construção pessoal vivida através de um prazer seguro. Ler é a revolução constante que nos agita a mente e as emoções; uma atividade que nos propulsiona a vontade de partir e experimentar, estoicamente, toda a intensidade da existência. Viver ao lado de alguém que lê é uma benção, sem dúvida. Mas explicar o quão sublime é viver num corpo habitado por uma alma escritora, nunca caberia num pequeno texto. Isso apenas pode, eventualmente, ficar plasmado na obra de uma vida inteira.

Ana Amorim Dias

XL

XL

- Na Zara não se encontra roupa: o XS é enorme!
Olhei para as duas miúdas, na mesa ao lado da minha, e tirei-lhes as medidas. "Ora aqui está uma coisa que jamais direi..."
Acho que nunca usei o XS. Nem em criança. Para alguém que nasceu com cinco quilos e meio e começou a vestir, logo nos primeiros dias, roupitas para seis meses, o XS não poderia ser opção.

Não é que este assunto tenha grande importância ou seja apto a produzir brilhantes conclusões filosóficas, mas acabei por me ver a braços com algumas reflexões: "Será que o tamanho da roupa que usamos define quem somos e condiciona a forma como agimos?"; "Poderemos ser estigmatizados como pessoas XS, M ou XXL?" Diz-me a experiência de vida que as pessoas mais fortes são tendencialmente mais expansivas e simpáticas, mas será que se pode tirar daqui alguma equação infalível? Não faço ideia. O que sei é que há pessoas que se aceitam como são e outras que lutam incessantemente por se transformar naquilo que jamais poderão ser. É importante que nos tentemos melhorar, sem dúvida, sobretudo interiormente, mas convenhamos: quem nasce XL, sê-lo-á por toda a vida!

Ana Amorim Dias

O beijo-trovão

O beijo-trovão

Arrisco demasiado ao escrever sobre ele. Já me fez saber que considera justo que lhe pague cinquenta euros por cada crónica que me inspirou a escrever.
- Até nem é muito, mãe...- tentou convencer-me - As pessoas gostam, não gostam? Então!
Fiz as contas por alto. Cerca de oitenta crónicas a cinquenta euros...
- Teria que vender o meu carro, João. Não querias isso, pois não?
- Ok, então ficas-me a dever!

O fulaninho é de um encanto agridoce. Saboroso. Desafiante. Surpreendente. Tão depressa estamos a implicar, à mesa do pequeno almoço, como nos encontramos nas nossas "luas de mel" em que mais ninguém sabe entrar. Ora enfia sapos nos centros de mesa, ora faz pistoleiros mexicanos zombies (algo que nem a minha própria imaginação conseguiu jamais criar) com uma garrafa de água das pedras e uma tampa de tequilha. Imita patos com duas simples batatas fritas presas nos lábios e vê tutoriais no YouTube para construir bestas, arcos e barcos, com o que apanha por aí.

Mas ontem... Ontem passou por mim a correr, com a agitação do costume, e deu-me um beijo no braço. Daqueles instantâneos, instintivos, viscerais, poderosos. Daqueles beijos que, por mais que mil se repitam, em circunstâncias que tais, são por essência, irrepetíveis. Deu-me a eternidade numa fração de segundo. Deu-me puro amor gratuito daquele beijo-trovão.

Se tivesse mesmo que lhe pagar por cada escrito que me inspirou, fá-lo-ia sem hesitar. O prazer de o escrever valeria cada cêntimo. Como valerá em ternura, cada segundo dos meus dias em venha a ser capaz de recordar toda a intensidade do mais belo beijo-trovão que já alguma vez recebi.

Ana Amorim Dias

Cafés, plágios e inspirações

Cafés, plágios e inspirações

Mandei a meia-de-leite para trás. Não aprecio incomodar ninguém, mas se há coisa que não suporto são meias-de-leite clarinhas. Tem que ser escura e todos o sabem. Pelo menos quem me costuma atender nos cafés que frequento.
Com a chegada do verão e dos recém contratados jovens em todas as esplanadas, forço-me à melhor explicação do meu desejo: "uma meia de leite escura e não demasiado quente, por favor." Aos funcionários habituais nem preciso de dizer nada: se chego até às dez da manhã ou ao fim da tarde, basta o cumprimento sorridente e sabem o que fazer; se é depois de almoço, não há que enganar, é só o café.
Chegada a cafeína à mesa, em qualquer das suas fórmulas, é começar a escrever.

Ao ler "Paris é uma festa", descobri que o Ernest também se esquecia do "cafe au lait" após as primeiras goladas e, absorvido pela criação dos parágrafos sublimes, o deixava arrefecer até ao ponto do intragável. Depois, como me acontece constantemente, já não o bebia ou tinha que mandar vir outro. Também era escritor de rua, de cafés, de instintos e de irritações, quando alguma companhia lhe impunha a sua presença, não o deixando trabalhar. Não há nada mais horrível que estar na vertigem da criação e ser impedido de dar curso ao impetuoso fluir das ideias. Ou melhor, talvez haja....

Se há coisa que qualquer escritor deve temer com pavor, creio, é a eventualidade de o seu trabalho se assemelhar demasiado ao de qualquer outro. A possibilidade de ser considerado plagiador, nem que por uma vez ou quanto a uma frase que seja, é o único monstro suficientemente abominável para competir com aquele outro, o que devora a inspiração deixando atrás de si o vazio estéril das páginas em branco.
Por mais que o dom das palavras assista a quem do seu bailado faz o oxigênio que respira, destas duas bestas nenhum de nós pode dizer estar a salvo.
Percebi tudo isto quando me ocorreu poder vir a ser considerada plagiadora do "cafe au lait", eu que o tomo reverencial e necessitadamente desde os tempos que a minha memória alcança...

A meia de leite esfriou. Está imbebível. Mandarei vir outra, enquanto ladaínho o desejo de que ela sempre arrefeça por me perder na palavras mas que nunca, jamais, plágios ou desinspirações me assistam.

Ana Amorim Dias

Relatos de Paixão

Relatos de paixão

Tão ternurento! Contou-me detalhadamente como correra a sua tarde e noite. Fê-lo com tal pormenor que os pensamentos se me desprenderam dali e voaram momentaneamente não sei para onde.
- Então quer dizer que a festa foi altamente!- regressei.
- Mesmo, mãe! Adorei o dia.
- Olha lá, e miúdas? Não havia?
- Sim. Quatro.
- E?
- E quê?
- Nada. Estava aqui a pensar se já gostas de alguém...
- Qual quê, ainda é cedo, não?
- Olha desculpa lá, a primeira vez que me apaixonei tinha menos um ano que tu!
Ele ficou pensativo e eu embarquei em divagações:
- Oh páhh, Tomy, vai ser tão lindo ver-te a suspirar pelos cantos, feliz, nas nuvens, quando te apaixonares...
Olhei-o pelo canto do olho, ao meu lado no carro, e captei-lhe o semblante interrogativo.
- Como é que é, mãe, estar apaixonado?
Não fosse eu louca por estas conversas e ter-me-ia gelado o sangue! Como se explica eficientemente a um puto de treze anos o que é estar apaixonado? Optei pela abordagem mais bruta, sem florzinhas nem toques primaveris.
- Quando estiveres sabes logo e há outra coisa: se fores correspondido é maravilhoso mas, se não fores, experimentarás o inferno!
- Credo, mãe, isso não quero!
- A paixão não vem por se querer, palerma. É essa a magia. A paixão acontece sabe-se lá quando, porquê e por quem! Ela simplesmente chega e arrasa tudo o resto para segundo plano; os problemas deixam de existir... o resto do mundo deixa de existir! É sublime.
Por essa altura, com aqueles meus relatos da paixão, ele olhava-me completamente fascinado. Não sei se apavorado com a ideia de se apaixonar, ou desertinho pelo momento em que a sua vida ficará de pantanas.

Ana Amorim Dias

Reis do mundo

Reis do mundo

Olhei para os novos reis de Espanha, no noticiário da noite, e exclamei com sinceridade:
- Coitados!
- Coitados?? Porquê? Os reis têm grandes vidas!
- Pois eles que fiquem com elas. Não há melhor do que a vida de artista. Eles vivem dias formatados e nós inventamos os nossos. Quem é mais rei afinal?

Comecei a pensar bem nas causas do sono e cansaço que nos últimos dias me tem assolado. Não é por ter menos tempo para dormir, nem sequer por trabalhar mais, porque o trabalho, quase sempre amado e bem vindo, ao contrário de me cansar o espírito, sempre mo energizou. Voltas dadas à mente, encaixei a razão que me tem impedido de me sentir a rainha do meu mundo: o stress. Devo ser uma felizarda porque não estou habituada a lidar com o gajo. Costumo gozar-lhe na cara e desvalorizar todos os problemas com uma boa gargalhada, fértil de soluções e despreocupação. Até costumo aconselhar quem o sente que, com um bom par de orgasmos, um bocado de desporto e uns mergulhitos no mar, tudo se acaba por resolver.

"Reis do mundo são os que não têm stress, Ana", estou a repetir a mim mesma. Mas há alturas em que os métodos que proclamo para o seu combate não bastam. Há ocasiões em que temos que olhar lá para o fundo, para um futuro não muito distante, e visualizar o quanto, nessa altura, nos vão parecer patéticas as nossas ansiedades de agora.

Ana Amorim Dias


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O sono é lixado

O sono é lixado. É daquelas que coisas que se apodera de nós como um vírus e nos molda o temperamento da pior maneira possível. Ficamos toldados de mau feitio e possuídos por algo quase maléfico. Devia até ser obrigatório envergarmos ao peito uma sinalética própria para prevenir os incautos. Mas não é.
Resta-nos aprender a viver com as ocasiões em que, contra a nossa vontade, deambulamos como sonâmbulos, sem vontade própria a não ser a de carregarmos por fim no botão "off".
Vou sair agora. Tenho que ir trabalhar. Cheia, não, morta de sono. Isto devia ser proibido. Mas não é.

Ana Amorim Dias

Vai lá fazer o que achas que não consegues!

Vai lá fazer o que achas que não consegues!

Era quase dia do pai. A professora Alexandrino deu a cada um de nós uma caixa de fósforos com um espelho colado, e tintas para fazermos pinturas no mesmo. Tenho gravada na memória a imagem do vaidoso patinho amarelo, sobre um lago azul, iluminado por um sol radioso com uma nuvem branquinha à direita.
- Gostas? O meu está bonito?
Saiu-me um esgar porque não soube mentir. A pintura do meu colega era um borrão indecifrável. E foi nesse momento, devia ter eu uns sete anos, que pela primeira vez me vi confrontada com as diferenças de capacidades. Fiquei num misto de indignação e intriga: como é que ele podia pensar em oferecer aquilo ao pai e, ainda por cima, ter aquele sorriso no rosto? Porque é que a caixa de fósforos dele não estava perfeitinha como a minha? Na altura não me ocorreu que talvez ele não tivesse na sua casa, como eu tinha, paredes forradas de livros com gravuras das obras dos grandes mestres da pintura e da escultura. Não me ocorreu que talvez a arte não corresse nas veias de todos os corpos. Mas como podia eu sabê-lo? Era só uma miúda com vontade de criar.

Ao longo dos anos todos presenciamos incontáveis situações em que alguém proclama os famigerados "não sei" ou "não consigo". Muitas vezes somos nós próprios a fazê-lo. E porquê? Porque estas duas "fórmulas" nos desresponsabilizam muito mais do que aquelas outras que realmente nos travam a ação: o "não quero" ou o "dá muito trabalho".
A verdade é simples: todos trazemos, integradas de origem, as capacidades necessárias para fazer o que quer que seja. É inegável que há aptidões naturais específicas diferenciadas em cada indivíduo, sendo certo que se pode ter muito jeito para umas coisas e ser tremendamente trôpego em outras. Mas daí ao "não sou capaz" vai uma grande distância.
Ninguém nos pede que construamos sozinhos um foguetão para ir ao espaço ou que pintemos um quadro como se fossemos Picasso. O que devemos pedir, aos outros e a nós mesmos, é a capacidade de perceber que tudo se consegue...fazendo.

Ana Amorim Dias



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Geada e ovos estrelados

Geada e ovos estrelados

- Olha lá, não achas que o ar condicionado está a dar menos frio do que antes?
- Se calhar anda cansado...
E fui andando, para os meus afazeres, sem pensar mais no assunto.

- Antes!
- Não! Depois!
- Antes, porque é melhor antes!
- Prova-me que é melhor antes e não depois! É depois porque eu é que, até prova em contrário e invariavelmente, tenho razão!
Fiquei momentaneamente com a última palavra na discussão dos ovos estrelados com batatas fritas, que alguns convidados pediram em vez de um dos pratos quentes.
Moí-lhe a cabeça até ser como eu achei melhor. É isso que as mulheres fazem: moem. Moer é bom. Homem que não seja moído, mesmo nos assuntos mais triviais, pela sua cara-metade, perde uma das grandes belezas da vida. Nós fomos feitas para lhes moer o juízo. Até à exaustão. Até aos limites das suas enormes paciências. Existimos para ser ruins, impacientes e irritantes. E para, no fim, nos fartarmos de rir com as cómicas explosões dos seus nervos em franja. Moer é uma arte, um sadio desporto em que nos podemos tornar perfeitas e através do qual entendemos se quem nos tem nos merece...
- Ana! Antes!
Irritei-me tanto que fui à rua partir uma palete das obras contra o chão. Regressei com um sorriso. "Se calhar ele até tem uma pitada de razão." Mas o que me encantou de facto foi a pinta com que me enfrentou. Acho lindo aquele limbo entre a explosão e a calma; aquele profundo encher de pulmões que lhe traz a paciência extra para me aturar a ruindade gozona.

- Porra!- disse o Carlos quando a asa da geleira se partiu, espalhando o gelo pelo chão.
Ri-me e apressei-me a tirar uma foto, antes que alguém limpasse aquilo. Dirigi-me ao Ricardo, de fotografia em riste, e comentei:- o ar condicionado do salão recuperou de tal maneira que até caiu uma geada!
Ele riu-se, como sempre. E, como sempre também, eu fiz como bem entendi e os ovos estrelados foram servidos na altura que me pareceu indicada. Ele moeu-se. Mas ninguém me tira da ideia que os homens são para moer.

Ana Amorim Dias

Entre Piratas e flores

Entre Piratas e flores

Sete e meia da manhã. Tomo o meu café com leite na esplanada virada a Sul. O dia nasce quente e calmo. Promissor. Saboreio a paz e recordo a noite passada.

As miúdas do norte chegaram antes de mim. Assim que entrei no "Piratas", saltaram-me em cima com mimos e prendas. Provaram as tostas. Provaram os mojitos. Provaram os shots e comprovaram que falo a verdade quando ameaço "abadas" nos matraquilhos devido aos meus demolidores avançados.

- Anda Susana! Anda Susana! - Gritava a Paulina.
A Susana, essa, girava os bonecos num frenesim atarantado, perante a risada divertida dos meus filhos, já sobejamente habituados aos excêntricos amigos da mãe.
A gritaria e as gargalhadas soavam tão alto, mas tão alto, que o bar inteiro nos olhava, num misto de diversão e espanto.
- Calma meninas, ou o capitão põe-nos fora!

Sete e meia da manhã. Despedi-me da cama sem saber daqui a quantas horas a voltarei a abraçar. Não me importa. Nem um bocadinho. Saberei viver este dia, como todos os outros, com a sensação de ter sido abençoada...entre piratas e flores.

Ana Amorim Dias

Esta praga que vos rogo

Esta praga que vos rogo

Um simpático amigo, sabendo do meu gosto pelas pragas de Monte Gordo, fez-me chegar um bom punhado delas. Vieram à antiga, em correio de papel e estampa, entregues pelo carteiro. A acompanhá-las, uma breve mensagem escrita numa letra impecável.
Apressei-me a devorar o tesouro e a agradecer ao emissor.

Mas porque gosto eu tanto, afinal, destas exageradas pragas? Pensei um pouco e bastou. Gosto delas por isso mesmo: pelo excesso impetuoso e pelo cómico exagero. Elas são tão colossalmente excêntricas que me farto de rir ao ouvi-las:
"Havia de te dar uma dor de barriga tão grande que quanto mais corresses mais te doesse e quando parasses rebentasses."
"Havia de te dar uma febre tão alta que até te derretesse a fivela do cinto."
"Permita Deus que fiques tão magro, tão magro, que possas passar no buraco de uma agulha de braços abertos."
"Tantos raios e coriscos te caiam em cima quantos ovos são precisos para arrasar o forte de Castro Marim."
E por aí fora.

Fiquei com vontade de inventar uma praga também. Mas uma praga-benção, desculpem a contradição. É por isso esta, a praga que vos (nos) rogo: "Haviam de sentir um amor e uma alegria tão grandes, mas tão grandes, que tivessem que inundar todos com quem se cruzassem com esse amor e essa alegria!"

Acompanho a crónica com um tema que me parece adequado e aviso que deixo a praga lançada por tempo indeterminado!

Ana Amorim Dias



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Silêncio

Silêncio

Estava a acabar de pintar as unhas quando eles se sentaram na esplanada. Um casal jovem com dois filhos pequenos. As unhas foram secando enquanto eu lhes observava o silêncio.

Há mil silêncios diferentes. Há silêncios amigos, companheiros. Há silêncios que, numa troca de olhares, dizem mais do que um longo discurso. Há silêncios ternos; boémios; entendidos. Há silêncios artísticos, de comunhão plena...e que esplendorosos são! Há silêncios potentes e potenciadores. Há silêncios robustos, cimentados em telepáticas ondas que atravessaram os tempos. Há silêncios que são ruidosos de gargalhadas e gozo. Silêncios orgásmicos. Agradecidos. Brutais. Inesquecíveis.

E depois há os silêncios pesados, vazios de tudo, cortáveis a golpe de adagas que já não se embaínham. Silêncios empedrados num intransponível muro que se desistiu de derrubar.
Sim, o pior dos silêncios é o do olhar: o olhar que não mais se cruza nem fala.

As unhas secaram e eles ainda em silêncio. Num silêncio triste. Vazio. Sem nenhuma história a contar.

Ana Amorim Dias


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Segui viagem

Segui viagem

Assuntos a tratar em muito locais diferentes, fizeram-me andar o dia quase todo na estrada. Obras. Confusão. Rotundas mal respeitadas. Cedências de passagem não agradecidas. Mas não me queixo. Pelo contrário: não conheço melhor lugar para entrelaçar as tramas de enredos, filosofias e histórias, do que as estradas que percorro...

Cedi, de uma só vez, passagem a sete condutores engarrafados. Nem um me agradeceu. Percebi que quem gosta de restabelecer a boa ordem do universo não se move a agradecimentos. Segui viagem.

Obras no Algarve em pleno Verão. Por todos os lados. Como uma praga, daquelas que no Inverno jamais ocorrem. Recordei as palavras sábias de um amigo: "Não faz sentido andar a arrumar a casa quando as visitas já chegaram, isso deve ser feito antes!" Percebi que jamais entenderei esta tendência absurda. Segui viagem.

Levei o carro mais potente para, na confusão da 125, poder ultrapassar com maior rapidez e segurança. Ao fim de umas quantas ultrapassagens, percebi que haveria sempre algum um outro "caracol" a estorvar a vida aos demais. Ia para me irritar mas pensei: "Quero lá saber! Não é por me imporem um ritmo mais lento que me vão tirar o prazer de fazer o meu caminho!" E segui viagem.

Devo ter visto mais de uma centena de pessoas a circundar rotundas inteiras por fora, sem saberem (ou quererem) cumprir com as regras e a lógica. Continuei a fazê-las bem, como deve ser. "Pode ser que alguns prestem atenção e aprendam." Encolhi os ombros ao pensá-lo. E segui viagem.

Segui viagem com música. Com paz. Segui viagem a pensar e a divertir-me com os pensamentos. Segui viagem feliz.

E no fim, ao chegar, acreditando estar já cansada, vim deitar-me um pouco antes de ir trabalhar. Só depois é que me ocorreu que se calhar sou como um dínamo: o constante movimento, em vez de me cansar, energiza-me!

Agora talvez adormeça um pouco. Ou talvez me canse de descansar e me faça de novo ao caminho. Mas uma coisa é certa: qualquer que seja a opção... aí vou eu, de viagem!

Ana Amorim Dias

O erro

O erro

Eu já suspeitava que ela me fosse oferecer uma destas no meu aniversário. Mas quando a desembrulhei fiquei surpreendida na mesma. No dia seguinte a primeira coisa que fiz foi vesti-la.
- Diz-me, por favor, que não vais sair de casa assim...
Ao fim da manhã íamos a um evento oficial do Município.
- Tu estás louco? Eu tenho noção das coisas!
- Promete lá que não usas isso... Pelo menos aqui no concelho...
Não pude responder.

A opinião do Tomás foi diferente:
- Hiiii, "muita" gira, mãe!
Expliquei-lhe o "outro" significado. Fartou-se de rir.
- Vais mesmo vesti-la, não vais?
- Importas-te? - perguntei-lhe.
- Achas!? Tu sabes usar tudo o que vestes, mamã!
- E queres uma para ti? - provoquei.
- Deixa estar. Eu nunca iria dar-lhe uso.

Hoje pareceu-me um bom dia. Afinal vou para outro concelho e levo o carro comercial, o mais próximo que tenho para me sentir camionista. Bem, vamos ver o que acontece...
(...)

Usei a blusa pouco mais de meia hora. Andei a tratar das minhas coisas como se não fosse nada comigo, na mais pura, descarada e divertida inocência, a rir por dentro dos juízos de valor que deveriam estar a fazer sobre mim. Mas, de repente, apercebi-me da gravidade da situação! "Faz-me" está mal escrito: falta-lhe o hífen! Não posso usar uma blusinha com um erro ortográfico... A não ser talvez no estrangeiro.

Ana Amorim Dias

Hesitei antes de começar

Hesitei antes de começar. Porque é daquelas coisas que nem se imagina. Daquelas coisas que o pensamento são, se são quer permanecer, nem ao de leve aflora. É o acontecimento mais hediondo; o que devia ser impossível, pelas leis da natureza. Até quando acontece aos outros, mesmo que desconhecidos, a morte de um filho nos dói.

Faz este mês de Julho uma década que a minha amiga morreu. Era um ano mais nova que eu. A única maneira que encontrei para combater a revolta foi gerar em mim nova vida. Por esses dias fiz o João, que já desejava há uns tempos. Quis o irónico destino que confirmasse esta gravidez dias mais tarde... mesmo antes de ir para o funeral do meu sogro.

Se há coisa que a morte encerra, jamais me cansarei de dizê-lo, é uma lição de vida tremenda. É que a única forma de derrotar a morte, é ter todos os dias a consciência da preciosidade infinita de cada dia vivido junto aos que mais amamos.

Ana Amorim Dias


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Um café na esplanada

Um café na esplanada

Parámos à porta de uns quatro restaurantes diferentes.
- Este?
- Não.
- Este?
- Também não!
Quando ele já estava a perder a paciência comigo, percebi porque é que nenhum restaurante me agradava. O que eu queria mesmo era tomar o pequeno-almoço!

Na esplanada, entre sumos de laranja, cafés e croquetes, ele foi-se queixando de algumas coisas. Eu ouvi por pouco tempo: ainda estava no embalo etéreo de quem chega de viagem (por mais que as minhas viagens matinais se tenham limitado a livros e pequenos vídeos de expedições no YouTube).
- Repara bem nas tuas palavras!- repreendi-o.
- Hã?
- Vê como, nessas ninharias de que falas, estás a ser negativo e a apontar as tuas setas para baixo! Não percebes que assim estás a tornar a tua realidade má?
- ...Realmente...-

Mais tarde, junto ao mar, pediu-me um abraço e agradeceu:
- É que vocês, mulheres, vêm mais preparadas para o bem. Estão ligadas...- e, enquanto olhava para cima e fazia a mímica de um fio invisível que me une o cocuruto aos céus, coroou a ligação com um assobio.
Fiquei a pensar com que outras mulheres se dará ele, feliz por sermos todas tão sábias.
E depois lembrei-me de uma das leis do Kharma: "Sê e faz de ti mesmo aquilo que queres ter na tua vida."
Faz falta entendermos que, se queremos paz, temos que ser pacíficos; se queremos amor temos que ser amorosos; se queremos abundância temos que ser abundantes... O problema é que quase nunca paramos para pensar naquilo que a nossa alma precisa. E insistimos em tentar levá-la a comer a restaurantes caros quando tudo o que ela precisa é de um café na esplanada.

Ana Amorim Dias

O poder que levas dentro

O poder que levas dentro

- Mandei-te o artigo que escrevi para a Freeway magazine, sobre a viagem que fiz com os Fuck You Run.
- Espera, vou já ver!

Abri o mail e li tudo com a maior quantidade de avidez permitida em línguas que não a nossa. Da última vez que estivemos em Lisboa, em entrevistas, ele estava quase de partida para cinco dias em mota (saindo de Lyon e com roteiro desconhecido) na companhia de mais trinta e tal motards. Nas quatro páginas do artigo, vi e senti tanto quando pode ver e sentir quem não foi. Arrepiei-me e sorri ao deixar-me emocionar pela vibração que ele soube pôr nas palavras. E depois dei-lhe a minha opinião:
- Acabei agora de ler. Está muito, muito, bom. Estou orgulhosa de ti! És um "baroudeur" vibrante de arte literária, tenho que admitir... Sente-se mesmo a emoção!
- Ah ah ah! Ando a aprender contigo!
- E digo-te algo mais que nunca deverás esquecer: de cada vez que escreveres, que seja com toda a intensidade, como se pudesses voar. Fá-lo a sentir todo o poder que levas dentro. Tens que escrever sempre como se pudesses morrer feliz nesse momento, como se o peito te fosse explodir de emoção. Caso contrário não vai valer nada.

Momentos antes, ao ler algumas passagens de "Paris é uma festa", de Hemingway, acabara de povoar-me disso mesmo, daquilo que busco em todas as artes: a felicidade tranquila da aprendizagem a trespassar-me o corpo todo; o magma fervilhante da emoção a subir, subir, e a instalar-se na garganta; a vertigem de lágrimas perfeitas. Só a verdadeira literatura me provoca isto. Só os quadros perfeitos, as esculturas harmoniosas, os prédios geniais, as músicas da minha vida, têm essa capacidade de me desarrumar inteira, de me fazer viajar por dentro, tornando-me tão mais feliz e completa.

Talvez os escritores sintam demais por só assim o poderem ser. Talvez por isso eu cada vez mais abandone as leituras que não têm o ingrediente fulcral da intensidade, assemelhando-se a receitas áridas de sentidos mais profundos.

A curta conversa com o Eric também me invadiu de emoção. Como tantos outros, creio, temos o que é preciso para deixar marcas artísticas capazes de emocionar os outros. Gostava que fosse ao ponto de demonstrar a quem nos lê todo o poder que também vocês levam dentro.

Ana Amorim Dias

Canalizadoras sexy

Canalizadoras sexy

A cabeça estava toda enfiada debaixo do lava-loiça. "Agora é que ia bem uma selfie...", pensei. Estava tão bem arranjada quanto uma canalizadora inexperiente sabe estar. "Se calhar tirava os brincos... não se vão prender aqui nalgum sítio e magoar-me as orelhas..."
Nem selfie nem tirar brincos: aquele encantador mundo novo, que estava a descobrir a toque de alicate e chave inglesa, fez-me esquecer tudo o resto.

- Baby? Podes arranjar a torneira da cozinha?
- Claro.
E arranjou. Mas, dois dias depois, vertia de novo água em todas as direções.
- Baby?
- Diz.
- A torneira da cozinha...

Não é que ele não seja impecável a arranjar tudo e mais alguma coisa, mas, por alguma desconhecida razão, a torneira da cozinha estava a cair (literalmente) aos bocados. Por isso, quando a Sveta ameaçou fazer greve, decidi não esperar mais e tratar eu do assunto!

Tirei uma fotografia à torneira e fui comprar outra igual. O entusiasmo com que cheguei a casa desvaneceu-se um pouco ao verificar que a caixa não trazia instruções. "Bem, isto não pode ser assim tão difícil... duvido que seja preciso um mestrado para se trocar uma torneira." Olhei, pensei e agi. Dez minutos depois a nova torneira estava impecavelmente montada. Tudo à primeira tentativa. Senti-me feliz. E sexy. Acho sexy, gajas que trocam torneiras e baterias de carro sem pedir ajuda a ninguém.

Quando o Ricardo percebeu o que se tinha passado, ficou com um misto de orgulho e preocupação. Acho que até o entendo: canalizadoras sexy podem ser muito perigosas!

Ana Amorim Dias

Mundial da treta

Mundial da treta

Não canto o hino. Não sofro. Não me emociono. Num mundo em que a esfera rola sobre a relva de milhões, disputada por vinte e dois galifões-mercenários, não encontro qualquer encanto.
Não canto o hino. Não grito. Não altero o batimento cardíaco nem por frações de segundos. Devo ser algo robótica porque fico no absoluto vazio emocional. Esporadicamente levanto os olhos do que naquele momento me ocupa e vislumbro os pontinhos irrequietos sobre o fundo verde. Pergunto-me se sabem que são marionetas dos grandes senhores do dinheiro. Muitos saberão, estou segura, das mais conspurcadas formas.
Quando a pura paixão e o amor aos seus países fizer dos jogadores, guerreiros imortais, eu verei jogos e emocionar-me-ei. Enquanto a copa for um mundial da treta, de resultados orquestrados ao cheiro do dinheiro, quero mais é que as televisões ao meu redor se apaguem no doce silêncio.
No meio de tudo isto, a única coisa que poderia ser mesmo triste, caso o assunto tivesse a mais ínfima importância, seria perceber que há tantos milhões de pessoas cegas...

Ana Amorim Dias

A casa do sal

A Casa do Sal

Acho que o convite tinha chegado pelo correio, mas eu nem dei por ele. Veio outro, via facebook, e respondi que faria os possíveis por lá estar.
Marquei a minha presença na inauguração da Casa do Sal, no feriado de Castro Marim, mais pela elevada consideração que tenho por quem me fez o convite, do que por apreciar este género de evento.
Enquanto tentava escutar os discursos inaugurais, por entre as vozes das gentes, olhei para o mural por trás do guitarrista que estava a animar o momento.
- Olha, Ricardo... Aquelas palavras são minhas...
- Eu sei, já vi o teu nome por baixo!

Há uns tempos solicitaram-me um pequeno texto sobre o sal de Castro Marim. Foi com enorme prazer que o escrevi:
"Temperar a vida é uma questão de atitude.
Da mesma forma que os dias monótonos e sem sabor podem ser temperados com energia, otimismo e ânimo, também os alimentos, com a correta dose de "ouro branco", deixam de ser só comida e se transformam em iguarias divinais.
Temperar a vida é uma escolha simples que permite saboreá-la melhor. E escolher o sal que em Castro Marim se produz com uma incomparável qualidade, é decidir valorizar os sabores.
Porque a Sul, com todo o Sol, a vida tem muito mais sal."

Abordei-a com um sorriso aberto.
- Filomena!! Obrigada. Não estava à espera disto, fiquei muito sensibilizada!!
- Se calhar devíamos ter-te avisado ou pedido autorização...
- Nem por sombras! Adoro surpresas destas!

Vim-me embora a pensar que além de morar cá no Sul, nesta terra de sal e Sol, também a casa que habito e a vida que vivo estão repletas de sal e Sol. Sim, porque o tempero e luz que colocamos nos dias é uma decisão só nossa!

Obrigada Filomena

Madrugada de festa

Madrugada de festa

Cheguei de madrugada. Numa madrugada de dias grandes e noites quentes. Entre foguetes e felicidade. Cheguei ao som da música e dos risos contentes das gentes em festa. Cheguei numa madrugada de anjos a anteceder o dia de um santo...
Deve ser por tudo isto que acredito ter sido abençoada, nessa longínqua madrugada, com o dom da alegria. E com a firme vontade de espalhar ao meu redor a ambiência festiva com que o mundo me acolheu. Absorvi uma alma festeira às primeiras golfadas dos meus pulmões. Fiz um pacto de dádiva de alegria aos primeiros bateres autónomos do meu coração. Parece-me justo ter aceite este "contrato" que cada vez mais cumpro com a consciência completa. É que a vida é um saldo bem equilibrado do que se recebe e se dá. E eu tenho recebido tanto que tudo o posso fazer é continuar a presentear os outros com todo o amor que me dão.


Ana Amorim Dias



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Que nunca me faltem as pernas

Que nunca me faltem as pernas!

- O que vais fazer nos teus anos? Mega festa, não? - perguntou-me, há uns meses, uma sobrinha.
- Ainda só pensei no que quero escrever nesse dia. Se há ou não festa, é-me ligeiramente indiferente...

Dizem que o destino é feito de acertos e erros; que a soma do que somos resulta de oportunidades tomadas; e que nunca saberemos se qualquer outro caminho teria sido mais feliz.
Dizem que a sorte se constrói e que o amor se conquista; que a morte é a única certeza e a que a existência é fugaz.
Ah, sim, e também dizem que a vida começa aos quarenta!


Desconheço a razão pela qual encaro este aniversário como um portal de acesso a uma nova realidade; uma espécie de passagem iniciática repleta de significados soberbos e riquíssimas oportunidades. Encanta-me de tal forma pensar que a vida começa agora mesmo a sério que tenho aguardado o dia de hoje a construir-me o melhor possível por forma a estar preparada para saborear em pleno o que está para vir. Apenas desejo que não me faltem as pernas para continuar a caminhar pela vida com a energia de quem possui o chão que pisa.

Dizem que somos o produto dos nossos pensamentos e ações. Não posso discordar, mas tenho que completar! Somos o resultado de tudo o que os outros nos dão: de todas as influências, energias, amores, ensinamentos e acompanhamentos. Somos feitos das dádivas providenciais que quem nos rodeia nos traz. Não tenho qualquer dúvida disto.

Acabei por convidar, para celebrar comigo este dia, quem tem feito de mim esta pessoa que gosto de ser, que admiro e com quem tão bem me entendo. Muitos não me beijarão hoje, com todo o amor recíproco que nos temos. Porque não estão perto. Ou porque a morte já os levou. Mas é em honra de todos os que fizeram, fazem e continuarão a fazer sempre, parte da minha vida, que hoje escrevo estas linhas.

Que a vida comece. E recomece. Hoje, como todos os dias, cheia de emoção, inspiração e muito chão para caminhar.

Ana Amorim Dias

Guadalquivir

Guadalquivir

O tempo estava cinzento e frio. Vim-me embora. Os pingos da chuva, primeiro envergonhados, tornaram-se grandes, ofensivos até. Durante muitos quilómetros rumei para Oeste com uma pluviosidade convicta que me lavou bem o carro.
"Caramba, Sevilha, também não é preciso chorares assim: eu estou sempre a voltar." Depois lembrei-me que o Verão começa hoje e pensei na "guerra" que esta época sempre me traz. Enchi bem os pulmões e mentalizei-me, como um atleta na linha da partida, ou um guerreiro prestes a entrar na batalha.

- Me sacas una foto aqui?
- Por supuesto.
Assim que entrei na lancha, ontem ao fim da tarde, quis conduzi-la um bocado. Pablo, o marinheiro, não tardou mesmo nada a perceber a minha vontade.
- Te la dejo, un rato?
- Siiii!
E lá fui eu, Guadalquivir acima, a tomar o gosto ao rio, sentindo a sensibilidade extrema do "timón". Comecei a cantar baixinho uma música dos Revólver: "Cuando el mar se muestra en calma, todos somos capitanes, pero cuando se agiganta, nadie se agarra al timón..."

A chuva acabou por parar e cheguei à minha terra de Sol. Trouxe novas memórias e a habitual certeza de que quero mais e mais. Não sei por quantos rios navegarei ainda, mas sei que sempre que o meu mar se agigante, eu lá estarei, extasiada de emoção, bem agarrada ao leme!

Ana Amorim Dias

No jardim

No jardim

- Aqui tiene, señora.
- Gracias.
Provei. Os meus mojitos são melhores. Indiscutivelmente melhores. Mas nada iria estragar o meu jantar no terraço daquele restaurante com vista para a Giralda.
Só depois de ter mandado vir a comida é que me apercebi que estavam a passar o jogo do Uruguai e da Inglaterra. "Bolas! Não vou ter música!...ou se calhar até vou!" Coloquei os fones, liguei o telefone e escolhi o iria ouvir.

- Sevilha? Mas que vais para lá fazer? Sevilha já tu conheces. Porque não escolhes um destino desconhecido?
- Apetece-me.- e foi tudo.

Vejo Lisboa e Sevilha como pedaços do meu jardim. Aqueles locais onde volto e volto e volto, sempre que me apetece ir apanhar ar. São lindos pedacinhos de terra que, por estarem tão à mão, me deixam com a sensação de estar a chegar ao jardim.

"I will talk and Hollywood will listen...", cantava o Robin. "Eu também "falo" e até há quem me oiça...", pensei. Olhei à volta e senti-me gloriosamente só. Continuo a ver as pequenas expedições solitárias com o olhar encantado de quem cria arte numa folha em branco. É na exclusiva companhia de nós mesmos que conseguimos entender que os únicos responsáveis pelos nossos humores somos nós. É no retiro sublime destes momentos em branco que as maiores epifanias se dão; que as prioridades se entendem; que as memórias e esperanças cavalgam livres das interrupções constantes. É connosco que travamos as únicas batalhas que precisam mesmo de ser vencidas e nos entregamos, por fim, à mais acabada harmonia.
Precisamos dos outros, claro. Mas antes de tudo o resto, precisamos de nós.

Ana Amorim Dias

Teorias de predadores

Teorias de predadores

Falámos até às tantas da manhã. De tudo um pouco. Fizemos balanços de conquistas; comparámos quem somos a quem já fomos; e rimo-nos ao tentar imaginar as nossas caras de espanto, há vinte anos, se tivéssemos conseguido visualizar as nossas atuais vidas.
- Tu és um jaguar!- disse-me ela.
- Ah sim? Então porquê?
- As pessoas que nascem para conquistar o que querem são predadoras. É o que somos as duas: predadoras. Mas eu, por exemplo, caço como os crocodilos: apanho a presa, levo-a ao fundo, abano, arrasto, massacro, até conseguir o que quero. Tu não. Tu és um jaguar. Fixas o alvo, focas-te bem e atacas sem rodeios nem grandes estratégias porque sabes que vais aniquilar sem esforço.
- Caramba! Grande teoria.- comentei, a pensar se aquilo não seria resultado do grande copo de Gin.
- É mesmo assim! Também há os predadores que caçam como as águias. Pairam, perseguem, cansam e confundem a presa até chegar o momento certo para o voo picado. Mas tu és um jaguar!
Não a contrariei. Não por ela ser uma predadora feroz, pois a mim não me assusta. Silenciei objeções porque, independentemente do modelo de predador adotado, sabe bem saber que estamos sempre prontos a atacar os nossos objetivos.

Ana Amorim Dias