(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

28.7.13

O que andam por aqui a fazer?

O que andam por aqui a fazer?

Andava com o pensamento às voltas. O que iria hoje escrever?
Sobre o acompanhamento onde fui buscar os meus filhos e a paciência da avó? Sobre o gato que já só quer andar à solta? Sobre o silêncio que temporariamente voltou a pairar na quinta? Sobre chakras e kundalinis ou o que irei fazer para o almoço de amanhã? Sobre o documentário em que ando a trabalhar ou os prazos de entrega de artigos que estão quase a chegar ao fim? Sobre o fabuloso mojito de morango que ontem fiz ou os casamentos que tenho que organizar?
E então o pensamento parou e tudo voltou a ordenar-se num alinhamento perfeito com o ato de apenas ser.
Não preciso de escrever sobre nada de especial. Basta-me apenas deixar fluir os dedos no teclado ao sabor do mais puro sentir. É assim que todos os dias celebro algo que desejo a todos e tão bem sei atingir: o mais puro e reconfortante encontro comigo e com o que ando por aqui a fazer.
É por isso que hoje terão que me perdoar, mas vejo-me obrigada a deixar-vos a mais complexa questão: o que andam por aqui a fazer?

Ana Amorim Dias

Chegada da guerra

Chegada da guerra

O que faz uma pessoa quando chega da guerra?
Eu descarreguei as compras.
Depois tomei um longo banho, dei de comer ao gato e limei as unhas. Senti-me tentada a adormecer um pouco, mas as palavras escondidas em mim, falaram mais alto que o sono, exigindo vir à tona.
Estendida na cama, ouvindo o vento lá fora, atribuo-lhe agora uma grande parte da culpa. Pior que um dia frio de verão é um dia frio de verão no Algarve. O povo salta dos areais e invade as estradas, as terras, as ruas. Demorei quatro horas a tratar de coisitas que, na pior das hipóteses, me costumam tomar duas. Carrinhos de choque com os corpos, com os carros de supermercado e com os carros verdadeiros. Caras carrancudas, stressadas, aborrecidas. E as buzinadelas. Pergunto-me para quê. Quem está parado na estrada não o faz por gosto: é porque não pode avançar.
Cheguei da guerra, mas só cansada. Vim ilesa de corpo e alma. Estive lá mas com o escudo imunitário de quem é só observador. É muito melhor assim. Não fiz más caras, cedi várias vezes passagem com o corpo, com o carrinho de supermercado e com o carro, enquanto via a aborrecida multidão e ouvia os "buzinadores". Posso não ter descoberto a explicação para certos comportamentos, mas comprovei que quando se olha como se se estivesse de fora, a nossa atitude tende a ser diferente e melhor.
Agora vou fechar os olhos e talvez sonhar com as caipirinhas que vou fazer daqui a pouco...tranquilamente...e sem buzinas.

Ana Amorim Dias

Fico feliz por estares triste

Fico feliz por estares triste

Ela andava numa azáfama, a fazer as malas de toda a família para regressarem a casa. Depois de umas semanas passadas a oito numa desassossegada harmonia, as férias deles terminaram e chegou a hora do adeus à Quinta do Monte e a todos os seus habitantes.
- E então Mafalada? Estás triste?-
- ... Estou!- respondeu num meio falsete.
- Fico feliz por estares triste!- pus tanta emoção na frase que começamos as duas a rir.
É verdade que isto não é coisa que se diga a uma amiga, mas a Mafalda percebeu logo que eu apenas estava feliz com aquela melancolia por ela ser um reflexo de dias muito felizes.
E foi assim que comprovei hoje de novo que, no contexto certo, até as frases mais ofensivas podem conter muito amor.

Ana Amorim Dias

Benção

Benção

No dia do escritor percebo porque não sou outra coisa qualquer. Não poderia ser jornalista ou repórter. Demasiada emoção impede a imparcialidade. Vejo a jornalista da SIC a fazer o seu trabalho na Galiza, junto ao local onde o combóio ontem se acidentou, e pergunto-me como consegue ser tão profissional.
Sou escritora porque sinto. Sinto tudo. Sinto demais. O que já vivi e o que espero nunca vir a viver. Escrevo como quem faz algo que não se escolhe, que vem agarrado à alma, colado às células. Escrevo como quem explode por não saber manter lá dentro o que sente. Benção ou maldição? Benção! Mil vezes benção!

Ana Amorim Dias

Aquele som

O som

Quando ele começou a puxar, todos fizemos silêncio. As conversas pararam para reverenciar o som da rolha a saltar da garrafa daquele excelente vinho tinto.
E ele, de uma forma que me pareceu ligeiramente maquiavélica, fez a rolha deslizar com tal suavidade que o "ploc" que todos queríamos ouvir acabou por não soar.
- Que maldade, Ricardo! Queríamos ouvir o som!!- reclamei.
- Desculpa lá mas assim é que as garrafas se devem abrir. Assim é que é fino!-
Por momentos pensei que ele me estivesse a gozar mas, nos dias seguintes, comprovei a teoria com pessoas que considero idóneas. Não é no entanto por ser de bom tom abrir garrafas sem escândalo que a minha alegria se acomoda ao silêncio. Com o champanhe nem me importo muito, conformo-me com um "ploc" deslavado, causado quase numa envergonhada surdina. Mas o vinho tinto? O néctar dos néctares? Não celebrar uma das mais perfeitas formas de arte em que natureza e homem trabalham num esforço conjunto? Não me parece etiqueta, soa-me mais a crime!
Não sei se nos próximos dias abrirei alguma garrafa mas, da próxima vez que o fizer, colocarei no sonoro "ploc" toda a minha mal educada alegria. Porque a vida não é a soma das regras e da etiqueta, é (ou deve ser) uma constante celebração agradecida!

Ana Amorim Dias

Gosto

Gosto

As ondas pequeninas de uma beira mar muito morna, atingiam os nossos corpos com doçura.
- Amas-me?-
- claro!-
- Porquê?-
- Porque és minha mãe!-
- Só por isso?-
- Não! Amo-te porque és minha mãe e és muito fixe.-
Gosto da forma simples como o João vê a vida.

Algum tempo depois, deitada a poucos metros do mar que continuava a subir:
- Já viste Tomás?-
- O quê, mãe?-
- Os meus super poderes! Estou a atrair o mar para mim só com a força do pensamento!!-
- Fantástico mãe! E sabes? Daqui a um bocado também vais ter o poder de o fazer recuar outra vez!-
Gosto da forma diplomática como o Tomás entra no meu mundo de fantasia.

No regresso a casa o Ricardo saiu do carro para pôr gasóleo. Quando voltou a entrar eu tinha começado a fazer soar na aparelhagem o "let it snow, let it snow, let it snow" e, entre fortes gargalhadas, os miúdos já estavam a fazer coro comigo.
- Tu és mesmo muito doida!!- comentou embevecido.
Gosto da forma como o meu marido revela o bem que me conhece.

Ana Amorim Dias

Deusas

Deusas

Ouvido há três minutos, de novo na passadeira da praia:
- Acarinhada? Ela é mas é uma Deusa! Ele trata-a como uma Deusa!-
- Sim, e faz-lhe as vontades todas...-

Fiquei feliz por não conseguir encontrar qualquer ponta de inveja naquelas palavras. Mas também fiquei admirada. Ok: ele (não faço ideia quem) trata-a (também não sei a quem) como uma Deusa. E depois? Qual é o espanto? Não é exatamente assim que devemos ser tratadas? Será que não temos uma certa dose de culpa quando nos tratam sem a mesma adoração e admiração que uma divindade merece? Temos sempre a hipótese de excluir das nossas vidas quem não nos trate como Deusas. Da mesma forma que, creio, é a nossa atitude que faz o nosso homem adorar-nos e admirar-nos como se num altar merecêssemos estar. E o mais engraçado é que, numa relação de causa e efeito, homem que nos trate assim é igualmente feliz e afortunado pois as Deusas são infinitas fontes de dádiva, perdão, sabedoria e amor.

Ana Amorim Dias

21.7.13

Regras

Regras

Ouvido na passadeira da praia:
- Oh mãe, mas porquê?-
- Porque não, são essas as regras!-

Isto é resposta que se dê a uma criança? Não faço a mínima ideia do que é que o puto estava a pedir. Seria uma bola de berlim? Caso fosse, a senhora devia ter respondido que iam almoçar e ele perderia a fome para comer o peixinho. Ou estaria ele a pedir que ela lhe comprasse os componentes para fazer uma bomba caseira? Nesse caso deveria ter explicado que ele colocaria a sua integridade física ( e alheias, certamente) em risco, o que não era de todo conveniente.
Fiquei com vontade de voltar para trás e segredar no ouvido do miúdo: "Põe em causa as regras que não te pareçam justas!". Se o tivesse feito teria aproveitado também para o instigar a colocar em causa a autoridade e sabedoria de quem faz as regras a que ele terá que se sujeitar pela vida fora. Seria uma irresponsabilidade da minha parte? Provavelmente. Talvez estivesse a despertar um monstro. Mas, por outro lado, também ninguém me garante que não estivesse a lançar as sementes para um futuro homem desperto.

Ana Amorim Dias

Berlindes

Berlindes

Que os filhos são a maior riqueza da vida duvido que alguém conteste. Mas descobri recentemente que são inúmeras as fórmulas que podem usar para nos fazer sentir verdadeiros magnatas.
Há uns tempos estivemos em Londres e, entre muitos outros pontos altos, o momento preferido do João foi a visita ao Hamleys, uma loja de brinquedos de vários andares. Até aqui nada de novo. Contudo, agora que anda louco com a coleção de berlindes, recordou a variedade que lá havia e decidiu avisar-me:
- Mãe! Temos que ir a Londres!-
- Desculpa?-
- Sim! Ao Hamleys, comprar berlindes!-
E pumba: ganhei um par de gargalhadas e a momentânea sensação de ter vários milhões no banco.

Ana Amorim Dias

Dúctil

Dúctil

- E vês? Há pedras muito duras e há outras mais dúcteis.-
- O que é dúctil, pai?

O meu pai era escultor. Foi da sua boca que ouvi pela primeira vez esta palavra. Explicou-me que trabalhar pedras dúcteis implica menos esforço pois são mais moldáveis e suportam mais pressões antes de quebrar do que as que são demasiado rígidas. Não sei se ele preferia extrair as suas obras de blocos de pedra dura ou dúctil. Nunca lhe perguntei. Mas aprendi que o seu jeito de ser rígido se tornava extraordinariamente dúctil perante o escopro dos meus carinhos.
Agora que penso nisso e analiso as pessoas à luz destas definições, concluo que mais vale ser-se dúctil que duro. Quando os factos da vida nos esculpem com intensidade, a dureza excessiva implica uma mais fácil quebra. Mas no fundo, se me perguntarem, direi que ambiciono ambas as propriedades: nas virtudes quero-me dura e imutável, mas em tudo o que posso mudar para melhor desejo-me moldável e dúctil.

Ana Amorim Dias

Atritos

Atritos

Depois de mais um almoço tardio fiquei sozinha com ela à mesa. O calor e a barriga cheia convidavam a uma preguiça assumida. Sem saber muito bem como, a conversa foi parar a casos, que ambas conhecemos, de pessoas que se dedicam de corpo e alma aos atritos. Mas fomos mais longe tentando perceber se o pessimismo, a mania da perseguição e a amargura são tendências genéticas ou simples opções de vida.
- Eu acho que quem é assim já tem um problema tão grande por ter que lidar consigo mesmo que nem precisa de mais nenhuns contratempos! - opinava ela.
Não chegámos a conclusão nenhuma quanto ao facto de se tratar de uma condição de essência ou de escolha pessoal. Mas ambas concordámos que ignorar provocações, não levar nada muito a peito e virar costas a quase todas as "guerras" é a melhor das atitudes. Só assim se desliza bem: sem atritos.

Ana Amorim Dias

Luso fusco

Lusco fusco

Eles vinham lá do fundo a falar ao mesmo tempo sem se ouvirem um ao outro.
- Oh Ricardo, não mistures o dia e a noite...- dizia o PP.
E eu, que juntamente com a Mafalda os olhava com ar condescendente, comentei: - Vês? O Ricardo está a fazer um lusco fusco!-

Hoje acordei, pela segunda vez, ao lusco fusco. Dormi mais horas nesta sesta do que durmo muitas noites. É que há dias que parecem noites, tal é a intensidade da "cowboiada". E enquanto conduzia em direção a uma nova noitada lembrei-me das palavras deles e percebi que misturei o dia com a noite, gerando um lusco fusco, esta hora mágica do ocaso tão encantadora de viver. Acho que enquanto me lembrar deste episódio vou continuar a ter consciência de que podemos realmente criar, a todo o momento, a nossa hora preferida.

Ana Amorim Dias

Anjos humanos

Anjos humanos

Diz que hoje é dia do homem. Pelo menos lá para os lados do Brasil. Parece-me bem. Sem ironias de qualquer espécie.
Não deve ser fácil ser homem. Nada fácil mesmo, especialmente agora que a mulher se afirmou com tal veemência que muitos valores se alteraram.
Como reagiria eu, perante as mulheres, se fosse homem? Insistiria em pagar sempre a conta do restaurante? Sairia do carro a correr para lhes abrir a porta? Seguiria todas as regras de etiqueta perante esses seres que de frágil apenas têm a fama? Se eu fosse homem será que as compreenderia, que não descriminaria nem julgaria por atos menos femininos? Será que desesperava quando ficasse à espera que se pintassem e escolhessem os sapatos que ligam bem com a roupa? Ou perderia a paciência com os gritos histéricos ao ver um bicho e com a incapacidade para abrir frascos?
Sei exatamente como seria se fosse homem. Talvez por isso compreenda tão bem os seus desesperos ao tentar lidar connosco. Ser homem implica um esforço constante, uma atenção que não tira férias nem dias de folga e acarreta o esforço eterno da paciência.
Não, decididamente ser homem não deve ser nada fácil. Ainda por cima por terem que, a todo momento, contrariar a natureza e os instintos para nos terem satisfeitas e tranquilas.
Ser homem deve ser de tal forma desgastante que não consigo compreender as mulheres-carrasco, que eternizam a guerra dos sexos e não os apoiam na complicada odisseia de coexistir connosco.
Já o disse uma vez e repito quantas sejam necessárias. Os homens precisam de mimo. Precisam de compreensão, espaço, atenção e aceitação. Não existem para serem mudados, moldados nem domesticados.
Homens são homens e sempre serão. É precisamente aí que lhes reside o encanto! Ou talvez apenas me seja fácil ver as coisas assim por todos os homens da minha vida serem anjos na terra. Eu pelo menos é assim que os vejo.

Ana Amorim Dias

14.7.13

Agora

Agora

O João vem silencioso no banco de trás. A Ana Carolina canta.
"Às vezes ando só trocando passos com a solidão, momentos que são meus e que não abro mão..."
No meio do caminho, da voz intensa e dos acordes melódicos do seu "violão", começo a perder-me nas estradas do pensamento. Volto ao passado. Avanço futuro adentro. Reconheço-me uma e outra vez, amando cada segundo desta excursão etérea.
"Já sei olhar o rio por onde a vida passa, sem me precipitar nem perder a hora, escuto no silêncio que há em mim e basta..."
Regresso ao presente. Percebo que não concordo com o aforismo, tantas e tantas vezes usado, de que quem lembra o passado e sonha o futuro se esquece de viver em pleno o presente. Discordo. Em absoluto.
"Outro tempo começou p'ra mim agora. Vou deixar a rua me levar, ver a cidade se acender..."
Adoro lembrar o passado. Faz parte de mim, compõe-me a essência. Amo sonhar o futuro. Também ele um dia fará parte da estrada percorrida. E então percebo, com a notável clareza que me costuma acompanhar estas singelas conclusões, que o presente é tão mais intenso quanto nele conseguimos condensar as vivências passadas e as aspirações futuristas. Na verdade parece-me que só assim é que o "agora" se intensifica e exponencia a ponto de se tornar inesquecível.

Ana Amorim Dias

Tortura chinesa

Tortura chinesa

Não faço a mínima ideia se as piores torturas são as chinesas. No meu imaginário fiquei com essa ideia, quem sabe se devido ao comum comentário: "Isso é pior que tortura chinesa".
No entanto não concordo com torturas. Não deste género pelo menos! O que me leva à questão: como torturaria eu alguém? Caso tivesse que castigar realmente alguma pessoa, ou me visse obrigada a arrancar-lhe à força um segredo, usaria métodos com requintes de malvadez bem mais apurados. E a jóia da coroa seria, sem qualquer sombra de dúvida, o trio de vozes do inferno. Ninguém me tira da ideia que não há sofrimento mais atroz do que ser trancado numa sala por tempo indefinido na companhia da Teresa Guilherme, da Júlia Pinheiro e da daquela Cristina cujo apelido não sei, mas que apresenta o programa com o Goucha. Com as três sempre a falar, claro.
Creio que as vou contactar para ser agente delas. É que, se quem ainda usa torturas tomasse conhecimento do método e da sua eficiência, muito rapidamente, entre as quatro, endireitaríamos a dívida deste país.

Ana Amorim Dias




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Que Deus me castigue sempre assim

"Que Deus me castigue sempre assim"

Há qualquer coisa na forma como os homens cozinham que lhes confere vantagens. Não consigo é definir o quê, por mais que me esforce.
Creio que não mentiria se dissesse que muitos dos mais incrivelmente deliciosos repastos com que já me regalei foram criados por homens.

- Que Deus me castigue separe assim...- comentou o Vítor enquanto provava os divinais camarões fritos que acabara de fazer.
Fiquei sem perceber o que é que me estava a saber melhor: o sabor incrível daquele camarão interminável ou o sabor emocional daquela frase inesperada? Vim a saber que a frase era dita pela avó ( ou seria o avô?) da Micá, mulher do Vítor. O certo é que ao ouvi-la, tão convincente e em momento tão próprio, compreendi que é também dos homens que me têm chegado os ensinamentos mais profundos, úteis e inesquecíveis da minha vida. Por isso, e em jeito de comemoração emocionada, agarrei-me ao meu "pandinha" e afoguei-o com mimos, desejando silenciosamente que Deus me castigue sempre assim: com a presença de pessoas maravilhosas na minha vida!

Ana Amorim Dias

Princípio ativo

Princípio ativo

As constipações costumam começar-me com uma leve dor de garganta. Para combater a coisa, que de verão não dá jeito nenhum, ataquei uma caixa de anti-inflamatórios. Ao fim de três dias de auto-medicação, acordei com uma dor medonha e, ao ver a garganta ao espelho, percebi que o assunto só lá ia com antibióticos.
Nove da manhã e eu a entrar no centro de saúde.
- As urgências são entre as oito e as oito e meia, mas se quiser pode esperar até às duas da tarde porque o doutor talvez a veja no meio de alguma das consultas marcadas.
Como a senhora não deve ter culpa daquele atendimento tão eficiente, rosnei-lhe um "muito obrigada" o mais mansamente que pude.
Guiei até ao centro de saúde mais próximo onde um médico me pudesse ver a maleita àquela hora tão estranha.
Paguei quinze euros e quarenta e cinco cêntimos ( parece que já não basta apresentar o cartão de dadora de sangue para ter isenção de taxas) mas fui rapidamente atendida.
- O que é que tens? -
Pensava que só tinha amigdalite mas depressa me apercebi de estar também com uma crise aguda de estupefação.
- Garganta.- respondi laconicamente enquanto tentava adivinhar a nacionalidade do médico.
- Abre a boca.-
Garanto que não sou preconceituosa mas, com aquele tratamento de choque, o rabo de cavalo e o brinquinho do dito doutor começaram a fazer-me questionar se não estaria nos "apanhados".
Expliquei que anti-inflamatórios tinha tomado e durante quanto tempo.
- Qual é o princípio ativo desses?-
Não pude conter-me.
- Como deve calcular, não faço a mais pequena ideia, mas devia ser um princípio muito pouco ativo porque não me fizeram efeito!-
- Bem, vou receitar então uns anti-inflamatórios...-
Foi nesse momento que que descobri o meu princípio ativo! Já tinha aturado muita coisa estranha em meia manhã apenas; a garganta doía-me imenso e não me ia dali embora sem uma solução eficaz!
- O doutor não ouviu o que eu disse? Não viu como tenho a garganta? Já tomei isso três dias, isto só vai ao sítio com antibióticos!-
Pelos vistos o meu princípio ativo fez efeito imediato naquele senhor doutor. Passou-me a receita correta e desejou-me as melhoras. Durante uns dias ainda me custou imenso engolir, mas fiquei feliz por ter descoberto que tenho princípios ativos que me protegem de "engolir" tudo aquilo que não quero.

Ana Amorim Dias


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Na reunião das quatro e meia

Na reunião das quatro e meia

Digam lá o que disserem a tecnologia traz possibilidades fantásticas. A reunião estava marcada para as quatro e meia. Três pessoas em Paris, uma no sul de França e eu... na Quinta do Monte. Cheia de calor, e como ainda havia tempo, decidi dar um mergulho na piscina.
- Mãe! Pediste para te avisar quando fossem quatro e um quarto!- avisou-me o Tomás.
Saí da piscina, sequei-me um pouco e coloquei um vestidinho leve, não fossem lembrar-se de fazer a conferência com o vídeo ligado. Com o cabelo ainda a pingar, e o ipad já a tocar, dirigi-me para o escritório. Lá fora, o barulhinho dos aspersores e das crianças a brincar na água, não me conseguiram desconcentrar. Pelo contrário, conferiram-me uma dimensão docemente humana ao início de mais um desafio profissional.
Quarenta minutos mais tarde, depois de me comunicar em três línguas diferentes e de definir em conjunto as diretrizes iniciais do projeto, cheguei de novo à conclusão de que adoro viver nesta era. O mundo está tão mais ao nosso alcance quanto crescem todas as possibilidades de com ele interagirmos.

Ana Amorim Dias

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Tostas zen

Tostas zen

Quando ele entrou na cozinha eu navegava no caos. Mas num caos limpo, coerente, saboroso, tranquilo.
- Não suporto ver isto assim...- e virou costas sem que eu sequer precisasse de o mandar embora. Não me apetecia deixar a minha harmonia ser perturbada por resmunguices rabugentas.
Continuei a colocar o queijo sobre o pão com gentileza; a juntar o molho entre passinhos de dança e a adicionar os restantes ingredientes enquanto cantava a música que passava lá fora. A desorganização foi-se arrumando como que por magia à medida que as tostas iam saindo, apetitosas, da "caliente" tostadeira.
Quando terminei a odisseia perguntei ao Fred:
- Já levitam lá fora na esplanada?-
- O quê?-
- As tostas hoje ainda saíram mais Zen do que é costume! Está com atenção que daqui a pouco começas a vê-los a elevar-se das cadeiras!-
E ele riu-se. Sabe que levitar não levitam, mas lá que se elevam de prazer isso ninguém pode negar!
Podem tentar reproduzir a receita das Tostas Zen de todas as formas possíveis, mas a proporção dos ingredientes (divertimento, carinho, história, etc ) requer uma sabedoria que não está ao alcance de todos...

Ana Amorim Dias

Nutritivos e famintos

Nutritivos e famintos

A ideia anda a ganhar forma há uns dias mas só ontem à noite, enquanto conversava com duas amigas, a verbalizei pela primeira vez. Só há dois tipos de pessoas no mundo: as nutritivas e as famintas. As que alimentam e as que precisam de ser alimentadas.
As grandes categorias nem deviam ser de género, raça ou credo, e sim relativas a esta essência que, ninguém me tira da ideia, é como um pacto, contratado antes de nascermos.
Passei a vida a interrogar-me acerca dos porquês de várias características minhas sobre as quais não tenho qualquer controlo: sou uma alimentadora compulsiva dos outros; forneço as condições apropriadas para que todos (até os que acabo de conhecer!) tenham uma forte tendência para chorar junto a mim; e preciso desesperadamente de estar sozinha. Esta última compulsão é a que, até agora, mais me tem intrigado. Mas acho que descobri a razão.
Fiz o "contrato" dos nutritivos. Vim a esta vida (espero que a todas, caso mais existam) para alimentar estômagos, almas e corações. A minha energia está à disposição: sei que ao dá-la conscientemente já ninguém ma pode roubar! Entendo que há muitas pessoas que não têm ainda a capacidade de se alimentar a si mesmas com a energia universal. Elas não têm culpa, devemos respeitá-las, amá-las e alimentá-las energeticamente até começarem, uma a uma, a ser nutritivas também e a alimentar os outros. É esta a nossa função e quanto mais depressa o entendermos mais nutritivos seremos.
Quanto à ponta solta que deixei para trás, a conclusão é simples: para sermos nutritivos temos que ter uma fonte inesgotável de nutrientes e, no meu caso, o manancial aciona-se ao estar sozinha comigo.
Caramba, como eu adoro perceber as coisas!

Ana Amorim Dias

Bruxa

Que bruxa

Gosto quando me chamam "Bruxa!". Só quem me tem carinho é que tem também a coragem de me tratar assim. Como dizia o meu pai: "Yo no creo en brujas, pero que las hay, hay!" E tinha razão. Percebo agora que existem. Sou a prova disso mesmo!
Podia dizer que sou uma bruxa boazinha, daquelas que só lançam feitiços bons, mas temo ser desmentida por quem partilha o mesmo teto que eu e vê amiúde os ataques de mau feitio em que só não me monto na vassoura porque seria multada por excesso de velocidade!
Desconfio que os meus piores bruxedos são lançados sobre mim mesma. Com os outros, barafusto, barafusto, mas não os sei atingir. E a maçã envenenada sobra sempre para mim: os amuos infantis que demoram a desfazer-se; o mau génio que se apodera de todas as células do corpo; e uma irritação esmagadora, contra tudo e contra todos, faz com que não me consiga aturar a mim própria.
E de repente lembro-me do contra-feitiço: "Deixa de ser uma besta! Só estás mal disposta porque queres ó palerma!". Depois vou dormir ou escrever e saio do modo "embruxado".
Sei que todos somos as "bruxas" na nossa própria existência. Ninguém tem a capacidade de nos roubar esse papel! Como ninguém tem também a capacidade de ser a nossa Fada Protetora com a mesma eficácia que nós mesmos.
Agora deixem-me despachar que tenho que dar gás à vassoura para ir buscar uns fantásticos (quase mitológicos, quanto a mim) seres que vêm cá passar uns dias!

Ana Amorim Dias

5.7.13

A vida em saldos

A vida em saldos

Trinta. Cinquenta. Setenta por cento de desconto. E, como se de um gigante aspirador humano se tratasse, somos sugados para dentro das lojas. Apelativas. Cheirosas. Viciantes. Entramos num mundo novo que nos faz sentir bem e nos convence de excelentes oportunidades.
Já lá não ia há muito tempo mas ontem entrei em várias lojas. Circulei, olhei, toquei. E decidi fazer uma pequena lista antes de me permitir comprar algo.
Posso?
Quero?
Gosto?
Usarei?
Preciso?
Decidi só comprar algo se cada questão tivesse por resposta um "sim". Após andar quase uma hora alheada da realidade, entre roupas e sapatos, vim-me embora com a consciência de ter feito uma excelente aquisição: juízo por zero cêntimos! Se tivesse retirado da minha lista o "preciso" talvez não fosse bem assim, mas fiquei satisfeita na mesma.
Satisfeita e a pensar que a vida não tem época de saldos. Há incontáveis experiências que nem sequer se pagam ( com dinheiro, pelo menos) e que, se estivermos atentos, podemos aproveitar.
Com as vivências mudo a lista:
Posso?
Quero?
Crescerei?
Há muitas coisas que "decidimos" não poder, mas estamos redondamente enganados. Mentimos a nós mesmos dizendo "não posso" como quem conta a mais esfarrapada mentira. Nos "saldos" das vivências querer é mesmo poder. E quando queremos é porque a alma chama: porque sabe que, mesmo que a coisa dê para o torno, sairá enriquecida.
De todas as perguntas, a mais importante é "crescerei?". Sempre que percebermos que algo nos vai construir um pouco mais devemos "fechar tal negócio".
Dois exemplos muito simples: uma rápida fuga para um mergulho de mar a meio de um dia de trabalho. Se pudermos e quisermos, isso far-nos-á crescer... em boa energia, pelo menos. E um copo com os amigos? Pode dizer-se que não? Claro. Mas estamos a perder uma das melhores oportunidades de nos sentir parte de algo, de rir e rejuvenescer as células, de aliviar o stress e partilhar bons momentos. Pode ser só meia hora, mas um copo (ou café) com amigos fará para sempre parte dos saldos da vida: daqueles que podemos, queremos e nos fazem crescer em alegria interior.
Nunca pensei conseguir dizer isto sem que parecesse fútil, mas a verdade é que há mesmo saldos absolutamente imperdíveis!

Ana Amorim Dias

Unicórnios

Unicórnios

Andava numa "expedição" costeira, do outro lado da fronteira, em busca de um bom "chiringuito". Queria eleger um destino simpático para daquelas fugas-relâmpago que às vezes é necessário fazer para descansar uma hora e sentir-me quase no estrangeiro.
Uns mais belos, outros menos, mas em quase todos um péssimo atendimento.
- Já viste? Isto é dar pérolas a porcos.- comentou o Ricardo, referindo-se a um restaurante bonito que estava a ser explorado por parentes próximos desses animaizitos.
- Eu vejo mais a coisa como se unicórnios tivessem vindo comer à pocilga!-
Acredito que todos temos um pouco de unicórnio em nós. Podemos até não saber, mas somos todos sensíveis, requintados, únicos, especiais e um pouco etéreos até. Todos gostamos de ser bem tratados. Todos merecemos ser atendidos com educação e simpatia. É por isso que não tenho qualquer problema em levantar-me e ir embora quando me apercebo que estou a mais por o local em questão não saber receber unicórnios.

Ana Amorim Dias

O assombroso facto

O assombroso facto

Estava a atrofiar o meu cérebro e a esgotar a minha energia com as notícias. Aparelhos de estado semelhantes a ventoinhas de teto que só chiam e mal se mexem em noites de mórbido calor. Ineficazes, devolutos e tendo por única ação uma apatia, impotente e apatetada, que de nada serve para aplacar o gigantesco fogo que se instalou na nação.
Desvio a atenção da televisão. Divago pelo VIMEO e, providencialmente, um vídeo chama-me a atenção: "THE MOST ASTOUNDING FACT". Desanimada, penso no que poderá ser mais assombroso que o desgoverno em que estamos. E então a voz de Neil DeGrasse Tyson começa a soar. Após ser interrogado para a TIMES magazine sobre o que considera ser o facto mais assombroso do Universo, dá início à verbalização da sua opinião.
"Estrelas colapsaram e explodiram, espalhando as suas entranhas pelo espaço. Esse carbono, nitrogénio e oxigénio foram os ingredientes que formaram nuvens de gases que depois se condensaram, dando origem à geração seguinte de sistemas estelares em cujos planetas passaram a existir os ingredientes fundamentais à vida. Quando olho para o céu sei que fazemos parte do Universo, sei que estamos no Universo e, mais importante que tudo isto: sei que o Universo está em nós!"
"Olho para o espaço e não me sinto insignificante nem pequeno, pelo contrário, sinto-me enorme... Porque os meus átomos vieram daquelas estrelas! Há um sentimento de conexão e relevância: podemos sentir-nos participantes porque é isso mesmo que somos, pelo simples facto de estarmos vivos!"

Caramba! Fiquei como nova! Ao ver a vida de cima, através dos olhos dos átomos celestes que me compõem, tudo voltou à sua correta posição universal. A consciência de sermos de facto feitos de matéria celeste tem o poder de nos fazer entender a importância relativa de tudo. E, com governos ou desgovernos, a vida continua!

Ana Amorim Dias

Sou um homem do campo

Homem do campo

De repente lembrei-me que uma das atividades dele, durante o dia de férias ativas, seria o ténis.
- João!... Esqueci-me de te pôr as sapatilhas na mochila!
- Não faz mal, mãe. Estou de chinelos e agora vamos ter praia.-
- Pois, mas li no papelinho que esta tarde vais ter ténis... E agora? Não podes jogar ténis de havaianas!
- Ah bom! Claro que posso! Eu desenrasco-me, sou um homem do campo!
As gargalhadas propagaram-se dia fora. De cada vez que me lembrava do "homem" do campo, várias imagens me vinham à cabeça. Aquela vez em que me foi acordar com bigodes e uma sobrancelha cerrada; as correrias com as galinhas; o manuseamento dos bichos; as pescarias na barragem. Lembrei-me de quando o vejo, pela janela da cozinha, a passar no lombo da égua sem cela ou com o pai no trator. E depois recordei-me do dia em que, na citadina casa da minha mãe, vi o petiz muito intrigado a olhar para o buraquinho de vidro que existe na porta da rua.
- Mãe!! A porta da avó tem um buraco!!!-
Expliquei-lhe para que servia.
A criança sempre viveu numa quinta e, apesar de já ter viajado bastante e conhecer grandes metrópoles, continua a desconhecer a realidade de viver numa cidade.
Afinal qual é a diferença entre os homens da cidade e os do campo? Quanto a mim há apenas duas mesmo dignas de registo: é que, com os homens do campo, qualquer mulher se sente segura para sobreviver numa ilha deserta ou em caso de catástrofes... e, de acordo com o que constatei, os do campo auto-intitulam-se "homens" logo desde os oito anos!

Ana Amorim Dias

O sonolento tigre

O sonolento tigre

Está oficialmente aberta a época do ano em que ando sempre com sono. Trabalhar até tarde e quase nunca dormir as horas recomendadas traz alguns inconvenientes mas não deixa de ter certas vantagens. Especialmente quando é para estar num bar. Ou melhor, NO BAR...no da minha vida, pelo menos.
Para quem é de natureza solitária (explicaram-me no outro dia que nasci no ano do Tigre e que os tigres caçam sozinhos) a companhia constante pode causar algum desconforto. Mas, depois de duas décadas a passar as minhas noites de Verão no Piratas, tive que me habituar tanto a estar rodeada de gente como a privar-me ainda um pouco mais de dormir. Se trocava estes factos por outros? Não, de forma nenhuma! Estar a trás de um balcão é estar no território perfeito para uma caçadora de almas e nuances da humanidade. Ser uma espécie de "embebedadora" especializada é uma ironia perfeita na vida de quem, por definição e essência, se dedica por inteiro a escrever sobre esse interminável filão que é o Homem!
Ao longo das próximas semanas as crónicas começarão a ser escritas e publicadas noutros horários e, quem sabe, com conteúdos mais caóticos. Mas já ficam a saber ao que se deve: esta caçadora de histórias vai estar sob as influências de muita gente diferente e conversas quiçá sem nexo, bem como de fortes doses de privação de sono. Assim sendo, aos que apenas me lêem, faço votos de boas leituras. E, aos que forem ao Piratas, lembrem-se de ter cuidado: atrás do balcão estará um tigre... pronto a caçar-vos as histórias.

Ana Amorim Dias