(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

18.6.14

O tempo não é coisa rara

O tempo não é coisa rara

No meio do espetáculo dos golfinhos, uma das últimas músicas da Mariza soou no recinto.
"O tempo é coisa rara..."
O João apercebeu-se do meu ar pensativo e refutou a ideia.
- Não é não, mãe! O tempo está sempre a acontecer!

Estou a descobrir que, além das férias em família, todos os progenitores deviam tirar alguns dias em exclusividade com cada um dos seus filhos. As descobertas são de uma riqueza ímpar. A doçura com que os laços se fortalecem, numa cumplicidade inabalável, confere a ambos um sentimento de entendimento difícil de conquistar de outras maneiras. Quando estamos alguns dias presentes, de corpo e alma só para um deles, o tempo presenteia-nos com essa coisa rara chamada harmonia perfeita. Descobrimos-nos. Encantamo-nos. Amamo-nos melhor. Mas há que ter tempo. Tempo só para eles.

Mostrei como se anda de metro numa capital. Expliquei-lhe as linhas, a compra dos bilhetes e coisas que me aconteceram em cada local, quando por cá morava.
- Mãe, mas se mudarmos no Marquês de Pombal e depois no Campo Grande, poupamos sete estações para chegar a Telheiras!
Até me engasguei. Não é que o miúdo tinha razão? Se mudássemos só no Chiado era muito mais demorado...
- És um puto do campo que percebe bem as cidades, João!
E ele abraçou-me e beijou-me. Outra vez. Acho que nunca nos tínhamos mimado tanto.

E o mais lindo de tudo? É que ao Tomás e ao Ricardo, no seu périplo até Santiago de Compostela, deve estar a acontecer precisamente o mesmo. Fico a pensar que as escolhas atípicas do uso do tempo nos podem dar ensinamentos soberbos. O tempo não é coisa rara. Está sempre a acontecer. Raro é saber fazer com que alguns bocadinhos de tempo sejam tão mágicos que se tornem capazes de durar para sempre.

Ana Amorim Dias

DNATECH

DNATECH

Íamos passando em frente aos cafés e olhando para as televisões. A desgraça estava a consolidar-se ao ritmo veloz dos golos germânicos.
- Mãe, estamos a perder.
- Sabes que é assim, filhote, umas vezes ganha-se e outras perde-se...mas o campeonato só acaba no fim, sabes?
- Sempre me compras a NERF, mami?
- Prometi, não prometi? Com as minhas promessas nunca perdes, já sabes.

Entrámos na DNATECH, com a Ângela a explicar-nos para que serve cada sala e cada máquina. Não percebemos muito, apenas entendemos que a sua empresa é especializada em análises clínicas veterinárias e faz investigação científica.
Fiz o João entender que, num sítio assim, não se pode brincar à louca e que as pessoas estavam a trabalhar em coisas importantes, não devendo ser interrompidas.
Aproveitei o facto de ele estar entretido com os brinquedos novos e fui trabalhar um pouco para o escritório da patroa. Quando me apercebi, as risadas ecoavam pelos corredores e já o diretor executivo andava de Nerf na mão a dar tiros com balas de espuma à responsável pela microbiologia, perante o olhar divertido do meu filho mais novo.
Mais tarde dei com ele a montar legos ao lado de potentes microscópios e a ouvir explicações sobre ovos de parasitas, dadas pelo técnico de anatomia patológica.

Portugal pode ter perdido, no primeiro jogo deste mundial, mas a minha tristeza (e a dos colaboradores da DNATECH) foi colmatada pela traquinice natural de um menino que sabe brincar em qualquer parte do mundo.

Nota: fui gravemente ameaçada pela Ângela caso não deixasse aqui a constar que a DNATECH é a "melhor empresa do país, mundo e arredores."

Ana Amorim Dias

O valor dos dias


O valor dos dias

Estavam prometidos. Uns dias inteiramente dedicados a tudo o que ele quisesse fazer. Dei-lhe as opções e deixei-o escolher. Ok, talvez o tenha condicionado um pouco, mas os progenitores devem ser provedores tanto de "sins" como de "nãos".
- Podemos ir de avião?
- Claro.
Fui ver os preços para os dias que tínhamos só para os dois.
- João, de avião fica muito mais caro. Pode ser de combóio, em primeira classe? Olha que o combóio até tem um bar, para irmos beber um refresco.
- A primeira é a melhor?
- Obviamente.
- E hotel? Pode ser de cinco estrelas, mãe?
- Quatro e não se fala mais nisso.

Acabámos por vir para casa de uma das muitas tias/amigas-da-mamã que os meus filhos têm. E ontem, enquanto entre gargalhadas cozinhavamos a lasanha para o jantar, pensei que se está muito melhor em casa de velhos amigos do que nos melhores hotéis do mundo.
- ... Sabes, Ângela? Uma das maiores riquezas que coleciono são as pequenas histórias, os temas para crónicas, os momentos especiais...
- Logo, eu faço de ti uma pessoa muito mais rica!
Concordei sem restrições. Olhei para o João enquanto rebolava na brincadeira com o Kiko (um dos cães) e voltei umas horas atrás no tempo:

- Mãe...tenho medo de elevadores...- comentou quando fomos a casa da minha mãe antes de rumar para Lisboa.
- Mas tu és tonto ou quê? Como vai ser quando formos a Nova York e subirmos ao topo do Empire State Building, páh?
- Mas eu distraio-me a olhar para o espelho e, quando vou para sair, eles "mordem", e dói!!
Ao ver-me a rir perguntou se ia dar crónica e comentou que quer muitas, sempre, para que a sua história não se perca.
- Vamos ganhar a todos com as nossas histórias, não vamos mami?

Não pretendo ganhar a ninguém. Não preciso. Basta-me ir vivendo a toda a hora, na companhia de tanta gente linda, momentos felizes e geniais no seu esplendor de simplicidade. Basta-me saber, a cada anoitecer, que o dia que terminou valeu mesmo a pena viver.

Ana Amorim Dias

Ritmos


Ritmos

- A menina sabe, por acaso, dizer-me a que horas é o corte do bolo? - o senhor, de alguma idade e pesado porte, era dono de um trato tão gentil como o olhar.
- Estou precisamente à procura da noiva para lhe comunicar que está tudo preparado na piscina e que podem vir.
- É que já é tão tarde... mas eu não me quero ir embora antes porque sou muito amigo dos pais.
- Lamento imenso, caro senhor... Transcende-me.
- Dou-lhe os parabéns porque estava tudo muito bom, mas comemos demais à chegada e viemos jantar demasiado cedo, e agora esta espera pelo bolo... É uma questão de ritmos, percebe? Não foram muito normais.
Acenei-lhe afirmativamente e parti de novo, em modo torpedo. "Mas que raio de culpa tenho eu dos ritmos que os noivos imprimem às festas?? Cada um segue o protocolo à velocidade que quer, não?"

Marquei o despertador para as dez porque tenho que rumar para norte. Ainda assim o meu estranho ritmo fez-me despertar duas hora antes do que seria preciso. "Três horas e meia de sono para vinte de trabalho, não é um ritmo aceitável, Ana! Dorme mais um pouco!", refilei comigo. Mas sem qualquer resultado o fiz pois, e embora me transcendam os porquês, consigo ser mais teimosa que eu e encontrar normalidade em ritmos que de normais nada têm. Pelos vistos os ritmos são como as opiniões: cada um tem os seus e de nada serve tentar impô-los aos outros, ou perde-se, em parte, a razão.

Ana Amorim Dias

A alma também respira

A alma também respira

Deambulei pelos rascunhos que sempre trago comigo. O hábito de anotar ideias e frases, minhas ou alheias, salvam-me, de quando em vez, nos parcos dias estéreis de histórias.

"As faltas de ar sentidas quando a alma está descomposta revelam que a alma também respira." Não me lembro quando nem a que propósito pensei isto, mas confirmo a autoria por ser o típico raciocínio que caracteriza o modus operandi deste cérebro que todos os dias aturo. Angústias, stresses e preocupações extremas dão mesmo falta de ar, sendo este um dos muitos exemplos práticos de que as más condições do interior humano condicionam de facto o mau funcionamento do corpo. Concluo que a alma respira mesmo. Respira oxigênio feito de harmonia e paz. Respira o bem e o bom.

Estavam a contar-me como tinha sido o concerto dos Rolling Stones e uma das pessoas presentes, falando sobre o guitarrista, comentou: "Parece um cadáver que ainda está vivo!" Fartei-me de rir, claro, mas a frase depressa me despertou os filosóficos sininhos.
Quantas pessoas não são cadáveres ainda vivos? Todos aqueles a quem a alma, sem esperança nem vitalidade, já se rendeu, nada mais são que isso mesmo: cadáveres ainda vivos.

Bem mais ao fundo, nas páginas de apontamentos, vim a encontrar o elo que aqui faltava: "Não é preciso morrer, para ressuscitar!"
A ligação entre tudo isto? Eu tenho que ir trabalhar, mas façam-na vocês. Vai dar-vos prazer, estou segura!

Ana Amorim Dias





Enviado do Writer


Enviada do meu iPad

Eficiência


Eficiência

Há uns tempos estava a colocar os atoalhados em vinte e tal mesas e dei por mim a cronometrar o tempo que levava em cada uma delas, lutando por fazê-lo cada vez melhor e mais depressa. Apercebi-me que esta tendência é, a par do prazer, algo que preconizo constantemente em tudo aquilo que faço. E isso deixou-me a pensar...

Acredito que, o que quer que seja que estejamos a fazer, podemos sempre aumentar a nossa eficiência. Pode ser um bolo, uma viagem de carro, ou a preparação de um dossier de trabalho; podem ser as compras do supermercado, fazer a cama ou mudar um pneu. Acredito que a eficiência é uma conquista do uso convicto da razão prática. Pensando um pouco chega-se lá. E querendo, claro. Não é preciso ser-se mágico nem vidente, basta termos a capacidade de prever o que irá fazer falta em seguida, ajustando as nossas ações na busca simultânea do menor esforço e de maiores e melhores resultados.
Acredito nisto porque sei; porque sou uma "fazedora" compulsiva que adora materializar pensamentos e planos. Como, por motivos laborais e traços de caráter, tenho o hábito de fazer tudo em grande e em faustosas quantidades, a eficiência é um imperativo que tenho sempre em mente. Mas desengane-se quem pense que ela só faz falta naquilo que se faz em grandes quantidades: tão importante é a eficiência ao fazer um jarro de sangria como ao fazer um balde de cem litros.
A eficiência dá gozo: ao pensar como atingi-la, ao colocá-la a uso, ao ver os resultados e ao deixar os outros espantados com as nossas capacidades. É um pouco como comparar aqueles cantores que vemos cantar a puxar pelas cordas do umbigo e aqueles outros de quem a voz sai, poderosa, sem que lhes denotemos qualquer esforço. Há eficiências naturais e eficiências conquistadas. Admiro ambas. Porque, o que quer que seja que eu esteja a fazer, é a eficiência que me permite conseguir tudo com melhores resultados e menor esforço, deixando-me de presente pequenas janelas de tempo que eficientemente aproveito para me lançar no fabuloso mar... que sempre me energiza para as conquistas seguintes.

Ana Amorim Dias

Levado à letra

Levado à letra

Eu ia ter com ela a Lisboa no dia seguinte e estavamos a trocar mensagens para combinar tudo. Quando me perguntou quais eram os meus planos para esses dias, eu, que estava a trabalhar na Quinta, respondi-lhe: "Estou só a acabar um casamento, já falamos!"

No dia seguinte, ao ver-me, comentou a rir:
- Tens que ter mais cuidado! A frase que escreveste ficou um bocado estranha...
Dei cordinha à memória e lembrei-me.
- Credo, Isabel!! Tens razão, parece outra coisa!
Estar a terminar a prestação de um serviço de Copo D'água, dito daquela maneira, deixava mesmo espaço aberto a outras interpretações.

Ontem, em conversa, ouvi-me a discursar sobre o matrimónio:
"O casamento é o derradeiro dos desafios humanos: ou se fina em divórcio ou falece no marasmo e no desamor. Mas há casos (sim, há mesmo) em que dois seres descobrem a fórmula para viver o e do amor, sem se anularem nem caírem na monotonia dos dias sempre iguais."
O Homem enfrenta muitos desafios, mas realmente o casamento funcional, vitalício e sentido, é uma das maiores provas. Podia continuar a discursar, por páginas e páginas, com dicas que considero importantes na conquista de um casamento feliz (sim, porque é uma conquista diária) mas limitar-me-ei a opinar resumidamente.

Espaço: o espaço vital alheio é o altar da comunhão entre dois seres.
Respeito: não tentar mudar o outro é a maior prova de que se ama de facto quem partilha a vida connosco.
Surpresa: ou somos eternamente surpreendentes e nos contruímos pela vida fora, ou deixamos de ter forma de nos presentear ao outro de sedutoras maneiras.
Resistência: por pura preguiça e orgulho, muitos desistem do fabuloso mar de um relacionamento potencialmente feliz ao aparecimento das primeiras ligeiras ondas. Os casamentos felizes não se vivem sempre em mar calmo, nascem da sobrevivência às mais mortíferas tempestades.
Amor: sem amor por nós mesmos não existe amor ao outro.

Sim. Afinal é assim tão simples!! É o casamento levado à letra.

Ana Amorim Dias

De cerejas e melancias

De cerejas e melancias

- Parabéns filhote!!
- Obrigada mãe! - sorriu com a tranquilidade de sempre, ainda com os olhos fechados.
Aninhei-me um bocadinho nele enquanto pensava na riqueza dos últimos treze anos. É ligeiramente estranho estar nos braços deste magricela de quase um metro e noventa e sentir que nenhum mal nos pode atingir enquanto estivermos assim, enlaçados um no outro. É ligeiramente estranho perceber que todos o tratarmos instintivamente como um jovem de mais idade devido à sua maturidade e altura, e, ao mesmo tempo, é algo tão natural que quase nem damos por isso.

Já não me lembro nem onde nem a que propósito ele começou a conversa:
- Tu já viste como todas as outras frutas são injustiçadas, mãe?
- Hã?
- Sim, repara: diz-se sempre "a cereja no topo do bolo" mas nunca se diz, por exemplo, "a melancia no topo do bolo". É uma discriminação!
- Foste tu que inventaste essa ou ouviste de alguém, Tomás? - perguntei em gargalhadas.
- Não devo ser o primeiro a pensar isto mas não, não ouvi de ninguém.
- Posso usar numa crónica, baby?
- Claro. Está descansada que eu não vou tentar extorquir-te direitos de autor como o João está sempre a fazer...

Sei que sou uma progenitora algo atípica, mas posso afirmar sem rodeios que nasci para ser mãe. Ser provedora de alimento em todas as suas formas; é algo que me corre nas veias com uma força superior a qualquer outro traço de caráter. Ser mãe é fabuloso, mas sê-lo de pessoas assim, grandes de muitas maneiras, toca planos quase divinos.
Fartei-me de rir com a teoria da melancia, como me rio constantemente de todas as pérolas que os dois seres que gerei constantemente produzem. E acabei por me lembrar de algo: no terceiro trimestre da gravidez do Tomás, eu (que nunca admiti a veracidade daqueles stresses gastronómicos das grávidas) transformei-me numa devoradora compulsiva de... melancias. Comprava-as caríssimas, importadas não sei de onde, e comia-as no carro, mal saía do supermercado, porque nem conseguia esperar pela chegada a casa. A "pancada" era tão forte que andava sempre com uma faca no porta-luvas para proceder à operação. É por isso que não resisto a dizer o que me vai sair em seguida:

Parabéns filho. És mesmo muito mais do que a cereja no topo do bolo da minha vida! Por todos os motivos possíveis, és a melancia no topo do meu bolo!!

Ana Amorim Dias

Bermudas

Bermudas

Assim que me sentei e olhei para a capa da revista de moda que estava sobre a mesa do café, lembrei-me das bermudas, aqueles odiosos calções acima do joelho que, há muitos anos, dominaram uma moda primaveril...
Um arrepio de asco percorreu todas as fundações do meu sentido de estética ao observar melhor o modelito daquela edição "fashion". Praguejei baixinho. "Mas quem é que veste estes três padrões conjugados? Pior: que maquiavélica mente é que se responsabiliza por uma capa destas numa revista de moda? Só podem estar a gozar!!"

Gostos não se discutem. Aceito. Mas também não se impõem. Nem se devem acatar com patéticas devoções. Parece-me óbvio que quem segue cegamente as modas, só porque "se usa", sem tentar perceber se o resultado final é algo esteticamente coerente e que combine com a personalidade de cada um, tem graves falhas no caráter. No estético, pelo menos. Não me entra no sistema que se gastem exorbitâncias em pedaços de tecido só porque têm uma certa assinatura ou uma determinada etiqueta. Por mais que me esforce, não entendo. Faz-me confusão ver toda a gente de igual devido a formatações de marketing. Choca-me que as pessoas não saibam ler a informação do seu estilo pessoal, preferindo "ler" revistas de moda pejadas de corpos pouco comuns tapados com peças de vestuário cujo valor daria para alimentar uma família numerosa durante um mês inteiro. Provavelmente nasci trazendo incorporado em mim um dispositivo de contestação às escolhas das massas por adesão, sem respeito às suas subtilezas individuais. Posso até estar errada, mas parece-me mais incompreensível esta escravatura "fashion" do que o próprio mistério do triângulo das Bermudas. É por isso que me mantenho fiel ao estilo simples e despretensioso que combina bem comigo, sem me perder em ditaduras estéreis de valor. É por isso que, se algum dia me virem passar com três padrões deste tipo, podem ter a certeza que estamos no Carnaval.

Ana Amorim Dias

Olhar para dentro

Olhar para dentro

- Tu és viciada em adrenalina.
- Não sejas doida! Viciada em adrenalina, eu? Até sou um bocado medrosa, como é que podes dizer isso? - estavamos a almoçar num restaurante junto ao mar.
- Repito e confirmo: és a pessoa mais viciada em adrenalina que eu conheço!- tornou a Ângela.
Comecei a rir.
- Isso é porque conheces pouca gente!- juntou-se a mim nas gargalhadas porque ambas sabemos que ela conhece milhares de pessoas.

Nos dias seguintes fiquei a matutar no que me disse. Conhece-me bem há mais de vinte anos, nunca deixámos que a vida nos afastasse e até chegámos a viver juntas... Então como é que ela pode ter uma ideia de mim tão diferente da minha?
Haverá léguas de distância entre o que pensamos ser e o que realmente somos? Será verdadeira, a forma como nos vêem os outros? Ou uma miragem tão distante como a chegada do levante, ao fundo, no mar?

Pensei na maneira como me vê quem está perto. O meu marido acha que sou uma eterna miúda mimada, meia "pedaço de mau caminho" e meia tanque de guerra, com pequenas explosões de feitio que ele acha encantadoras. A minha mãe vê-me como uma filha voluntariosa e divertida que, além de levar sempre tudo à frente, precisa de muito espaço vital e liberdade. Os meus filhos vêem-me como a mãe louca, diferente e imprevisível que os consegue surpreender todos os dias. Para todos os outros creio que passo a ideia de pessoa expressiva e expansiva.
No fundo tudo isto é verdadeiro, mas a pergunta que fica é: "quem sou eu quando estou sozinha comigo"? Ou melhor: quem és tu quando estás sozinho contigo? És igual à ideia que tu e os outros têm de ti? Ou uma mera aproximação a todas as características que te atribuem?

"Viciada em adrenalina... Humm...", matutei. Talvez ela quisesse dizer "viciada em emoções fortes, sensações intensas, vivências extremas, momentos cheios de significado!" Sim, é isso! Eu estava sozinha comigo a tentar descortinar, de novo, quem sou. E, como de costume, pareceu-me deveras óbvio: sou a escritora que só sabe respirar emoção e que, por isso, consegue ser um pouco de tudo.

Ana Amorim Dias

Teorias de conspiração

Teorias de conspiração

Ganhámos o primeiro. Vencemos o segundo. Cilindrámo-los no terceiro. Envergonhámo-los no quarto. No quinto jogo foram a zeros. No sexto desesperaram. E ao sétimo... bem, ao sétimo ganhámos de novo e decidimos parar de jogar para não os traumatizar mais.
- Troca comigo. - diziam um ao outro, para ajeitarem as posições.
- Este jogo está viciado! Quem está desse lado ganha sempre!- reclamaram. E nós aceitámos ir para o outro lado só para os calar.
- Marta!! Isso é botota!! Estás a ganhar por causa desse decote!
- Então não olhem, palermas!! - e ria-se enquanto fazia mais uma finta infalível.

Eles bem tentaram arranjar justificações para a abada. Inventaram teorias de conspiração, desencantaram desculpas. O certo é que os machos continuam a ter sérias dificuldades em lidar com as vitórias das fêmeas, sobretudo quando a superioridade é tão gritante que preferimos nem fazer disso grande alarido para não ferir mortalmente os ensanguentados egos.
Gosto de homens que ganham. E gosto de homens que perdem. Basta que joguem a sério e sem rodeios nem batotas. Gosto de homens que apertam a nossa mão no fim e piscam o olho enquanto dizem "bom jogo", da mesma maneira que aprecio muito aqueles que, como ontem, cheios de bom humor, acabam por se rir imenso da grande tareia levada.

Eu e a Marta não ganhámos devido a decotes pronunciados nem por jogar no melhor lado do campo. Ganhámos porque temos anos e anos de treino. Porque estavamos focadas e sempre fizemos uma excelente e cúmplice equipa. Mas confesso que há algo que talvez tenha influenciado ligeiramente a redundante vitória: percebi-o ao olhar para a desfocada fotografia que um dos adversários nos tirou...

Ana Amorim Dias

Queres ver que sou motard

Queres ver que sou motard e não sabia?

Depois de mais de quinze dias ausente, voltei a ter uma aula de mota. A próxima será só daqui a mais quinze. O exame já foi solicitado mas dizem que a data costuma ser marcada para dois meses mais tarde. Não me importo. Não tenho pressa nenhuma...

Meti a primeira e arranquei. Desliguei o pisca. Segunda. Terceira. Segunda outra vez para fazer a rotunda. E saí da vila. Umas aceleradelazitas. Modestas, claro, mas ainda assim capazes de fazer com que o casaco, mal apertado, se abrisse. O vento fresco da manhã abraçou-me o peito. E eu abracei o prazer tranquilo daquele momento. Porque a mota já vai fazendo o que eu quero, como eu quero e quando eu quero. Gosto disso. É bom sentir o controle de tudo. Dá segurança. Mas é impossível sentirmo-nos sempre no controle de tudo. A sensação de controlar é a mais falsa premissa de todo o nosso entendimento; a mais perniciosa falácia em que podemos cair. A dura realidade é que controlamos muito pouco. Só que, paradoxalmente, o factual pouco controle que temos sobre a vida é também o que lhe confere um redobrado encanto: nunca pensei gostar assim tanto de conduzir uma mota; da mistura da adrenalina com a tranquilidade; da noção de liberdade e alheamento a tudo o resto; da sensação de se pertencer a uma espécie distinta de seres humanos... Se calhar sempre fui motard e não sabia!
Sim, é isso mesmo. Deve ser por isso que não tenho pressa nenhuma para acabar de tirar a carta: não são os documentos que ditam aquilo que somos.

Ana Amorim Dias

Rocio

Rocio

- Tão estranho. Esperava ver muito mais movimento...- comentou o Ricardo distraidamente. Assim que acabou de o dizer, teve que travar quase a fundo devido à fila de carros à nossa frente. A seguinte dúzia e meia de quilómetros foram passados no pára-arranca, a olhar para as caravanas de carroças, charretes, cavaleiros, caminhantes e carrões decorados, puxados por tratores, cheios de devotos felizes. Vindas de longe e de perto, as colunas das "Hermandades" iam comendo o pó do caminho sem parecer importar-se com isso. Abri as janelas do carro para conseguir ouvir os cantares já cansados e as palmas conjugadas de uma maneira que só eles sabem. Nesse momento eu ainda não entendia nada.

Chamam-lhe a "romeria de las romerias". Passa-se aqui ao meu lado, alguns quilómetros depois de Huelva, no Rocio. Uma terra de terra. Uma terra de pó. Uma terra de intensidades e estranhas manifestações de fé. Mais de cem Hermandades de toda a Espanha, mas maioritariamente andaluzas, rumam ao Rocio por altura do Pentecostes para apresentarem os seus andores à "Paloma Blanca", a Nossa Senhora do Rocio, juntando-se normalmente mais de um milhão de pessoas, por estes dias, no pequeno "pueblo" em que todas as estradas e caminhos são de terra para que os cavalos circulem a gosto.

Agradeci as pesadas gotas de chuva quente que acalmaram o pó à nossa chegada.
- Dá-me a mão, João. Estes cavalos não respeitarão os limites de velocidade dentro das localidades? Que doidos!
Observei a contínua chegada dos "rocieros" trajados a rigor sobre as carripanas puxadas a cavalos, bois ou tratores. Ruidosos, enlevados, todos de copo na mão e gargalhada fácil na voz. Cantares distintos chegavam de todo o lado, sem se deter um segundo, como o pó que nem as gotas de chuva acalmaram por muito tempo.
De quando em vez, uma Hermandade inteira, chegando à sua guarida (cada Hermandade tem um edifício com pátios interiores, estábulos, salões, bares improvisados, alojamento e outras comodidades) fazia recuar a parelha de bois que trazia a carroça com o andor da sua Virgem ou Santo Patrono que, ao recolher a um espaço próprio, coberto mas aberto às ruas, fazia soar uma enorme salva de palmas, coroadas com mais cantares.
As andaluzas, de sevilhanas trajadas, desciam as escadas da igreja matriz em bandos, caminhando com um passo tão firme e um olhar tão altaneiro que me faziam lembrar o avanço dos grupos de gansters no "Once upon a time in America".
Dentro da igreja, homens de voz muito rouca, dedicavam sentidos cantares à "Blanca Paloma", enquanto eu sentia a energia e pensava que nunca esperara ver uma igreja com tanta terra no chão.
Deambulámos os quatro um pouco por todo o Rocio, cada um de nós entendendo à sua maneira o fenómeno que estavamos pela primeira vez a viver. E no fim, ao regressarmos ao carro depois de visitar uma prima minha com casa alugada na calle Vetalengua, o João quis saber a razão de eu só ter primos estrangeiros com os quais raramente consegue comunicar em português.
Expliquei-lhe as razões mas guardei para nós a resposta mais bela: sou prima de holandesas, espanholas, brasileiras. Sou prima de mundos diferentes, culturas distintas e outros modos de vida. Porque a vida conspira no sentido de proporcionar mais experiências a quem gosta de as partilhar com os outros.

Ana Amorim Dias

As raquetes dos avioes

As raquetes dos aviões

- Mãe, os aviões têm raquetes?
- Suponho que sim, quando neles viajam tenistas...
- Não mãe, estou a falar de umas partes dos aviões que se chamam raquetes.
- Não faço ideia, João, mas se quiseres posso perguntar ao Vítor.
- Acho que servem para "amorteceder" a queda.
Ri-me com a desarmante lógica daquela construção verbal. Realmente, partindo do "amortecedor", estava justificado o seu raciocínio. Ainda pesquisei sobre o assunto das raquetes dos aviões mas não o devo ter feito com a genica habitual porque não cheguei a conclusão nenhuma.

Dias mais tarde, uma avó "emprestada", de visita à casa e enquanto descrevia ao Ricardo a minha personalidade na infância, comentou que as pessoas inteligentes caem sempre de pé, como os gatos. E eu lembrei-me logo das raquetes que, segundo o meu filho mais novo, "amortecedem" as quedas.
O que é melhor? Cair suavemente? Cair em pé? Cair na areia? Não cair? E ser inteligente, tem alguma influência nisto? As quedas que se prendem com a força da gravidade da Terra podem doer, deixar lesões e até tirar a vida. Mas são simples e justificadas, tanto nas causas como nos efeitos. Já de todas as outras quedas, aquelas causadas pelos tropeções e escorregadelas dados no devir da vida, não se pode dizer o mesmo. Comenta-se por aí que a sabedoria e a coragem não residem em nunca cair e sim em sabermos levantar-nos após cada queda. Atrevo-me a contestar: muitas vezes as pessoas tropeçam e escorregam por não estarem atentas; caem não por não serem precavidas, por não se prepararem, por não preverem o que pode vir depois. Há muitas quedas resultantes dos desleixos, das fracas auto-estimas, das inércias e faltas de sangue na guelra. Continuo a achar que a maior queda de todas é a de quem se arrasta pela vida sem lhe dar algum sentido e sem a viver de facto. Deve ser por isso que concordo com a vóvó e a sua teoria da inteligência. Mas, à cautela, talvez seja produtivo instalar também umas raquetes na personalidade para, como diz o Joãozinho, "amortecedermos" alguma eventual queda.

Ana Amorim Dias

A ponte

A ponte

Passo pela pequena ponte todos os dias para levar os miúdos à escola. Só lá cabe um carro e, como nunca costumo ter grandes pressas, tenho o hábito de, tranquila e gentilmente, ceder passagem a quem vem aflito (a malta anda sempre como se o mundo fosse acabar daqui a duas horas) no sentido contrário.
Esta manhã notei que os meus filhos ficam um pouco tensos, na expetativa de ver se o/a outro/a condutor/a me agradece ou não a cedência porque, sempre que não o fazem, fico a blasfemar (com palavrões cabeludos) contra a má educação que prolifera por aí. E hoje, depois de ceder a passagem sem que me agradecessem o gesto, a irritação foi tão grande que comecei a imaginar atitudes radicais para a próxima vez que isto aconteça...

- Olha! Um xadrez gigante! Bora? Vou-te ganhar!!
Estavamos na feira do livro e ele aceitou o desafio da minha fanfarronice infantil.
- Duvido minha menina!!
Duvidou bem. Dez minutos decorridos e eu estava quase sem peões, com os bispos e cavalos todos aniquilados, a tentar salvar a vida do meu rei a todo o custo, num jogo puramente defensivo, sem esperança possível de salvação.
No fim, depois de ter posto fim à minha agonizante angústia, o Eric disse-me simplesmente: "Desculpa... mas o mestre não podia deixar ganhar a discípula."
Sorri-lhe. Pior que perder é jogar com quem me deixe ganhar sem que eu o mereça. Assim não aprenderia nada.

Ainda no carro, lembrei-me do recente episódio e os planos de ataque contra quem volte a ser mal educado naquela ponte desvaneceram-se por completo. A má educação jamais se combate com má educação. Da mesma maneira que as más energias apenas se dissipam com as boas. Continuarei a ceder a passagem sempre que veja apressados condutores a vir em sentido contrário. A quem agradecer entregarei um sorriso. A quem não o fizer, deixarei os silenciosos votos de que algum dia aprendam que o mundo não vai acabar daqui a duas horas e que a boa educação sabe ainda melhor a quem a pratica do que a quem a recebe. Quem o disse foi a mestre que há em mim. A discípula ouviu, concordou e aprendeu.

Ana Amorim Dias




Enviado do Writer


Enviada do meu iPad

Descaramento Natural

Descaramento natural

Já vai sendo tempo de nos deixarmos de pruridos, friezas e desculpas. A vida passa célere, implacável, numa cadência ininterrupta de horas e dias que temos que surpreender com atitudes que lhe confiram um sabor de dádiva magnífica. E não tenham ilusões porque é mesmo assim: a vida não nos surpreende a nós, somos nós que a temos que tornar surpreendente. Ora isto não vai acontecer se nos deixarmos ficar no marasmo fechado de um casulo de vergonhas.
Tenho a sorte de saber reconhecer os meus pares no que ao positivismo e princípios diz respeito. Isto é excelente porque, muito sinceramente, não estou disposta a perder nenhuma oportunidade de conhecer novos amigos, de ensinar o que sei, e de aprender mais também. Tenho a sorte de habitar em mim um descaramento natural que me faz seguir os impulsos de convidar desconhecidos reais (mas amigos virtuais) para tomar um café ou saborear um mojito. E com que enorme riqueza me sinto, nestes encontros-partilha em que o meu universo pessoal se expande ao mesmo ritmo que a conversa flui, feliz, com novos laços empáticos.
Já vai sendo, mesmo, tempo de nos deixarmos de pruridos, friezas e desculpas que nos impeçam de alargar os nossos afetos sociais. Acreditem que sim.
Fernando e Alberto: o prazer foi meu!

Ana Amorim Dias

Fazer-te crescer

Fazer-te crescer

Ao princípio era estranho. Depois comecei a encarar com naturalidade o facto de despertar muitas vezes com a voz do pensamento a pronunciar convictamente uma certa palavra ou frase. Agrada-me bastante esta colaboração criativa que me chega do limbo da passagem do modo off ao modo on.
O que não era costume era que me chegassem as pérolas numa outra língua, como aconteceu hoje com o: (je) "te grandis."
Não me lembro de ter usado tal verbo, ontem, nas conversas literárias-filosófico-boémias que tanto me agradam. O certo é que acordei com o "quero fazer-te crescer" a soar como um despertador.
Pensava que escrevia para dar sentido à minha vida, numa espécie de adaptação livre do "live to ride, ride to live" em "viver para escrever, escrever para viver." Esta manhã fiquei a pensar que a escrita não é o destino, é o caminho! O objetivo não é escrever por escrever, comunicar por comunicar: é transmitir conteúdos que funcionem de facto como uma poção mágica de evolução e crescimento.
Fazer-nos crescer é, portanto, não só o mote do meu regresso à consciência no dia de hoje, como o resumo de tudo o que importa de facto. E crescer pode ser tão simples como pensar simplesmente que "está tudo bem, eu vou conseguir."

Ana Amorim Dias

Best Friends Forever

Best Friends Forever

Quando chego à Quinta e os vejo a descarregar, sinto uma alegria inexplicável. Outras vezes já lá estou e oiço o camião a chegar. A sensação é a mesma: feliz, feliz!

Entrei com o habitual ar de furacão que me é tão natural em dias de muito trabalho, e comentei com o Ricardo-amigo:
- Estás feliz? Eles não são adoráveis? Olha para a quantidade de cerveja que trazem!- comentei, referindo-me aos senhores que tinham vindo fazer a entrega.
O Ricardo-marido riu-se com a minha teatral entrada em cena e deixou-se ficar atento, na expetativa do que viria em seguida. O Ricardo-amigo, encostado ao balcão, usou o olhar divertido com que tantas vezes me brinda e eu prossegui.
- Isto é que são verdadeiros amigos! Você é o meu melhor amigo, sabia?- comentei com um dos três senhores de blusa encarnada.
Mas o pobre, como não me conhece bem, olhou-me meio de lado e soltou um sorriso aflito.
A gargalhada do Ricardo (marido) lá lhe mostrou que não sou perigosa e que estava tudo bem.
Passei os vinte minutos seguintes a tratá-los por "best friends forever". Talvez as minhas verdadeiras melhores amigas fiquem um pouco aborrecidas com esta espécie de traição... Mas caramba, meninas, vocês nunca me trazem barris de cerveja!!!

Ana Amorim Dias

Inesperada abundância

Inesperada abundância

Seis da manhã e as palavras dela rebolavam-me na mente. "Bolas, vou ficar impossível de aturar, devia dormir mais um pouco". Reformulei o pensamento. "Impossível de aturar já eu sou quase sempre..."

Já não recordo o nome da escritora de quem há dias li um artigo a preconizar que todos os escritos e palestras dos escritores devem ser pagos. Defendia que, ao aceitarmos não ser pagos estamos a prejudicar os outros.

- Anda. Quero mostrar-te uma coisa.
- Figos?? Já há figos maduros?
- Shhhh. Traz uma cesta e vem comigo.
Chegámos perto de uma ameixeira que sempre me passou despercebida e vi-a linda, pródiga de frutos.
- Mas esta nunca tinha dado...- espantei-me.
- Pois, é para que vejas... Este ano resolveu-se.
Comemos, deliciados com o sabor daquela abundância silenciosa e doce.

A luz entrava no quarto pelos catorze metros quadrados de janelas e portas. Seis e um quarto. Como podia dormir com uma vista assim? O diferente de canto de muitos pássaros distintos, enchia o amanhecer de alegria. "Eu escrevo e dou. Dou. Dou. Dou. Participo em palestras sem me importar se vou ser paga ou não... Será que a tal escritora tem razão e nos devemos fazer cobrar por tudo? Afinal escrever é trabalho, sem dúvida."
Espreguicei-me languidamente enquanto me lembrava do desconforto sentido ao receber as primeiras notas pelos primeiros livros vendidos. Era como se estivesse a vender filhos, uma espécie de prostituição cerebral e artística.
Olhei de novo para imensidão de abundância que rodeia a casa por fora. Senti a abundância de amor e paz dentro dela. E, em mim, a opulência de energia criativa. Cada criador que faça o que quiser com as suas obras, sejam elas de que conteúdo, teor e forma sejam. Mas não vejo a dádiva artística como uma prática de dumping. Triste de quem se move, na arte, tendo como meta final o vil metal. Adoro dinheiro e todas as suas utilidades, entenda-se, mas adoro muito mais a abundância interior trazida pela simplicidade de quem sabe ser tão pródigo como aquela ameixeira.

Ana Amorim Dias

Mars one

Mars one

A sério? Foram duzentas mil pessoas? Duzentas mil a candidatar-se a ir viver para Marte sem bilhete de regresso?? Depois de várias fases de seleção parece que já estão reduzidos a 700, havendo dois portugueses e uma portuguesa entre eles.

Eu estava a sair do banho quando comecei a ouvir a noticia, ontem, no noticiário da noite. Fui à pressa para a sala, não só molhada por fora como mergulhada, por dentro, numa incredulidade profunda. Não me assistiu a alegria das novas conquistas do Universo, nem sequer o raciocínio de todas as vantagens que algo assim pode acarretar. A única questão que me assolou, sem deixar espaço a mais nada, foi: "Quem é que, de livre vontade, se vai embora da Terra para sempre?!?"

Mais tarde, antes de me deitar, fui à rua ver as estrelas. "Ora aqui está um caso em que adoro olhar de baixo para cima e não o inverso..."

Acordei muito cedo e pesquisei "Mars One" no Google. Li, vi vídeos e fiquei a pensar nos loucos e bravos homens que, há alguns séculos, se lançaram pelo mar fora rumo ao completo desconhecido. As diferenças são muitas. Mas as semelhanças também. Ocorreu-me que ir para Marte é como saltar para o grão de areia mais próximo, num areal infinito. E de novo me voltou a consciência da nossa grandiosa pequenez. Agora, depois de me habituar à ideia, já foco mais o pensamento nas maravilhosas implicações deste grandioso projeto do que nos motivos que podem levar alguém a querer ir. Podemos existir, no universo, num plano colossalmente ínfimo, mas temos a grandiosidade de nos querer expandir. E percebo que esta sede de infinito nos traz um estatuto ligeiramente divino...capaz, quem sabe, de restaurar a fé da humanidade em si mesma.

Ana Amorim Dias

horror

Horror

Li, horrorizada, a notícia da paquistanesa, grávida de três meses, que morreu apedrejada pela própria família. O seu crime? Não ter casado com o primo que lhe destinaram e sim com o homem que amava, tendo assim "desonrado" a família que deve estar agora a transbordar com tanta "honra" reposta. Mas porque me horrorizei? Casos como estes existem aos milhares por este mundo fora, justificados por costumes, religiões e até por leis que não penalizam e/ou sistemas jurídicos que deixam impunes os monstros.

Ando há imenso tempo para escrever sobre as meninas raptadas há mais de um mês na Nigéria. Mas não podia fazê-lo sem que me estivesse a sair das entranhas. A meu ver a leitura é simples: trata-se de terror imposto pelo pavor, malvadez e ignorância de extremistas que agem em nome "algo maior"... como se existisse "algo maior" capaz de justificar todas as barbáries. Não há! O único "algo maior" que podemos reconhecer é o amor e a humanidade, mas quem atua norteado por isso, normalmente só faz o bem.
O grupo radical islâmico Boko Haram é só uma gota no oceano de fel que os extremismos insanos sempre acarretam. Os extremistas são cobardes, vis, ignorantes. Temem a propagação do conhecimento, do esclarecimento das mentes; temem o amor. E desengane-se quem pense que são apenas crimes de género pois se incidem mais sobre as mulheres, em muitos casos os homens também são vítimas. Mas e a nós, pacatos cidadão do mundo que, brindados com a sorte de viver uma existência de direitos fundamentais garantidos, nos limitamos a horrorizar com estas ocorrências constantes, o que nos cabe fazer? Qual é o nosso papel? Qual é a possibilidade de fazermos mais do que a mera proclamação das nossas incredulidades e indignações? O que podemos fazer com estes nossos sentimentos de impotência? Onde os colocamos? Como os tornamos úteis na ajuda concreta de quem vive os piores flagelos no meio da ausência total de proteção?
Não tenho respostas para as questões que deixei no ar. Não de uma forma concreta, pelo menos. Mas estou segura de que a contínua busca do conhecimento e do amor talvez nos venha a ajudar, enquanto indivíduos singulares, a construir uma espécie mais merecedora da existência. Por agora, vou entregar-me a mais um dia de trabalho, mas levo comigo a consciência de que talvez como eu pensem muitos. Levo também a esperança de que, quem sabe um dia, isso venha a servir de alguma coisa.

Ana Amorim Dias

Tanta seiva

Tanta seiva

Os miúdos vinham no carro a falar dos professores, até que um se lembrou que a professora de francês se chama Ana Rodrigues.
- Como tu, mãe!- saiu-se o pequeno.
- Olha, desculpa lá!! Eu nunca fui nem serei Ana Rodrigues, bem sabes!
- Mas não é suposto as mulheres ficarem com o último nome dos maridos? - indagou o Tomás.
- Em alguns países não, mas no nosso sim.
- E tu porque não quiseste o nome do pai, mami?
- Para o amar melhor...
- Não entendo. - reclamou o João.
- Eu nasci Ana Dias e morrerei Ana Dias. Vejo essa cedência ao nome do marido como uma subjugação que nunca poderia aceitar. O vosso pai apaixonou-se pela Ana Dias rufia e cheia de personalidade. Sempre lhe dei uma luta de igual para igual e é por isso que ele continua apaixonado por mim, entendem?
- Humm... Sim.
- É que há muitas pessoas que, quando casam, entregam tudo e perdem-se delas... perdem a "seiva" e deixam de ser a pessoa por quem o outro se apaixonou, e isso acaba com o amor.
- Bolas, mãe, e se tu tens seiva!!

Talvez os meus filhos não tenham entendido plenamente o que lhes tentei transmitir, mas compreendem, sem dúvida, o amor apaixonado que paira no ar lá por casa. E esse é, indubitavelmente, o mais belo ensinamento parental: ensinar que o amor terno, apaixonado e assente numa admiração feita de igualdades é o alicerce mais básico para uma vida feliz.

Ana Amorim Dias

Educação virtual

Educação virtual

Em frente à "página em branco", estou neste momento a pedir-me para definir, em poucas palavras, a boa educação. Entendo que vou ter que pensar um pouco. Pausa...

Boa educação é um conjunto de condutas não obrigatórias e de incumprimento não punível por lei, que conjuga um determinado contexto histórico, cultural e geográfico com a sensibilidade e aptidão (universais) de cada um perante o respeito pelo outro.
É difícil definir a boa educação. Impossível até. O que não é impossível é estarmos abertos a interiorizar, reajustar e aplicar as condutas de boa educação aos novos mundos que frequentamos. Ora se tantos milhões de pessoas se começaram a relacionar virtualmente, é mais que legítimo que as boas condutas relacionais se transponham para este plano e se apliquem com a mesma exigência.
Entendo que as nossas páginas, nas redes sociais, são a sala de estar onde recebemos os amigos, convivemos e debatemos os temas que nos despertam interesse. Quando escolhemos entrar neste mundo virtual devemos fazê-lo com a plena consciência dos prós e dos contras, tendo o cuidado de circular por ele com o mesmo respeito ao outro que nos é eticamente exigível nos relacionamentos sociais reais. E, sobretudo, com a consciência de que tudo fica registado e é, em maior ou menor grau, público.
Sem temer o risco de parecer, hoje, um pouco moralista, reitero a opinião de que, lá por estarmos "encapotados" por trás de computadores e iPads e telefones, não devemos descurar nem a sobriedade nem o respeito ao próximo. É por isso que vou, após postar esta crónica, apagar as nove publicações que alguém publicou na minha sala de estar: porque não é de mau tom rejeitar que um desconhecido venha alterar a decoração da nossa casa.

Ana Amorim Dias




Enviado do Writer


Enviada do meu iPad

Torpedo

Torpedo

- Bom dia, Torpedo!
Eu mal tinha ainda aberto os olhos e encontrei logo forma de contestar.
- "Torpedo"? Mas os torpedos explodem ao chegar ao alvo!
- Pronto, tu não explodes com nada mas fica tudo em sentido à tua passagem.
Acho que o meu marido tem uma panca qualquer em comparar-me a arsenal bélico. Ora sou uma "bomba", um "torpedo" ou até um "tanque de guerra com asas brancas". Ele lá sabe pois atura-me há tempo suficiente para ter a autoridade de me chamar o que muito bem lhe apetecer.
O certo é que fiquei a pensar no meu impacto explosivo. Oriento com margem de liberdade, mas passo-me quando o nível de exigência, por parte de quem integra a equipa que chefio, não é compatível com o meu. Fico "basística" quando as minhas ordens não são cumpridas à risca e mais ainda quando uma ou outra repreensão deixa nos outros um amuo convicto. Se calhar sou assim devido ao meu grau de exigência comigo, e por ter a consciência de que "combato" bem em qualquer posição. No fundo apenas preconizo a excelência. Tudo o que seja infimamente inferior à excelência não me interessa.
Talvez ele tenha razão e eu seja mesmo um torpedo que explode ao embater nos alvos. Resta-me apenas continuar a trabalhar-me para que as explosões sejam cada vez mais meigas e capazes de provocar nos outros o mesmo nível de brio profissional que tanto almejo para mim.

Ana Amorim Dias

Internacionalidades

Internacionalidades

As gargalhadas do João soavam pela casa toda. Tentava que o Alex, o namorado da minha prima Nanda, repetisse, em bom português, as complicadas palavras que lhe ensinava. O Tomás, entretanto, mostrava à prima holandesa como se fazem as pulseiras de elásticos que estão agora na moda.
Não sei se gostei mais de ouvir o Alez dizer que se respira por aqui muita paz (e que se sente como em casa), ou se preferi sentir o à vontade com que os meus filhos começaram a comunicar com quem não fala a sua língua. Entre palavras em inglês, alguma mímica e muitos sorrisos, a cumplicidade entre eles começou a nascer.
Como estou a trabalhar não pude acompanhá-los esta manhã. Foram os quatro para a praia. Dois a aprender português e outros dois a melhorar o inglês e a contactar pela primeira vez com a estranha língua holandesa. E eu fiquei a sentir-me feliz, com a sensação de estar a fazer um bom trabalho. Tenho dois filhos reguilas, mas de uma simpatia que cativa...e que não se acanha com barreiras linguísticas nem quaisquer outras limitações trazidas pelas contingências de uma vida bafejada por doces bafos de internacionalidade.

Ana Amorim Dias

Agents provocateurs

Agents provocateurs

Eu andava a organizar as roupas de verão quando vi aquela peça, ainda por estrear: uma blusinha rosa fushia, de um vaporoso tecido. Daquelas que acaba sempre por deixar à vista alguma parte do sutiã, qualquer que seja o modelo. Decidi experimentá-la e acabei por deixá-la vestida.
Vi as horas. Se queria tomar um café, antes de ir buscar os miúdos à escola, tinha que me despachar. Olhei para o espelho e pensei: "Hum, isto está tudo no sítio...vou mesmo assim." E lá saí, contra o que é meu costume, sem o sustentador peitoral.
Ao passar pela esplanada apercebi-me da dificuldade que alguns olhares tiveram em desprender-se do bailado sensual do meu modesto "front pack". E lembrei-me do pedido de uma amiga: escrever sobre a patética forma como algumas pessoas desculpabilizam as violações por, alegadamente, certas mulheres se "porem a jeito".
Há, de facto, indumentárias (e maneiras de as usar) que deixam muito pouco trabalho às imaginações. Sustentar a classe e o charme com roupas que revelam demais as carnes é uma arte que não está ao alcance de todas. É muito mais fácil fazê-lo, creio, com modelitos que insinuam sem mostrar. Mas estou a desviar-me do cerne da questão. É que nada dá o direito, a ninguém, de forçar o sexo com outrem. Por mais que haja vestimentas capazes de provocar defuntos, a violentação jamais fica justificada. Que quem ande assim pelas ruas tenha que lidar com olhares, piropos e cortejos por demais óbvios, é ponto assente, legítimo até. Eu própria confesso que por vezes fico a olhar, fascinada, quando estou atrás do bar, no Piratas, e me aparecem monumentais pares de seios, pousados lascivamente sobre o balcão. Mas isso não me dá o direito de os agarrar, com ambas as mãos, nem de prosseguir para outras luxúrias. É um bocado como as crianças nas lojas de doces e brinquedos: "É só para olhar, não é para mexer!"
Enfim, qualquer mulher que goste de o ser aprecia, num ou noutro momento, apresentar-se de uma forma mais provocadora e sensual. Mas, repito, quem o faça apenas deve ter que se preocupar com "cantadas" mais assertivas e nunca com agressões à sua integridade física e emocional. Contudo não convém esquecer que, da mesma forma que as fémeas terão, para sempre, o gene "evista" de agents provocateurs, os machos também manterão, para sempre a pulsar-lhes no sangue, a (des)graça da queda na tentação.

Ana Amorim Dias

'Bora lá!

'Bora lá

- Apetece-te dormir?
- Não.
- Sair para dançar?...
- 'Bora!
E saíamos mesmo antes da porta da residência universitária se fechar, para só se voltar a abrir às sete horas da manhã seguinte.

Ontem liguei-lhe.
- Querida, temos que rever a data da palestra que eu ia dar aos teus funcionários em Junho.
Acordámos a nova data e, a meio da conversa, comentei que os homens lá de casa andam a combinar uma pequena viagem só no masculino, e que talvez eu tenha uns cinco dias de férias inteiramente para mim.
- Isso é um convite?
- Quem sabe? - respondi.
- 'Bora lá!! Marca o que te apetecer que eu também vou!

Mais tarde, num outro contexto, ouvi-me a comentar com um amigo:
- Sabes do que é que são feitas as grandes pessoas, aquelas que marcam os outros e são lembradas por muito tempo? Não são feitas de sonhos, nem de grandes capacidades, nem sequer de sábias decisões. Essas pessoas são feitas de "bora lá!!"
É mesmo. Quando queremos de facto aproveitar significativamente o tempo que nos é dado viver, não podemos perder-nos em sonhos nem fingir que vivemos através dos projetos adiados: temos que fazer do "é complicado" um "eu vou fazer isto", preparar a mochila e partir.
'Bora lá!

Ana Amorim Dias


Enviado do Writer


Enviada do meu iPad

E uma vespa? Não queres

- E uma vespa? Não queres uma vespa?
Olho-o de lado e nem respondo à provocação.
Outras vezes são os amigos a dar palpites: "Oh páhh, com uma chopper não vais a lado nenhum"; "Afinal queres andar à séria ou queres passear a viatura?"; "Ao fim de cem quilómetros vais estar toda partida"; "E o vento? Sabes o que é levar com o vento, nisso?"

Apesar de andar a ter uma média de três aulas de mota por mês, e de só vir a ter exame lá para o meio do Verão, não quer dizer que não me ande a "preocupar" com a mota que vou ter. Talvez não venha a possuir, para já, a marca e o modelo que quero, contudo começar logo no topo tira a piadinha toda a tudo. Quero, no entanto, deixar uma palavrinhas a todos os adoráveis seres que, com a melhor das intenções, perdem tempo a opinar sem me entender as razões.

Não são as viaturas que nos fazem, embora digam bastante sobre nós. Não que necessitemos de andar por aí a fazer pregão de quem somos através do ronronar de motores, nada disso. Não obstante, é inegável que o veículo que conduzimos, e a forma como o fazemos, são dois dos mais acabados paradigmas das nossas filosofias de vida.
Entendo quem faz grandes viagens a grandes velocidades. Entendo a adrenalina, o encanto e o conforto das motas feitas para isso. Mas o meu ritmo é diferente. Gosto de grandes viagens e de pequenas também. Gosto de as fazer com muitas rodas, poucas rodas, com asas ou deslizando no mar. Gosto de vias secundárias, de estradas com curvas, onde nos fundimos no horizonte dos nossos renovados encantos. Gosto de parar, de me deter, de observar, sentir e digerir tudo o que estou a respirar. Gosto das vilas e lugarejos, dos cafés e miradouros. Gosto de me deter sem horários a falar com novos grandes amigos. Gosto de possuir o tempo que me dá tempo de aproveitar o meu tempo neste maravilhoso mundo. Esta sou eu e é por tudo isto me encanta, acima de tudo, andar devagar, num exercício de estilo tão cinematográfico quanto o grafismo que imprimo aos meus contos.
Mas calma: não digo que não venha a ter outro tipo de motas nem que não venha, pontualmente, a dar mais abertura ao punho. O que digo, porque o sei, é que sou ávida de vida... mas numa lentidão que me deixe, de facto, saborear-lhe intensamente cada minuto.

Ana Amorim Dias

Diários da vida rural

Diários da vida rural

"Um para mim, um para o Luisinho. Mais um para mim e dois para o Luisinho..."
- Óh Luisinho!!!! Anda ajudar!- chamei-o enquanto separava a fruta boa da outra, que a queda estragara.
O curioso é que o Luisinho veio. Alçou as orelhas, abanou o rabo (juro que é verdade!) e lá veio, aos saltinhos, ajudar-me a apanhar os albricoques. Ou melhor, a comê-los.
- Mais devagar, rapaz, ou vai-te doer a barriga.
Levantou o focinho uns segundos, olhando-me antes de voltar à carga. Depois aborreceu-se e partiu com as duas cabras, que entretanto o vieram chamar, rumo a mais um fim de tarde feliz na liberdade da Quinta.

Foi curioso andar ao damasco com um porco. Não é sempre que fazemos equipa com suínos. Gostei da sua colaboração que, ainda que ruidosa, foi bastante eficiente. É proveitosa esta humildade que os animais nos ensinam. A simplicidade com que se deslocam na vida deixa-nos a sensação de complicarmos tudo demais.

Hoje sei que me toca apanhar mais alperces. Chamá-lo-ei de novo. Damo-nos bem eu e ele.

Ana Amorim Dias

Godzilla

Godzilla

Cheguei a casa e apanhei o Ricardo em flagrante. Sobre a bancada da cozinha, inclinava a pequena taça de leite para que o minúsculo gato ingerisse algum alimento. Ele bem tentou disfarçar a ternurenta imagem que pouco condizia com quem anda sempre a refilar com o excesso de gatos. Fartei-me de rir porque só lhe faltou dizer "isto não é nada do que parece!"
- Se lhe dermos desde já mimos ele deixa de ser selvagem... Não??

O Godzilla continua nas ruas da Quinta, sob o olhar atento da arisca mãe que já não sopra quando o recolhemos para o alimentar a preceito. Ainda sopra e arranha com as suas unhitas de brincar, mas creio que se habituará a nós.
Nem sempre as toneladas de mimos fazem com que se deixe de ser selvagem. O Ricardo sabe disso porque, apesar de me andar a dar mimos há décadas, entende que serei para sempre selvagem. O que ambos sabemos também é que não há nada mais encantador do que seres selvagens que sabem ser mansos... à força de todos os mimos que levam!

Ana Amorim Dias

Imagens de sonho

Imagens de sonho

Chamei-lhe a atenção para um dos muitos quadros pendurados naquela parede. Uma pintura. Uma paisagem. Luminosa e de tons suaves. Apaziguante.
- Olha bem. Este quadro é o teu futuro e o teu passado. Esta imagem é o teu presente.
No instante em que acabei de o dizer, percebi que o escreveria. E depois acordei.

Tinha, desde há muito, a convicção de que também escrevo a dormir. Hoje tive a certeza. Mas porque é que eu lhe disse aquilo? Porque é que lhe disse para ver aquela pintura como sendo o seu futuro, passado e presente? O que nos ensinam os sonhos? O que quer o nosso inconsciente ensinar-nos?

Cheguei a casa e fabriquei a imagem que acompanha esta crónica. Aprecio imagens coloridas, propensas a várias interpretações. Gosto de criar quadros visuais, tanto em imagens como com palavras. E encanta-me conseguir vê-los, antes da criação estar completa, e saber precisamente o que dali vai sair. Talvez vejamos as coisas com os olhos da alma e dos sentimentos. Talvez as pessoas felizes consigam ver muito melhor as qualidades e a beleza do que os defeitos e a fealdade. Talvez a imaginação fervilhante nos permita ver muito mais do que a realidade revela...

Posso decidir concluir que a paisagem tranquila do sonho desta noite talvez seja o meu futuro e o meu passado. Quem sabe? O que me deixa pouca margem para dúvidas é que a maneira como vemos tudo aquilo que olhamos é um reflexo do nosso presente... e da forma como o escolhemos viver.

Ana Amorim Dias

Natural

Natural

O carro estava quente, tinha ficado ao sol. Liguei-o e uma rumba começou a soar. Hesitei. "Ligo o ar condicionado? Náh..." Abri as janelas todas. Uma frescura pouco fresca começou a fazer-me voar os cabelos em todas as direções à medida que a velocidade foi aumentando. E quanto mais os cabelos voavam e a rumba se desenrolava nos meus ouvidos e lábios, mais a alegria me invadia. Uma alegria tão natural como a da temperatura do ar. Prefiro o vento quentinho ao ar condicionado. Sem dúvida.
Gosto do que é natural. Dos sorrisos genuínos. Das caras lavadas. Do ar da rua. Da música à desgarrada. Gosto dos corpos sem tunning; dos cabelos brancos; dos seios sem silicone. Gosto do que é verdadeiro, sincero, genuíno. Gosto das falhas que a verdade revela. Gosto mesmo.

Ana Amorim Dias

Não temos que ser vítimas

Não temos que ser vítimas

- Ainda bem que não vivemos no "Velho Oeste"...
- Porquê? - perguntou ele ao sentir a minha irritação para com um troglodita alcoolizado que me estava a torrar a paciência.
- Porque a esta hora já estava a mandar trabalho ao cangalheiro.

Tenho o estranho hábito de perguntar: "Eras capaz de matar?" Faço-o esporádica e aleatoriamente a quem não conheço bem, não para tirar ilações sobre o seu íntimo e sim para aferir até que ponto a pessoa é coerente com a sua natureza. Talvez, sem dar por isso, me tenha tornado numa investigadora compulsiva da natureza humana, mas tal só acontece por acreditar que quanto melhor nos conhecemos, enquanto indivíduo e espécie, mais hipóteses temos de evoluir.
A minha questão tem tido respostas mais ou menos rebuscadas, mas nunca ninguém assumiu tal incapacidade. O instinto de sobrevivência, a par com o da defesa da prol e território, são fatores mais do que suficientes para, em caso de absoluta necessidade, sermos todos tendencialmente capazes de matar. Creio que quem diga o contrário é porque nunca se viu ou imaginou numa situação limite. Podemos e devemos ser pacifistas inveterados e defender, como convém, o valor supremo da vida. É por isso que, a ser possível, a resolução pacifista deve ser sempre preconizada. É por isso, também, que considero a fuga como um ato de bravura sem precedentes. Mas, e quando isso não é possível? E quando a neutralização do agente agressor com o mínimo dano para ele não é algo que possamos controlar?
É claro que isto não é coisa que se escreva em público, mas fá-lo-ei porque me parece de crucial importância: assumo que em caso extremo de sobrevivência minha, ou dos meus, não hesitaria em matar. É que não piscava os olhos sequer. E porque me parece importante referi-lo aqui? Porque se as mentalidades mudassem e cada pessoa de bem entendesse que não tem por que ser uma vítima, os crimes violentos diminuiriam drasticamente.

Ana Amorim Dias

Derrotas

Derrotas

Deitei-me na cama dele um bocadinho.
- Estás triste, filhote? - eu bem o vira a roer as unhas durante o jogo.
- Não mãe, é que eu tenho uma teoria, sabes?
- Conta!
- Não porque tu vais logo escrever uma crónica sobre a minha teoria!
Prometi-lhe solenemente que não o faria e ele revelou-me como encara as derrotas. Fiquei feliz ao perceber que o mau resultado do Benfica não lhe tinha partido o coração nem lhe iria tirar o sono.

Gosto do Benfica. Se me perguntarem de que clube sou, é claro que respondo "Benfica". Mas o "ser de", neste caso, é uma construção gramatical perniciosa e enganadora. A verdade é que sou simpatizante de um clube, de um partido, de uma religião, e por aí fora...mas nem o clube nem o partido nem a religião me possuem; eles não me definem, não me constroem, não me pagam as contas e nem sequer, se analisarmos bem os factos, me dão o que quer que seja. Pertenço, sim, a um país e a uma família. Quanto a "ser de", apenas sou de mim, tanto quanto alguém pode ser de (e para) si mesmo. Quase aposto que nunca me verão chorar por um clube, partido ou religião. Simpatizar é saudável, mas ser fanático apenas indica que a nossa vida é tão vazia e fútil que tem de ser preenchida com emoções de cegueira.
O Benfica perdeu, paciência. Mas chorar baba e ranho por isso? Afogar-se em tristezas profundas por algo que não tem qualquer importância? Não contem nem com a minha solidariedade nem compreensão. Fico só a perguntar-me como seria melhor a sociedade se toda a energia dedicada a este tipo de situações fosse encaminhada para o crescimento intelectual e emocional de cada indivíduo. Fico apenas feliz por saber que os meus filhos também não sofrem por isto.

Ana Amorim Dias

Como se vê para além do

Como se vê para além do visível?

Olhavamos reverentemente para a magnífica paisagem quando eu decidi interromper o silêncio:
- Se ao menos todas as pessoas que vêem soubessem a dimensão dessa benção...
- Hã?
- Pensa bem, Ricardo: cada segundo de vida em que podes olhar e ver tudo à tua volta... Bolas! Que colossal riqueza!! Impressionante! E nunca agradecemos essa sorte, já viste?
O silêncio dele foi, como de costume, telepático e de emoções partilhadas. À nossa frente o cair da noite, na ria de Cacela Velha, oferecia uma gradação de cores sobre o mar capaz de tirar o fôlego ao mais insensível dos seres. Os tons de azul, rosa, anil e lilás conferiam uma atmosfera quase surreal ao encantador cenário.
Deixámos cantar o silêncio naquele momento encantado.

Mais tarde li um comentário de uma leitora à crónica dessa manhã. A Carmen Cunha agradeceu-me as palavras, acrescentando que o mundo precisa de mais pessoas assim, capazes de "olhar para além do que é visível." Concordei. Devíamos todos olhar mais para além do que é visível. Devíamos todos ouvir mais para além do que é audível; cheirar além do que é cheirável, saborear além do sabor e sentir para lá do toque. Acredito nos sentidos desconhecidos, nos instintos, nos reflexos, nas certezas de que o que projetamos e visualizamos para o nosso futuro pode mesmo acontecer. Mas ainda acredito mais que os nossos cinco sentidos básicos ainda estão sub-explorados. Somos demasiado preguiçosos, andamos sempre à pressa e completamente desatentos a tudo o que, com o apuramento mais consciente dos sentidos, podemos absorver.
Ver para além do visível é, de facto, muito simples: basta querer. E é quando nos habituamos a fazê-lo que nos expandimos...em sucessivos e intermináveis momentos do mais puro entendimento.

Ana Amorim Dias

Mãe, tu és sensível ?

- Mãe, tu és sensível?
Íamos sozinhos no carro, eu e o Tomás, e a questão surgiu tão de repente como aqueles condutores que não param no stop.
O primeiro instinto foi responder que não, que sou bruta como um rinoceronte ao ataque, mas não ia enganar o miúdo!
- Sou, filho, sou sensível com'ó raio...
- Ahhh!
- Porque perguntas?
- É que a minha professora de português disse que os escritores são pessoas muito sensíveis. Eu pensei que ela estava a gozar porque tu és um bocado bruta...
O sorriso do costume atingiu-me em cheio. Comecei a explicar-me.
- Posso revelar-me um pouco insensível, sim, mas é uma questão de proteção porque, sabes, filhote, não se pode escrever sem ser absolutamente sensível. Não bem, pelo menos.
- Hum...
- Para ir ao fundo das questões, para criar personagens credíveis e fazer passar emoções, temos que sentir tudo. Caso contrário é como se estivéssemos a servir um prato sem sabor, entendes? Mas só podes dar emoções se as sentires e para tudo se sentir há que ser muito sensível...e muito corajoso também.

Sentir tudo é terrível: coloca-nos numa posição de fragilidade por ficarmos expostos a todas as dores do mundo.
Sentir tudo é maravilhoso: coloca-nos numa posição quase divina por ficarmos expostos a todo o amor do mundo.
Sentir, escrever, emocionar: podemos entrar no interior de qualquer outra pessoa e entender tudo o que por lá se passa. Pode ser tão horrendo quanto soberbo, mas é só assim que, depois, se consegue lá entrar de novo para inspirar e mudar alguma coisa...para melhor.

Ana Amorim Dias

Conchita

Conchita

Sábado à noite, um pouco arredada do que se passava no mundo exterior, não me pude inteirar bem sobre o que estava a acontecer no panorama musical europeu. Mas deu para entender que algo se passava.
Ontem à tarde, quando tive uns momentos de sossego, fui investigar.
As barbas da Conchita, mais do que incomodar-me, deixaram a interrogação: porquê? Uma gaja gira não anda por aí com o buço em desalinho, muito menos com uma barba farfalhuda! E se esse cuidado se tem no dia a dia, muito mais em aparições televisivas de uma tal dimensão, certo? Bem, enquanto a música durou e a voz dela soou, a estranheza da figura saiu-me totalmente da linha dianteira das considerações porque a letra e a voz eram tão fortes e a melodia tão boa que nada mais importava.

Antes de equacionar fazer qualquer juízo, fui investigar: tinham que existir bons motivos para tanta desarmonia visual. E existem. Pelo que entendi, a Conchita, que também é Tom, tem sofrido muito na vida devido ao seu duplo género, e esta foi a forma que encontrou para dizer algo muito simples: "Parem lá de ser mauzinhos com quem é diferente, ok?"
Com a enorme visibilidade que atingiu, fiquei apenas a perguntar-me qual a proporção, no meio de tantos milhões que o/a viram, terão entendido a mensagem. Para bom entendedor meia palavra basta, mas quantos serão os bons entendedores? É que, no fundo, é muito fácil perceber que uma das mais basilares leis para a criação da humanidade perfeita é a aceitação da diferença. Como podem tantos não ver isso?
Julgar é fácil, mas normalmente injusto.
Criticar é fácil, mas normalmente destrutivo.
Ser preconceituoso é fácil, mas é bárbaro também.
Podemos coexistir sem nada disto... E que salto evolutivo isso não implicaria!

Poderia desejar sorte ao Tom/Conchita, contudo não é preciso. Pessoas assim, com enormes dons e ainda maiores forças, constroem o seu destino e, pelo caminho, com sorte ou sem ela, acabam por mostrar ao mundo o que ele precisa aprender.

Ana Amorim Dias

La mirada oscura

La mirada oscura

Depois de, há uns dias, ter ido à biblioteca de Huelva falar sobre o meu trabalho, recebi um mail do António (o amigo que me convidou), a narrar que um dos participantes me tinha escrito um poema:

"Ella tiene una mirada
oscura
la voz que suelta
en esta memoria de montes
recrudece tiempos hechos
altavoces con sordinas
cantos borrachos de amaneceres

En las temporadas de nubes
Huesuda de manos
construye emociones abisales
para los que estamos detrás de los ojos
ciegos pendurados
en las orillas de los estantes vacíos…
en las revistas ajadas…
con las pupilas inquietas

Ella tiene una mirada
oscura
dos pétalos de noche
en este (a)mar encallado"

Qual musa agradecida, apressei-me a enviar ao simpático chileno um mail no qual expliquei que era a primeira vez que alguém me dedicava um poema.

Respondeu assim: "Ya ves, las palabras nos salen a borbotones… algunas veces estas indómitas resuelven por sí solas, cuando el estímulo las enloquece. Me encanta que te encante… pues es creación tuya… solo que salió de mis manos."

O que não contei ao Daniel, no mail que lhe enviei, foi sobre o sentimento doce que nos fica a marinar na alma ao percebermos que deixamos poéticas marcas nos outros. O que não lhe disse foi que, por mais que os outros nos façam nascer, a borbotones, lindas palavras, elas são nossas e para partilhar com o mundo.
Sei que tenho uma mirada oscura porque os meus olhos são negros, mas o certo é que só as miradas mais claras e repletas da luz do encanto pela humanidade inteira, podem fazer de nós musas capazes de despertar poesia em ilustres desconhecidos.

Obrigada Daniel.

Ana Amorim Dias / Daniel Alejandro Barrón Guerra

A minha patroa e eu

A minha patroa e eu

"Faz isso!"
"Já faço, agora não me apetece!"
"Ana, isto tem que ser feito, sabes disso!"
"Eu sei, agora cala-te."
"És mesmo insubordinada!"
"E tu és prepotente. Já disse que faço, mas tem que ser quando me apetecer, senão não fica nada de jeito."
E a Ana patroa cala-se, entendendo a razão que se encerra nos argumentos da Ana subordinada.

Pergunto-me amiúde se me faria bem passar alguma vez pela experiência de ter um patrão. Nunca tive que ceder, laboralmente, a qualquer autoridade. Sou eu que dito as regras, que imponho os prazos, que organizo o trabalho, a orientação, o contexto, o ritmo, tudo. Sou eu que invento os meus projetos e que decido se este ou aquele serviço é para aceitar ou rejeitar. Sou eu que me amanho com a ausência de lucros, com o trabalhar para aquecer ou com as grandes vitórias que por vezes também chegam. Mas pertencer a estruturas hierarquizadas sem estar eu no topo da cadeia seria, aposto, um problema bastante grave pois não sei existir sem poder de decisão. Tivesse eu que estar a fazer o que me mandassem, sem o instinto predador a soltar-se em cada ação, e a vida perderia grande parte do seu brilho.

No meio de tudo isto sei que tenho uma sorte incrível, construída pelas minhas próprias mãos durante toda a vida adulta. É claro que ser "subordinada" de uma patroa louca, que não tem a mínima noção de que o meu corpo tem limites, exige muito de mim. Mas também entendo que ser patroa desta artista frenética é tudo menos uma "pêra doce". Talvez por isso tenhamos aprendido a amenizar, amiúde, as nossas discrepâncias, partilhando calmamente uma boa caneca cheia do apaziguador café.

Ana Amorim Dias

Quebrando regras

Quebrando regras

O carro que circulava à minha frente ia a uns vinte à hora. Verifiquei que o tracejado pintado no asfalto permitia a ultrapassagem, mas não a realizei. Quem pintou aquilo (ou mandou pintar) deve tê-lo feito depois de almoço pois, com a curva logo a seguir, devia ser zona de traço contínuo.
Um pouco mais à frente fartei-me de rir: numa reta com boa visibilidade e sem quaisquer interseções, a linha era contínua!
Bem, e o tal carro continuava à minha frente a vinte à hora...

O semáforo estava vermelho para os peões. Na larga e comprida avenida não se viam carros nem de um lado nem de outro.
- Vamos, babys!- Agarrei nas mãos dos meus filhos e avancei.
De cada lado da passadeira estavam umas dez a quinze pessoas que começaram também a atravessar.
- Viste, amor?- perguntei ao Tomás.
- O quê, mãe?
- A diferença entre lobos e ovelhas...
Ele entendeu. Mas eu quis explicar melhor a alegoria.
- Há líderes e seguidores, como acabei de te mostrar. Mas para se ser um bom líder há que cuidar que nunca se coloque em risco quem estiver disposto a seguir-nos.
Expliquei-lhe também que as regras são o que mantém a ordem da sociedade e que elas servem para ser seguidas. Contudo devemos reservar-nos sempre o direito de as pensar, questionar e, por vezes, quebrar. Sob risco de, não o fazendo, nos arriscarmos a ser meras mulas, de olhos vendados, a deslocar-se pela vida sem qualquer autonomia.

Mais tarde pensei melhor na forma como lhes dei esta lição. Agi bem? Ou estarei a potenciar dois futuros fora-da-lei? Tranquilizei-me depressa: sei que é bem mais perigoso ser-se cordeiro que lobo.

Ana Amorim Dias

Tourada

Fui incapaz de aplaudir

- Eu não vou!
- Calma, também ninguém te está a dizer para ires.
Há uns dias o Ricardo perguntou aos miúdos se, antes de irmos à feira de Sevilha, gostariam de ir à tourada. Embora, ao contrário deles, a minha primeira reação fosse a recusa, percebi bem depressa que apenas me sentiria confortável para escrever sobre o tema se aceitasse ir a uma. Talvez assim entendesse o que leva tanta gente a pagar para delirar com a morte de animais inocentes.

O primeiro touro entrou na arena em passo lento, olhando confuso em seu redor. Vieram os quatro homens das capas rosa, para o cansar um pouco e depois, ao sinal do lenço branco do presidente da corrida, apareceu o senhor a cavalo, com um chapéu à Dom Quixote, que lhe deu duas facadas no dorso para que perdesse o sangue e as forças. Seguiram-se as bandarilhas, espetadas de par em par e, no fim, o matador, que lhe enterrou mais duas espadas nas costas. Mas não o deve ter feito com a eficiência devida porque o pobre animal ainda teve que levar uma misericordiosa estocada no cimo da cabeça para ir finalmente ter com os anjos do paraíso taurino.

Assisti à morte de um atrás de outro, até à conta de meia dúzia. Sempre a tentar lidar com os arrepios indignados que me percorriam a pele e com o sentimento de culpa por não desatar aos berros para tentar salvar pelo menos um dos pobres animais. Mas o que mais trabalho me deu foi o exercício de compreensão da multidão exultante. Vibravam com a coragem dos homens dos grandes "cojones" e dos fatos circenses? Entusiasmavam-se com o sangue que corria dos touros? Tiravam prazer de estar a ver um nobre animal, acossado e confuso, a fazer papel de tonto antes da final expiação? E que dizer da efusiva aclamação geral no momento em que o bichinho tombava, já sem vida?
Como poderei adjetivar isto? Grotesco? Desumano? A verdade é que não sei, não consegui decifrar o mistério de haver gente que vê "arte" na morte por diversão.
Torceria pelo toureiro se ele estivesse nos campos, sem público, a defender a sua vida e a dos seus em pé de igualdade com o animal. Aí teria a minha admiração e palmas. Ali? Na arena da Maestranza? Fui incapaz de um aplauso.

- Mãe? O que é para ti a tourada?- perguntou o Tomás mais tarde.
- É uma manifestação aberrante da ausência de limites do ego humano.

Ontem fiquei mais triste por ver tantos milhares de "humanos" a vibrar como animais, do que por ver seis animais que morreram como nobres seres.

Ana Amorim Dias

Parabéns por seres grande

Parabéns por seres grande

Já me têm dito, com uma piscadela de olho, que atrás de um grande homem está sempre uma grande mulher. Às vezes nem respondo, limito-me a sorrir. Outras vezes contraponho que os grandes homens já nascem grandes e que apenas apuram a sua grandiosidade quando sabem caminhar ombro a ombro com a mulher certa.

- Quero levantar um brinde!- disse o Joãozinho.
Levantámos os copos e o 'quase' aniversariante tomou a palavra:
- Um brinde à equipa perfeita que eu e a vossa mãe fazemos!
- Permite-me que te corrija: um brinde à equipa perfeita que nós os quatro fazemos.
O jantar surpresa que antecedeu o dia de aniversário do Ricardo foi só um momento, entre muitos, em que nos sentimos de facto parte de algo grandioso.

Como de costume, não sei se o homenageado lerá estas palavras. Isso não faz qualquer diferença porque o que vos vou escrever, demonstro-lhe todos os dias. Ele é forte como uma rocha. E amo-o, não por obra do acaso ou dos caprichos do coração, mas porque a sua solidez cativante me conduz pela vida com a certeza do apoio incondicional. Um homem tem que ser realmente grande, enorme, quando se dedica a proporcionar, de todas as maneiras possíveis, o crescimento da mulher que caminha a vida a seu lado.
Parabéns, Ricardo, pelo dia de hoje e por saberes ser sempre assim tão grande!

Ana Amorim Dias

Uma questão de tamanho

Uma questão de tamanho

O Ilídio chegou e atirou-me as chaves.
- Vá, vai!
Acho que é louco o suficiente para me deixar a mota nas mãos. Mas, como sou uma pessoa consciente, ainda só tive nove aulas e estaria a cometer uma ilegalidade (e um atentado contra a minha segurança?), optei por apenas me sentar em cima da "coisa". Uma BMW 1200, cheia de malas atrás e tão alta que até com o meu metro e setenta e sete só com a ponta dos pés conseguia tocar em simultâneo o asfalto.
- Liga lá, para lhe sentires os tremores. - provocou-me.
- Mas tu estás doido? Esta ainda consegue ser mais assustadora que a pesada Road King do Eric! Pelo menos com essa poiso completamente os pés no chão!

Ora venham cá dizer que o tamanho não importa! Quem diz isso é porque nunca se sentou em cima de motas assim. O curioso é que, olhando para a foto em que me estava a desmontar da mítica Harley que correu o mundo, a vejo muito mais pequena do que quando lá estou em cima. E isto conduz-me a algumas reflexões sobre a relação da forma como encaramos os tamanhos em função da proximidade. É claro que uma baleia ou uma montanha, vistas ao longe, se apresentam com uma grandeza mais pequenina do que quando as admiramos bem de perto. Da mesma forma que é certo que, quando se domina um monstro maior e se passa depois para outro mais pequeno, este último deixa de ter o grande tamanho com que inicialmente era visto.
Daqui a pouco volto à Honda 500 para a terceira aula sobre ela. Se na segunda lição já a senti um pouco mais pequena, creio que hoje a sentirei ainda mais enfezada (sobretudo depois de ter estado sobre a BMW matulona). É certo que, ao perto, tudo nos parece maior, mas o único tamanho que realmente pode importar é o do nosso coração. Temos que perceber se nos bate no peito o coração de um cordeirinho bebé ou o de um corajoso leão. Temos que estar conscientes que o tamanho mais determinante para as nossas conquistas é o da vontade de nos superarmos; o mais importante é o tamanho do esforço por darmos o nosso melhor para ultrapassar certos receios, por forma a atingir aquilo a que nos propomos... Mesmo que tudo isso, às vezes, continue a acelerar um pouco o nosso grande coração.

Ana Amorim Dias