(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

11.12.13

Na palma da mão

Na palma da mão

Desci as escadas a falar com convicção.
- Sabes o que se diz das pessoas que falam sozinhas, não sabes?-
- Eu não estava a falar sozinha, estava a falar com a palma da minha mão, olha!-
Tinha apontado só a lista de coisas a fazer até ao jantar (porque as do serão já não couberam) e vinha a verificá-las.

Quando voltei às minhas atividades, que ainda iam só a meio, surgiu-me a dúvida: será que se consegue fazer tanta coisa? Poderemos assegurar as nossas funções habituais e ir acrescentando mais e mais e mais? Sairão todas bem? Ou estarei a abusar e a correr o risco de falhar em algumas?
Lembrei-me que o Ricardo se ofereceu para me ajudar e lhe respondi que não precisava. Quero conseguir fazer tudo. Fazer tudo e fazer bem. Mas porque é que hei-de ser orgulhosa e achar que sou a super mulher?
Mudei para a atividade seguinte e olhei para as palmas das minhas mãos. Devemos esgotar todos os nossos recursos e fazê-lo com gosto e brio. Mas qual é, afinal, o problema de aceitar alguma ajuda? Isso não é vergonha nenhuma e dá-nos a consciência humilde de que todos temos limites.
Agarrei nas palmas das mãos e fui-lhe dar um abraço. Entendi que as mãos também servem para aceitar estas bem vindas ajudas.

Ana Amorim Dias

Inesperados

Inesperados

Apesar de estar acompanhada, entrei para o carro a rir sozinha. Esperava tudo menos terminar a noite a conduzir um motard francês e outro alemão para uma ceia tardia que se veio a revelar numa caudalosa nascente de gargalhadas e crónicas.

- Esperavas terminar hoje a tua noite com dois escritores meios loucos, Ralf? - Perguntei ao alemão que só regressará a Munique lá para finais de Abril.
- Eu sou surpreendido a cada instante, Ana! A vida é um inesperado constante e interminável... E é fantástico!-
- Hum... Já descobriste a energia certa para a viver.- comentei com um certo ar catedrático.

O inesperado tem outro sabor e valor. O inesperado ensina-nos muito e torna-nos mais humildes e sábios. Mas fiquei a perguntar-me: os maravilhosos inesperados da vida atingirão mais quem se põe a jeito? Ou atingem todos por igual e apenas há quem saiba tirar deles maior partido? Desconfio que as pessoas demasiados inertes e pouco dadas à emoção perdem milhões de surpresas. Quem não se abre a partilhas humanas fica enjaulado em si mesmo. Quem não se deixa levar por impulsos de aproximação ao próximo perde quase todo o encanto da existência. Quem não entrega a sua genuinidade completa, olhos nos olhos, não está apto para se relacionar de verdade; para tocar e ser tocado.

Não esperava terminar a noite da primeira apresentação do meu último livro a cear apenas com o Eric e o Ralf. Mas o realmente inesperado foi, ao levantar os meus olhos durante um discurso inflamado, deparar-me com o ar fascinado com que olhavam os dois para mim.
E,vendo bem, o que me fascina no inesperado é perceber que o posso potenciar eu mesma.

Ana Amorim Dias

Adeus sexta feira 13

Adeus sexta feira 13

O balde de água fria caiu-me em cima ao princípio da tarde. Estava afogada em trabalho, vindo de várias frentes, quando me foi noticiado o "naufrágio": por decisão alheia à vontade do apresentador, o "5 para a meia noite" de sexta feira 13 terá que ser exclusivamente dedicado aos "filhos do rock".
- Podemos adiar para Janeiro?- perguntou-me o Bruno, chefe de redação do programa.
Comecei a andar às voltinhas.
"Rápido, Ana! O plano B, o plano C! Pensa, pensa!!"
- Tem cinco minutos, Bruno? Vamos falar um bocadinho!-
Expliquei-lhe tudo o que queria explicar e expus todos os meus argumentos, sempre com a empatia natural com que temos contactado ao longo dos últimos dias.
Quando desliguei o telefone confesso que estava um pouco triste mas sabia que nem o Bruno Jerónimo nem o Nilton me deixariam ficar mal. Sabia (porque isto sabe-se logo) que estava perante dois homens de honra, palavra e profissionalismo e que, por isso, a solução seria encontrada.

No meio de um dia de loucos, depois de mais umas quantas chamadas e outras tantas diligências, a solução ganhou vida.
Adeus sexta feira 13.
Olá segunda 16!
Nem tudo é como queremos e planeamos, mas sempre que me deparo com pessoas de elevados valores, que decidem lutar ao meu lado, não posso deixar de me considerar uma tremenda sortuda!

Portanto já sabem: segunda feira 16, deitem-se um pouco mais tarde... talvez valha a pena.

Ana Amorim Dias

All we need is love

All we need is love

Mas porque é que acordei quatro horas e meia depois de me ter deitado? Não havia nenhuma mosca no quarto. Os miúdos estavam em silêncio... Não entendo.
Confiro as horas. Sim, dormi só quatro horas e vinte. Acho que me dói um pouco o corpo. Mas o pior são os olhos. Ardem. É do sono.
Viro-me outra vez para baixo. Sei que já não serve de nada pôr-me na posição preferida, não voltarei a dormir.

Consolada com a água quente do duche a chover sobre mim, lembro-me dos beijos que ontem dei ao Tomás. Como trabalhei dezoito horas e quase não lhe dei atenção todo o dia, ao chegar a casa fui ao quarto dele e, mesmo enquanto dormia, enchi-o de beijos e de amor. Lembro-me de ter pensado, enquanto o acarinhava, qua talvez fosse tempo perdido por ele não estar consciente.

- Vais ficar aí para sempre?-
- Hã?-
- Estás há meia hora no duche, eu também quero ir!-
- Ah, sim, claro...-

Devo ter perdido a noção do tempo, debaixo daquela água quentinha. Perdi a noção do tempo, mas ganhei noções de sabedoria. Perguntei-me quantos beijos me terão dado os meus pais enquanto eu dormia. Perguntei-me quantas manifestações de amor já recebi sem saber. Perguntei-me até que ponto o facto de sempre me ter sentido tão amada não será o fundamental alicerce deste amor todo que sinto por toda a gente.
Nunca uma demonstração de amor é perdida! Por mais que o destinatário não a veja nem tome consciência dela: ele recebe-a. E, mesmo sem a sentir, absorve-a e integra-a nos códigos da essência.
All we need is love. Só precisamos de amor. De o receber e de o dar, mesmo quando o destinatário se encontre no mais profundo dos sonos.

Saí finalmente do banho, já sem sono nenhum. Estas reflexões despertam-me sempre muito...

Ana Amorim Dias

Imortal

Imortal

Agarrei-lhe no casaco e puxei-o para trás.
- Mas tu és doido? A atravessares a estrada assim ainda te matas!-
- Eu sou imortal!-
O ruído dos carros, naquela movimentada rua de Paris, fez-me duvidar do que ouvi.
- O que é que disseste?-
- Eu sou imortal!-
Rompi em gargalhadas.
- E sabes que mais? A tua imortalidade vai-me chegar pelo correio na semana que vem!-

Chegou ontem. Eu andava com a normal excitação que antecede sempre a chegada material de um novo livro. Quem escreve sabe do que estou a falar. Há uma espécie de ganância incomparável. Nem quando sabemos estar a desembrulhar um anel de diamantes a sensação é tão boa e sim, posso comparar. Umas folhas de papel feitas livro, se é escrito por nós, ganham um valor superior a qualquer outro objeto; encerram em si um prazer maior do que qualquer outra coisa nos pode trazer.

Dizem que os "diamonds are forever". Talvez.
Disse ao Eric que imortalidade dele me chegaria pelo correio. Talvez.
Digo-vos que a imortalidade é ganha por quem sabe deixar a sua marca. Tenho a certeza. É o que sinto de cada vez que um novo livro me chega na volta do correio.

Ana Amorim Dias

Nas asas certas

Nas asas certas

No outro dia saímos todos de casa atrasados.
- O Ser Humano devia ter asas. Assim éramos mais rápidos e não tínhamos que andar sempre a correr.- comentou o Ricardo enquanto nos precipitavamos pelas escada abaixo.
- Não sejas parvo! O Ser Humano tem as melhores asas de todas as espécies. Eu não trocava as asas interiores pelas exteriores, digo-te já!-

Mais tarde, nesse dia, voltei por acaso a ver o vídeo do silencioso reencontro, no Moma, da artista performativa Marina Abramovic com uma antiga paixão que não via há mais de 30 anos. Comovi-me de novo. E lembrei-me das tais asas.
Não creio que seja apenas a capacidade intelectual da nossa espécie que nos traz toda a vantagem. O que nos faz maiores, melhores, mais rápidos e aptos à evolução, é esta capacidade de nos eternizarmos no amor. Quem ama é imortal. Pelo menos enquanto ama.
Temos asas interiores, capazes de nos levar para fora do nosso corpo em segundos, porque sabemos amar.
Reforço o que disse enquanto, naquela manhã, descia as escadas à pressa: não trocava as asas interiores, que todos temos, por absolutamente nada. Sei que voamos com as asas certas.

Ana Amorim Dias

Adolescência

Adolescência

Eu começava a duvidar da normalidade da nossa relação. Nada pode ser tão absurdamente perfeito o tempo todo. Tive que esperar pelos seus doze anos e meio para ter, finalmente esta manhã, a primeira "pega de caras" com o meu pequeno gigante.
Tinham-me avisado. Tinham-me dito raios e coriscos dessa espécie alienígena que se nos apodera dos filhos durante a adolescência. E eu ria-me, alicerçada na paz com se vive com o Tomás.
Mas deixem-me recapitular os factos:
- Hoje vais vestir esta blusa!- impus-lhe, numa exceção à regra da sua liberdade indumentária. Tinha comprado três, em cores diferentes, giríssimas, claro, e ele nunca as usou.
- Não.-
Normalmente o mau feitio matinal de ambos dissolve-se no calor dos mimos, mas hoje explodimos os dois nesta birra sem sentido.
- Atreves-te a desobedecer-me? Não vás por aí, meu menino!-
- Vá, calma. Não enerves o miúdo, que vai ter teste de matemática agora...- interveio o Ricardo com a doçura habitual.
- Ele vai vestir esta blusa hoje e não há mais conversa!- comecei a subir o tom.
- Não visto!- até fez beicinho, o pobre.
Depois, ao ver a minha autoridade ameaçada e apercebendo-me do enorme perigo do facto, usei de um expediente muito feio...
- Garanto-te que se ela blusa não for usada hoje, o treino de basquete vai para o espaço!!-

Quando nos encontrámos na sala, para tomar o pequeno-almoço, vi que tinha a dita blusa enchouriçada por baixo de uma das suas coloridas sweatshirts desportivas.
- Levas-me ao treino? Tenho a blusa vestida...- uma humildade amuada trespassava-lhe a voz.
- Sim, claro: nunca falho ao prometido.-

Agora estou a sorrir ao lembrar-me da sua capacidade de arranjar soluções diplomáticas. E estou a rir-me de mim. Afinal qual dos dois estará na adolescência? O adolescente dócil e de fácil trato ou a adulta que entrou em pânico ao ver a sua autoridade em perigo?
É demasiado ténue esta linha que separa a parentalidade firme e consciente do despotismo irracional. De hoje em diante tentarei "comprar" apenas as "guerras" que valham realmente a pena. Há que mostrar sempre que, até à independência, há regras a cumprir, mas é preciso também dar espaço suficiente para que os recalcamentos não nasçam.
Acabei de ganhar três blusas giras e, daqui para a frente, ou o deixo escolher a roupa, ou aposto apenas em valores seguros.

Ana Amorim Dias

Muita luz

Muita luz

- Mãe, tu tinhas dito que era dia um!-
- Hã?-
- A árvore de Natal e o presépio: disseste que se montam sempre no dia um de Dezembro.- reclamou o João.
- E já é dia dois, não é?-
O Tomás, entretanto, aproximou-se interessado.
- Então vamos lá! Mas, como já sabem, há que criar as condições!-
E lá andaram, a rodopiar atrás de mim, enquanto eu acendia a lareira e as velas e punha música de Natal a soar, bem alto, na casa toda.
Fomos buscar a parafernália e começámos.

À medida que os ramos do pinheiro ganhavam volume a seis mãos, deixei-me envolver pelas gargalhadas felizes destes dois anjos e lembrei-me de um outro, que adorava esta época como nenhuma outra.
- Sabem quem adorava isto?-
- Sabemos: o avô João!- responderam quase em uníssono.
Eu sorri, invadida por um sentimento de missão cumprida, sentindo a luz quente de uma companhia que nunca me deixará.
Pouco depois, sem saber muito bem como, estavamos os três no chão, envoltos em luzes brilhantes.
"When we finally kiss good night
How I'll hate going out in the storm!
But if you'll really hold me tight
All the way home I'll be warm"... Cantava o Dean Martin.

Gosto de luz, muita luz e não gosto de dizer adeus. Mas vejo as memórias, que quem já partiu deixou em nós, como um abraço apertado que nos mantém quentinhos para sempre.

Ana Amorim Dias

Caprichos

Caprichos

- Já ouviste a música da irmã do Ronaldo?- perguntou-me o Ricardo.
- Reservo-me o direito de não te responder a essa pergunta...-
- Diz lá! ...É que gozaram tanto com ela na rádio, no outro dia!-
- Espera.-
Peguei no iPad, fiz soar o barulho através do YouTube e fiquei a olhá-lo para lhe ler a reação.
Nem um minuto passou para que outras reações se manifestassem.
- Mãe!? A sério!? Não me vais fazer ouvir isto, pois não? - reclamou o Tomás que, por estarmos todos dentro do carro, não tinha para onde fugir.
- Tira isso depressa! Está-me a furar os ouvidos!!- ajudou o João.
Desliguei de imediato e poupei-nos ao sofrimento. Fizemos o resto da viagem com prazer, a ouvir de facto música. Por um lado fiquei feliz, ao constatar que os meus pequenos anjos já se sabem proteger de atentados aos seus sentidos. Por outro lado fiquei triste, ao pensar que talvez haja mais arte perdida por falta de oportunidades do que lixo promovido por caprichos e dinheiro.

Ana Amorim Dias