(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

14.7.13

Agora

Agora

O João vem silencioso no banco de trás. A Ana Carolina canta.
"Às vezes ando só trocando passos com a solidão, momentos que são meus e que não abro mão..."
No meio do caminho, da voz intensa e dos acordes melódicos do seu "violão", começo a perder-me nas estradas do pensamento. Volto ao passado. Avanço futuro adentro. Reconheço-me uma e outra vez, amando cada segundo desta excursão etérea.
"Já sei olhar o rio por onde a vida passa, sem me precipitar nem perder a hora, escuto no silêncio que há em mim e basta..."
Regresso ao presente. Percebo que não concordo com o aforismo, tantas e tantas vezes usado, de que quem lembra o passado e sonha o futuro se esquece de viver em pleno o presente. Discordo. Em absoluto.
"Outro tempo começou p'ra mim agora. Vou deixar a rua me levar, ver a cidade se acender..."
Adoro lembrar o passado. Faz parte de mim, compõe-me a essência. Amo sonhar o futuro. Também ele um dia fará parte da estrada percorrida. E então percebo, com a notável clareza que me costuma acompanhar estas singelas conclusões, que o presente é tão mais intenso quanto nele conseguimos condensar as vivências passadas e as aspirações futuristas. Na verdade parece-me que só assim é que o "agora" se intensifica e exponencia a ponto de se tornar inesquecível.

Ana Amorim Dias

Tortura chinesa

Tortura chinesa

Não faço a mínima ideia se as piores torturas são as chinesas. No meu imaginário fiquei com essa ideia, quem sabe se devido ao comum comentário: "Isso é pior que tortura chinesa".
No entanto não concordo com torturas. Não deste género pelo menos! O que me leva à questão: como torturaria eu alguém? Caso tivesse que castigar realmente alguma pessoa, ou me visse obrigada a arrancar-lhe à força um segredo, usaria métodos com requintes de malvadez bem mais apurados. E a jóia da coroa seria, sem qualquer sombra de dúvida, o trio de vozes do inferno. Ninguém me tira da ideia que não há sofrimento mais atroz do que ser trancado numa sala por tempo indefinido na companhia da Teresa Guilherme, da Júlia Pinheiro e da daquela Cristina cujo apelido não sei, mas que apresenta o programa com o Goucha. Com as três sempre a falar, claro.
Creio que as vou contactar para ser agente delas. É que, se quem ainda usa torturas tomasse conhecimento do método e da sua eficiência, muito rapidamente, entre as quatro, endireitaríamos a dívida deste país.

Ana Amorim Dias




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Que Deus me castigue sempre assim

"Que Deus me castigue sempre assim"

Há qualquer coisa na forma como os homens cozinham que lhes confere vantagens. Não consigo é definir o quê, por mais que me esforce.
Creio que não mentiria se dissesse que muitos dos mais incrivelmente deliciosos repastos com que já me regalei foram criados por homens.

- Que Deus me castigue separe assim...- comentou o Vítor enquanto provava os divinais camarões fritos que acabara de fazer.
Fiquei sem perceber o que é que me estava a saber melhor: o sabor incrível daquele camarão interminável ou o sabor emocional daquela frase inesperada? Vim a saber que a frase era dita pela avó ( ou seria o avô?) da Micá, mulher do Vítor. O certo é que ao ouvi-la, tão convincente e em momento tão próprio, compreendi que é também dos homens que me têm chegado os ensinamentos mais profundos, úteis e inesquecíveis da minha vida. Por isso, e em jeito de comemoração emocionada, agarrei-me ao meu "pandinha" e afoguei-o com mimos, desejando silenciosamente que Deus me castigue sempre assim: com a presença de pessoas maravilhosas na minha vida!

Ana Amorim Dias

Princípio ativo

Princípio ativo

As constipações costumam começar-me com uma leve dor de garganta. Para combater a coisa, que de verão não dá jeito nenhum, ataquei uma caixa de anti-inflamatórios. Ao fim de três dias de auto-medicação, acordei com uma dor medonha e, ao ver a garganta ao espelho, percebi que o assunto só lá ia com antibióticos.
Nove da manhã e eu a entrar no centro de saúde.
- As urgências são entre as oito e as oito e meia, mas se quiser pode esperar até às duas da tarde porque o doutor talvez a veja no meio de alguma das consultas marcadas.
Como a senhora não deve ter culpa daquele atendimento tão eficiente, rosnei-lhe um "muito obrigada" o mais mansamente que pude.
Guiei até ao centro de saúde mais próximo onde um médico me pudesse ver a maleita àquela hora tão estranha.
Paguei quinze euros e quarenta e cinco cêntimos ( parece que já não basta apresentar o cartão de dadora de sangue para ter isenção de taxas) mas fui rapidamente atendida.
- O que é que tens? -
Pensava que só tinha amigdalite mas depressa me apercebi de estar também com uma crise aguda de estupefação.
- Garganta.- respondi laconicamente enquanto tentava adivinhar a nacionalidade do médico.
- Abre a boca.-
Garanto que não sou preconceituosa mas, com aquele tratamento de choque, o rabo de cavalo e o brinquinho do dito doutor começaram a fazer-me questionar se não estaria nos "apanhados".
Expliquei que anti-inflamatórios tinha tomado e durante quanto tempo.
- Qual é o princípio ativo desses?-
Não pude conter-me.
- Como deve calcular, não faço a mais pequena ideia, mas devia ser um princípio muito pouco ativo porque não me fizeram efeito!-
- Bem, vou receitar então uns anti-inflamatórios...-
Foi nesse momento que que descobri o meu princípio ativo! Já tinha aturado muita coisa estranha em meia manhã apenas; a garganta doía-me imenso e não me ia dali embora sem uma solução eficaz!
- O doutor não ouviu o que eu disse? Não viu como tenho a garganta? Já tomei isso três dias, isto só vai ao sítio com antibióticos!-
Pelos vistos o meu princípio ativo fez efeito imediato naquele senhor doutor. Passou-me a receita correta e desejou-me as melhoras. Durante uns dias ainda me custou imenso engolir, mas fiquei feliz por ter descoberto que tenho princípios ativos que me protegem de "engolir" tudo aquilo que não quero.

Ana Amorim Dias


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Na reunião das quatro e meia

Na reunião das quatro e meia

Digam lá o que disserem a tecnologia traz possibilidades fantásticas. A reunião estava marcada para as quatro e meia. Três pessoas em Paris, uma no sul de França e eu... na Quinta do Monte. Cheia de calor, e como ainda havia tempo, decidi dar um mergulho na piscina.
- Mãe! Pediste para te avisar quando fossem quatro e um quarto!- avisou-me o Tomás.
Saí da piscina, sequei-me um pouco e coloquei um vestidinho leve, não fossem lembrar-se de fazer a conferência com o vídeo ligado. Com o cabelo ainda a pingar, e o ipad já a tocar, dirigi-me para o escritório. Lá fora, o barulhinho dos aspersores e das crianças a brincar na água, não me conseguiram desconcentrar. Pelo contrário, conferiram-me uma dimensão docemente humana ao início de mais um desafio profissional.
Quarenta minutos mais tarde, depois de me comunicar em três línguas diferentes e de definir em conjunto as diretrizes iniciais do projeto, cheguei de novo à conclusão de que adoro viver nesta era. O mundo está tão mais ao nosso alcance quanto crescem todas as possibilidades de com ele interagirmos.

Ana Amorim Dias

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Tostas zen

Tostas zen

Quando ele entrou na cozinha eu navegava no caos. Mas num caos limpo, coerente, saboroso, tranquilo.
- Não suporto ver isto assim...- e virou costas sem que eu sequer precisasse de o mandar embora. Não me apetecia deixar a minha harmonia ser perturbada por resmunguices rabugentas.
Continuei a colocar o queijo sobre o pão com gentileza; a juntar o molho entre passinhos de dança e a adicionar os restantes ingredientes enquanto cantava a música que passava lá fora. A desorganização foi-se arrumando como que por magia à medida que as tostas iam saindo, apetitosas, da "caliente" tostadeira.
Quando terminei a odisseia perguntei ao Fred:
- Já levitam lá fora na esplanada?-
- O quê?-
- As tostas hoje ainda saíram mais Zen do que é costume! Está com atenção que daqui a pouco começas a vê-los a elevar-se das cadeiras!-
E ele riu-se. Sabe que levitar não levitam, mas lá que se elevam de prazer isso ninguém pode negar!
Podem tentar reproduzir a receita das Tostas Zen de todas as formas possíveis, mas a proporção dos ingredientes (divertimento, carinho, história, etc ) requer uma sabedoria que não está ao alcance de todos...

Ana Amorim Dias

Nutritivos e famintos

Nutritivos e famintos

A ideia anda a ganhar forma há uns dias mas só ontem à noite, enquanto conversava com duas amigas, a verbalizei pela primeira vez. Só há dois tipos de pessoas no mundo: as nutritivas e as famintas. As que alimentam e as que precisam de ser alimentadas.
As grandes categorias nem deviam ser de género, raça ou credo, e sim relativas a esta essência que, ninguém me tira da ideia, é como um pacto, contratado antes de nascermos.
Passei a vida a interrogar-me acerca dos porquês de várias características minhas sobre as quais não tenho qualquer controlo: sou uma alimentadora compulsiva dos outros; forneço as condições apropriadas para que todos (até os que acabo de conhecer!) tenham uma forte tendência para chorar junto a mim; e preciso desesperadamente de estar sozinha. Esta última compulsão é a que, até agora, mais me tem intrigado. Mas acho que descobri a razão.
Fiz o "contrato" dos nutritivos. Vim a esta vida (espero que a todas, caso mais existam) para alimentar estômagos, almas e corações. A minha energia está à disposição: sei que ao dá-la conscientemente já ninguém ma pode roubar! Entendo que há muitas pessoas que não têm ainda a capacidade de se alimentar a si mesmas com a energia universal. Elas não têm culpa, devemos respeitá-las, amá-las e alimentá-las energeticamente até começarem, uma a uma, a ser nutritivas também e a alimentar os outros. É esta a nossa função e quanto mais depressa o entendermos mais nutritivos seremos.
Quanto à ponta solta que deixei para trás, a conclusão é simples: para sermos nutritivos temos que ter uma fonte inesgotável de nutrientes e, no meu caso, o manancial aciona-se ao estar sozinha comigo.
Caramba, como eu adoro perceber as coisas!

Ana Amorim Dias

Bruxa

Que bruxa

Gosto quando me chamam "Bruxa!". Só quem me tem carinho é que tem também a coragem de me tratar assim. Como dizia o meu pai: "Yo no creo en brujas, pero que las hay, hay!" E tinha razão. Percebo agora que existem. Sou a prova disso mesmo!
Podia dizer que sou uma bruxa boazinha, daquelas que só lançam feitiços bons, mas temo ser desmentida por quem partilha o mesmo teto que eu e vê amiúde os ataques de mau feitio em que só não me monto na vassoura porque seria multada por excesso de velocidade!
Desconfio que os meus piores bruxedos são lançados sobre mim mesma. Com os outros, barafusto, barafusto, mas não os sei atingir. E a maçã envenenada sobra sempre para mim: os amuos infantis que demoram a desfazer-se; o mau génio que se apodera de todas as células do corpo; e uma irritação esmagadora, contra tudo e contra todos, faz com que não me consiga aturar a mim própria.
E de repente lembro-me do contra-feitiço: "Deixa de ser uma besta! Só estás mal disposta porque queres ó palerma!". Depois vou dormir ou escrever e saio do modo "embruxado".
Sei que todos somos as "bruxas" na nossa própria existência. Ninguém tem a capacidade de nos roubar esse papel! Como ninguém tem também a capacidade de ser a nossa Fada Protetora com a mesma eficácia que nós mesmos.
Agora deixem-me despachar que tenho que dar gás à vassoura para ir buscar uns fantásticos (quase mitológicos, quanto a mim) seres que vêm cá passar uns dias!

Ana Amorim Dias