(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

26.8.13

À minha maneira

À minha maneira

Este Eric é sempre a mesma coisa! Faz tudo à maneira dele!
Andava a chateá-lo há algumas semanas para publicar, no facebook, as capas (a portuguesa e a francesa) de "Olho Ubíquo - A vida de Eric Lobo", e ele respondia sempre:
- Ainda não, é muito cedo.-
Para a versão francesa talvez fosse, pois só está previsto sair lá mais para o fim do ano, quando apresentar oficialmente a nova expedição (coisa de loucos, aviso já), mas para a versão portuguesa, em vias de avançar para a gráfica, não me pareceu ser cedo. Ainda insisti um pouco mas acabei por desistir e aceitar as táticas deste comunicador nato.
Ora ontem, estando tão assoberbada de trabalho que nem tempo me restou para a diária crónica, fiquei toda irritada quando, ao abrir o face, vi as suas publicações das capas! Então e os foguetes? E o champanhe? E a crónica a acompanhar/celebrar o facto desta antestreia ao Mundo? Que bandido!

- Tu és mesmo uma ditadora!- disse-me há uns tempos, já não sei a que propósito.
- Eu?!?- respondi com um espanto muito pouco espantado que apenas queria sacar nabos da púcara.- Porquê?-
- Porque és tão mandona que chegas a irritar-me!-
Calei-me. Um sorriso traquina começou a desenhar-se-me nos lábios devido à satisfação de ouvir uma crítica tão genuína e carinhosa. O Eric tem razão. Talvez eu seja ligeiramente ditadora e tenda a impor que as coisas se façam à minha maneira, mas isso só acontece porque costumo ter razão (como a desobediência dele bem provou...).

P.S. - Pré-reservas de exemplares autografados oficialmente abertas através de mensagem privada, entretanto vou só ali comprar os foguetes e o champanhe. À minha maneira, claro!

Ana Amorim Dias

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Não tenho provas de nada

- Oh pá... Tu és tão pequenina!...-
Protegida pelos óculos escuros, conseguia esconder as lágrimas, mas não o estremecimento que os soluços me causavam.
Numa esplanada, com "cañas" e tapas à minha frente, constatei outra vez que os homens bons não sabem lidar com o choro sentido do sexo oposto. O meu pai também ficava nervoso ao ver-me chorar e eu, como qualquer terrível fémea que se preze, usava amiúde os novelescos dotes lacrimais para fazer valer os meus interesses. E ri-me no meio do choro ao lembrar-me disto, eu que estava a chorar com saudades daquele casmurro durão a quem tão bem dava a volta.

Gostava que a reencarnação existisse. Na verdade tenho passado a maior parte da minha vida adulta tentada a ter certezas de que é assim que a coisa funciona; que voltamos e voltamos e voltamos a voltar, em grupinhos engraçados que se ensinam mutuamente até se chegar à mestria existencial. Quando mais vivo, mais sentido me parece fazer esta sensação de já por cá ter andado muitas vezes a aprender pela primeira vez coisas que agora só lembro. Cumplicidades profundas, ligações extraordinárias e empatias inexplicáveis ficavam, assim, justificadas.

- Não percebes que o teu pai estará sempre aqui contigo? Ele nunca te vai deixar!-
Mais um golo na cerveja. "Então porque é que me vêm estas saudades da voz e do beijo que me dava na testa?" Encolho os ombros e deixo que mais duas pesadas lágrimas me desçam pela cara abaixo.

Não escolhemos a família. Não elegemos os pais, os filhos, os irmãos. Ou será que sim? E porque é que antes de os nossos filhos nascerem já os amamos tanto e sentimos conhecê-los? E o intrigante karma? Vem de onde? Para que serve? Faz sentido termos só algumas décadas para aprender a ser gente e fazer evoluir as nossas almas até à sabedoria acabada? Existirá tal estado de sabedoria acabada?
Não tenho provas de nada. Este campo é complicado e creio que poucos as têm. Mas sinto que há mais, muito mais, que apenas isto. E há uma certeza, de há anos, que nunca morreu em mim: quem amamos de verdade, vivo ou morto, está connosco. Desconfio que estará sempre.

Ana Amorim Dias

Cebola da eternidade

Cebola da eternidade

Quando comento, às vezes, que gosto de picar cebola, as pessoas ficam a olhar para mim com aquele ar de: "Eu sabia que não regulas bem, mas isto já passa das marcas..."
Gosto. Gosto mesmo. É mais forte que eu. No entanto conheço os motivos: implica método, disciplina e dá para pensar.
Acontece com frequência precisar de cebola picada, de muita cebola picada. Entra na receita dos pãezinhos recheados que vendo nos medievais. "Podias picar no 1,2,3", poderão vocês pensar. Pois podia. Mas o sabor não fica igual. As máquinas não conferem aos pedacinhos da cebola aquele corte em cubinhos minúsculos, perfeitos, exatamente iguais e de arestas bem definidas. E isto faz toda a diferença. Faço o recheio dos pãezinhos, que centenas de pessoas comem, como se o estivesse a fazer para os meus filhos. E faço questão de servir a todas as pessoas a qualidade que sirvo aos meus filhos.
No fundo faço o mesmo ao escrever: sirvo a todos algo recheado com mensagens bem picadinhas, saborosas, consistentes, como qualquer progenitor deve apresentar aos filhos os ensinamentos que a vida já lhe foi dando.
Pensava nisto ontem à tarde, enquanto picava cebolas com o esmero que que sempre uso nesta ação. Pensava, talvez com a soberba de imortalidade que caracteriza os escritores, que até as cebolas podemos eternizar, se transformarmos o momento do seu corte numa lição de vida. Fiquei com a vaga impressão de que, se todos fizéssemos o que temos que fazer para o "público" em geral como se o estivéssemos a fazer para os nossos filhos, o mundo seria um local completamente diferente. E muito melhor, de certeza!
Depois desta conclusão, da próxima vez que picar cebolas, mesmo que os olhos ardam e as lágrimas caiam, o meu sorriso será tão grande e cheio de eternidade, que ninguém acreditará que estive a picar cebolas!

Ana Amorim Dias

Se

I wonder

I wonder

O filho da minha amiga chegou à mesa com um entusiasmo incomum. Embora o almoço já tivesse terminado, continuávamos sentados a conversar sem pressas.
- Mãe, mãe!! Acabei de me pesar! E sabes uma coisa? Engordeci!!!
Enquanto todos se riam já eu estava a aproximar o iPhone de mim para apontar no bloco de notas esta imperdível pérola.
A minha cunhada ainda acrescentou algo do género:- Deixa estar que logo "emagras"!- mas eu já nem liguei. Tinha partido para longe, para a terra mágica das palavras geniais.

Infelizmente uma das palavras que considero tremendamente genial não é portuguesa. Gosto dela quando antecedida pelo "eu", pois só assim se torna profundamente rica e intradutível: estou a falar-vos do "I wonder"! Sem o "I" significa simplesmente "maravilha" mas, ao transformar-se em verbo, é que a maravilha acontece mesmo e, numa palavra só, sintetizam-se o "eu penso", "eu pergunto-me", "eu imagino", "divago", "suponho", "equaciono", "medito" e por aí fora.
Mas não era só aqui que eu queria chegar. A viagem ainda vai a meio. Acompanhem-me e vejamos se, juntos nesta divagação, não "engordecemos" as nossas essências.
Muitos de vocês já se aperceberam que estou sempre em modo "I wonder". O que procuro nunca acrescentar é o "if". "I wonder if" é o equivalente ao "e se?" E se tivesse sido diferente? E se eu tivesse feito outra escolha? E se eu tivesse optado por aquela outra situação? Fujo disto a sete pés! O encanto do "I wonder" é inversamente proporcional à repulsa que sinto pelo "I wonder if".
Somos os arquitetos da nossa existência. Foi cada pequena escolha, feita ao longo da vida, que nos colocou aqui, agora, exatamente assim. Cada insignificante opção tornou-se numa parte do todo causal deste momento. Ou somos suficientemente loucos para concordar a cem por cento com todas as nossas escolhas, ou corremos o risco de viver constantemente amargurados pelo "I wonder if". Bem sei que é difícil não cair por vezes na tentação de sair a navegar pelos mares do hipotético mas o "como teria sido se..." é questão que não devia interessar a ninguém. As coisas são como são porque as escolhemos assim ou porque o destino ou acaso assim as proporcionaram. É por isso que não me permito, nunca, perder tempo a questionar as decisões que já tomei e as escolhas que já me vi obrigada a fazer. Repetiria as mais importantes. E as mais insignificantes também, na sua grande maioria. Acho que assumir tudo sem "e ses..." é uma das grandes chaves para vivermos bem connosco.
Resta-me agradecer ao pequeno Gastão, por me ter proporcionado mais esta reflexão que tanto me engordeceu a alma!

Ana Amorim Dias

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Como se ensina a humildade?

Como se ensina a humildade?

A estrada era estreita e só dele. Miúdo novo, não devia ter mais de vinte anos, a guiar o Porsche Cayenne. Até aqui nada que desse crónica, mas a soberba contida no ar e atitude do miudito, que me prensou contra o passeio, ficou reservado cá dentro.

Algumas horas depois ouvi o meu filho mais novo a dizer a um colaborador (que é como se fosse de família e mesmo que não fosse era igual): "olha que eu sou filho do patrão...". O meu sangue gelou. Chamei-o à cozinha e à razão. Fui dura. Ele defendeu-se como pôde, argumentou que estava só a brincar e reconheceu o erro. Mas nada me consolou.
Afinal como se ensina a humildade? Que lições terei que dar aos únicos dois seres pelos quais sou responsável para que aprendam a nobreza de apenas se orgulharem pelo que eles próprios são? O exemplo será suficiente? O exemplo estará a ser bem dado ou terei que me esforçar mais?
Pouco me importa se o João, aos vinte anos, guiará um Porsche ou um Fiat Punto. Tudo o que quero é que as manifestações do seu ego assentem no facto de ser uma pessoa boa, honrada, justa e esforçada. Quero que saiba valorizar-se apenas pela sua essência, que terá de saber construir. Quero que se orgulhe de si e das conquistas do seu trabalho. Quero que venha a entender que o valor de cada um não tem raízes nos bens que possui nem na posição social ou profissional que ocupa e sim na forma dedicada como desenvolve os seus dons e os coloca ao serviço de um Mundo ligeiramente melhor.
Não quero que os meus filhos sejam os filho do patrão nem da patroa. Não quero que sejam os donos disto ou daquilo. Quero que sejam apenas os aventureiros exploradores do seu legado genético e de valores importantes. Quero que percebam que coisas são só coisas e que servem para nos servir e não para nos escravizar a personalidade. Sei que só assim é que, seja qual for a viatura conduzida, não prensarão ninguém contra o passeio com ares de superioridade.
Amanhã falarei de novo com o João para lhe explicar isto tudo. E depois de amanhã. E depois. E depois. E sempre, se preciso for. Desconfio que tudo correrá bem pois conheço o poder das minhas palavras.

Ana Amorim Dias

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Machadada

Matei uma cobra à machadada ainda agora. Os miúdos estavam aflitos por isso fui buscar um machado grande e cortei-a em quatro postas. Dois factos sobrevieram: a estranheza de tão fria calma e o remorso que há meia hora me acompanha. Os meus filhos voltaram às suas atividades, provavelmente seguros de que a mãe os protegerá sempre de tudo... Mas e a mim quem me protege agora deste mal estar? É que matei uma cobra. Inofensiva. À machadada. Pergunto-me que raio de exemplo lhes dei...

Ana Amorim Dias

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Enviado via iPad

Fraudes

Fraudes

Quando entro num país espero ser bem recebida. Entro para me enriquecer ao mesmo tempo que contribuo para o seu enriquecimento. Levo dinheiro para gastar nos hotéis, restaurantes, museus, bares; gasto em produtos típicos, em lembranças, em atividades únicas; gasto nos músicos de rua (há lá como lhes resistir?) e em tudo o que seja preciso. Por isso, se eu fosse uma estrangeira a entrar no nosso maravilhoso país, ficaria chateada com ele! Pior que não ser hospitaleiro (que somos!) é sê-lo fingindo o contrário.
Quem entra em Portugal pelo sul e se depara com estes sinais, é desde logo defraudado! Vergonhosamente enganado, mesmo! Não há necessidade de tratar assim muitos dos responsáveis por um dos mais fortes setores económicos deste encantador pedaço do planeta. Quem entra na Via do Infante devia ser devidamente informado que nem a saída de Vila Real/Castro Marim nem a de Monte Gordo/Altura envolvem qualquer custo. Depois disso é só seguir pela nacional 125 que, longe de ser confortável e segura, é válida para se chegar mais além.
Gostaria de fazer passar esta mensagem a todos os não portugueses, "nuestros hermanos" ou não, que são recebidos com esta enganadora e dissuadora obrigatoriedade. Gostaria de contribuir para lhes fazer chegar a mensagem de que nós, portugueses, não somos todos crápulas extorsores. A maioria de nós recebe os visitantes com a mesma correta diplomacia, honestidade e simpatia com que o chão desta ancestral nação desde sempre tem sabido acolher todos os povos do Mundo.

Ana Amorim Dias

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18.8.13

Território inacessível

Território inacessível

Reparei na forma como estava alheada de tudo, ao seguir, com uma curiosidade espantada, o galope veloz dos meus inesperados pensamentos.
Tentei ver-me pelos olhos de quem me rodeava: o que pensariam os outros da pessoa encostada à ponta do balcão, de olhos perdidos num ponto vazio para lá do tempo e do espaço?
Regressei da emocionante viagem do meu pensamento e tentei imaginar em que estariam todas aquelas pessoas a pensar. Os que estavam a participar ativamente em conversas dificilmente estariam perdidos em grandes considerações. Creio que o momento em que as pessoas falam é dos poucos em que nos aproximamos minimamente do que realmente lhes vai no pensamento. Tudo o resto é insondável: um território inacessível.

Talvez não seja a primeira vez que confesso a profunda admiração que sinto pela minha forma de pensar e pelo fantástico prazer que as alucinantes viagens do pensamento me proporcionam. Tenho plena consciência de que uma das minhas maiores paixões é o meu próprio pensamento. É com uma maliciosa e deliciada traquinice que me lembro amiúde que os pensamentos são aquela parte de nós à qual absolutamente mais ninguém tem acesso! Apesar de constantemente partilhar por aqui alguns excertos daquilo que penso, adoro recordar-me, a todo o instante, que os pensamentos são o meu mais intrínseco, irrequieto e inviolável património! E que sorriso traquinas isso me deixa no rosto!

Ana Amorim Dias

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Namastê

Namastê

Eu lia aquela saudação com algum espanto. Ou eram pessoas a deixá-la ao fim da noite, antes de se desconectarem do mundo virtual. Ou eram situações de saudação direta e, por último, já havia até quem me saudasse assim.
"Mas que raio? Esta gente e a mania das modernices zen!" - pensava.
Não me passava pela cabeça devolver o cumprimento sem antes investigar o seu sentido. Na verdade parecia-me demasiado afetado e pouco legítimo pensar sequer em usar tão rebuscada palavra. Mas acabei por me render à curiosidade e investigar. Entre um sem número de outras especificações e nuances, absorvi o sentido que mais me tocou e que define melhor tal saudação: trata-se de um cumprimento repleto de respeito e reconhecimento no qual a centelha divina de um indivíduo saúda a centelha divina no outro.
Fiquei maravilhada! "Então isto existe de facto? Há mesmo pessoas que usam a sua essência divina para saudar as essências divinas dos outros?" Ocorreu-me que assim é muito mais fácil não desistir nunca deste sonho louco de constantemente tentar recordar os outros de que somos todos divinos.
O fabuloso conceito que esta antiga palavra encerra, encheu-me de uma desmedida esperança. Se há pessoas tão em sintonia com a sua essência e energia divinas que as reconhecem nos outros, o futuro da humanidade talvez se comece a tornar mais risonho. Pergunto-me apenas se bastará dizer "Namastê" com a voz ou se não será mais eficaz colocar tal saudação em toda a energia que emitimos e atos que realizamos.
Namastê!

Ana Amorim Dias

Almas livres

Livres

Normalmente vou sozinha. É como mais gosto. É a melhor maneira de viver aquele momento no seu mais cru esplendor:
A escuridão cristalina.
A passadeira em madeira.
O bafo das noites quentes.
E o mar em mim.
E eu nele.
Mergulhar na emoção.
Boiar com milhões de estrelas por cima.
Nadar no rasto com que a lua pinta o mar.
Ou apenas no breu.
E despir-me.
Despir-me de tudo.
Até ficar só uma essência nua de qualquer ego.
Nenhuma outra nudez é tão sincera e total. Nenhuma outra nudez é tão simbólica e libertadora.
Os solitários banhos noturnos no mar não deviam causar medo a ninguém. Nem deviam ter o peso daquilo que é estranho, raro, coisa de loucos.
Sempre que a noite me apanha, exultante, envolvida no apaixonante abraço do mar, volto a lembrar-me que quem conhece o poder libertador das próprias asas, desconhece a linguagem que nos proíbe de voar.

Ana Amorim Dias

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Equipas

Equipas perfeitas

No meu carrinho de compras não cabia nem mais uma formiga. Atrás de mim e ao meu redor, filas imensas. A rapariga da caixa, bonita e compenetrada, foi faturando tudo, com o mesmo ritmo que eu estava a usar para colocar as coisas na passadeira. Ajudámo-nos mutuamente com uma eficiência inesperada. E no fim não deixei de lhe dizer:
- Fizemos uma excelente equipa!-
- Foi mesmo!- o sorriso rasgado e a boa energia permaneceram com ela quando me fui embora.
E eu levei comigo a sensação de uma fantástica descoberta: podemos fazer equipa com desconhecidos!
Na verdade fazemo-la sempre que, na estrada, deixamos passar alguém que não consegue entrar; fazemo-la quando uma mãe grita, aflita, para o filho regressar das ondas e nos colocamos ao seu lado, acompanhando-o a salvo até terra; fazemo-la sempre que o momento proporciona que nos associemos a alguém em prol de algum bem maior. Fazemos equipa com estranhos a todo o momento, se pensarmos bem nisso. Mas bem mais belo, emocionante e comovente que fazer equipa com desconhecidos, é fazer equipas excelentes. Chamo a isso humanidade.

Ana Amorim Dias

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Proporção e firmeza

Proporção e firmeza

Há já muitos anos que perdi a conta das imensas centenas de caipirinhas que já me passaram pelo pulso. É muito fácil fazê-las mas, como em tudo o que é fácil, a excelência esconde-se atrás dos mais ínfimos detalhes. Para se fazer a caipirinha perfeita existem dois requisitos incontornáveis: proporção e firmeza.
Que leva lima, açúcar amarelo, cachaça e gelo, todos sabem. O que nem todos atingem é a "mão" mágica das proporções certas.
Quanto à firmeza, a justificação também é simples: ou a lima fica espremida até ao tutano e perfeitamente fundida com a cachaça e o açúcar, ou a bebida fica boa para ser derramada na pia mais cercana.
Continuem então a seguir-me o raciocínio enquanto transformo isto na costumeira alegoria. E se fizéssemos tudo como se de uma caipirinha se tratasse? E se nos conduzíssemos pela vida como quem faz a mais perfeita caipira? As proporções certas e a constante firmeza transformariam cada um dos nossos atos em algo digno de ser saboreado com um inegável prazer? E os relacionamentos? E o trabalho? Teria neles alguma influência?
Com as proporções certas de amor, tolerância, cumplicidade, admiração, amizade, sexo, respeito e a firmeza da manutenção do espaço individual de cada um, não há casal que se dê mal.
Com as proporções certas de amor, exemplos, segurança, responsabilização, loucura, educação e a firmeza de certas regras, é bastante provável que os nossos filhos cresçam felizes e íntegros.
Com as proporções certas de esforço, gosto, consciência, competência, dedicação e a firmeza de não desistirmos dos objetivos, a nossa vida profissional deixa de ser o ganha pão e ganha contornos de missão.
É por isto que hoje agradeço a todas as limas, açúcar e cachaça que ao longo dos anos espremi como se fossem a receita da salvação da humanidade.

Ana Amorim Dias

No puede ser tanta suerte

"No puede ser tanta suerte"

O piropo é, acima de tudo, uma forma de comunicação. E se o engate é uma "arte", o piropo é a sua inicial expressão.
Existem piropos para todos os gostos e emitidos pelos mais variados tipos de homens (e mulheres), sendo que o dito piropo e a forma como é proferido, nos podem dizer muitas coisas sobre o seu emissor.
"Ai menina, que me faz cair dos andaimes!", não é, à partida, frase que seja dita por um otorrino.
"Anda cá que eu não te aleijo!", demonstra uma falta de originalidade a toda a prova.
"Éh, gaja boa!!", leva-nos a concluir muito pouco, excepto que a pessoa tem descaramento q.b. e deve estar bem disposta.
Mas o que me levou a escrever esta crónica, não foi divagar sobre espécies de piropos e quem os verbaliza, foi precisamente o oposto: perceber como as mulheres os recebem!
Talvez seja um mecanismo de defesa mas tenho constatado que, por vezes, até as mais bem educadas mulheres se tornam rudes e antipáticas quando confrontadas com robustos piropos.
Como deve então uma mulher enfrentar esse momento sem perder a sensualidade, a segurança e a boa disposição? Como podem as mulheres tolerar certas frases sem se tornarem antipáticas ou perderem a classe?
O mau humor, o ar ofendido e a falta de gratidão de muitas mulheres, costumam deixar-me estupefacta. Reagem a um piropo como alguém a quem é arrancado um pedaço, sem perceber que no fundo se trata, quase sempre e apenas, de um visceral elogio. Mulher que fique ofendida é porque não compreende o rudimentar funcionamento de certos homens cujo cortejo adquire formas algo trogloditas. Mulher que responda mal ou fique indisposta para o resto do dia é porque não tem os níveis de confiança e amor próprio no lugar.
A verdade é que lidar com estas situações com leveza e compostura é muito simples: se o piropo é de mau gosto, basta ignorar por completo e seguir caminho; se é um "clássico" inofensivo, um sorriso divertido de agradecimento fica sempre bem e deixa um rasto de boa disposição; se é uma pérola de originalidade e graça, pode até guardar-se como uma boa memória. E mais: não é o facto de se aceitar o cumprimento com uma simpatia sorridente que torna quem o recebe numa presa oferecida. Pelo contrário, a atitude segura e agradecida, faz os emissores entenderem que o assunto acaba ali.
E tudo isto me faz voltar muitos anos atrás no tempo e recordar uma noite em que, ao sair de uma discoteca em Espanha, um homem se virou para o Ricardo e lhe disse: "No puede ser, tanta suerte!"

Ana Amorim Dias


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Quilómetros e quilómetros

Quilómetros e quilómetros

Quando saímos de casa e entramos para o carro sabemos normalmente a distância que nos aguarda. Podemos sair para percorrer dez quilómetros, duzentos ou mil mas, sabendo ao que vamos, a mentalização trata de tudo. O problema tende a surgir quando estamos preparados para fazer dez quilómetros e afinal temos que percorrer mil. Ou, no caso inverso, quando planeamos fazer cinco mil e a missão é abortada.
Às vezes penso que é por isso que a vida não é mais simples. Ao contrário do que acontece com o número de quilómetros que normalmente sabemos esperarem-nos, com a vida estamos sempre numa absoluta incógnita. Cada manhã, ao regressarmos dos sonhos, não fazemos a mínima ideia da quantidade de quilómetros de prazeres e sacrifícios ou esforços que vamos ter que suportar. Podem ser dez. E podem ser mil. Podem ser bons. E podem ser maus. Podem ter perigos ou fazer-nos crescer. O que é certo é que a distância de vida que em cada dia vivemos é sempre imprevisível. Não há mentalização possível para o que está por vir e teremos que percorrer. Talvez seja por isso que as pessoas que mais facilmente se adaptam ao imprevisto tendam a ser as mais bem sucedidas e felizes.

Ana Amorim Dias

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9.8.13

Tanque de guerra e asas de anjo

Tanque de guerra e asas de anjo

- És um tanque de guerra! - disse-me ele há dias, ao telefone.
Desconfio que grande parte das mulheres não achasse grande piada a um elogio deste calibre. Normalmente todas preferem ser tratadas por " Meu amor", " minha flor", " princesa da minha vida" , " anjo lindo" , " rainha do meu coração"... o certo é que qualquer destes carinhos orais me causa logo refluxos.

- Continuas inteira? - perguntou-me ontem à noite, quando finalmente nos vimos.
- Os tanques de guerra não quebram, lembras-te?-
Gosto de estar casada com um homem que sabe que sou um tanque de guerra. Há conhecimentos de causa que poupam muitas chatices, daí ser tão boa esta sua consciência de que, para o bem e para o mal, levo sempre tudo à frente.

O verdadeiro problema está no bilhetinho que esta manhã encontrei ao meu lado: parece que durante o meu sono não soube esconder as asas...

Ana Amorim Dias

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Enriquecer

Enriquecer

O despertador toca. Dou um salto da cama. Volto a tombar nela, qual desamparada sequoia, só para me levantar de novo por não poder correr riscos: tenho que levar a minha sobrinha ao autocarro das dez.
No caminho pouco falamos. Sabe perfeitamente que é um risco falar comigo tão cedo. Ainda assim arrisca:
- Como te tem corrido a feira?-
- Bem.- respondo laconicamente.
Mas agora que acordei um pouco mais, vejo o quanto a resposta foi incompleta. Nem vendi muito nem pouco. Podia ter sido muito melhor e também podia ter sido pior. O que é factual é que conheci um montão de gente, fiz amigos (daqueles mesmo amigos), falei cinco línguas (o italiano não correu lá muito bem), desenvolvi métodos próprios (e eficientes) de produção/venda em cinco metros quadrados e ventosos. Em suma, trouxe dinheiro para casa, é verdade, mas acima de tudo fui feliz!
Por isso, Mariana, terás de ler esta crónica para teres a tua resposta. Sabes? Quem só se move por dinheiro e faz dele o derradeiro objetivo nunca chega a enriquecer de verdade!! Que te corra bem a prova, minha querida.

Ana Amorim Dias

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Os três ramos do cansaço

Os três ramos do cansaço

Tenho vindo a descobrir que o cansaço tem três ramos. Para desenvolver a teoria uso-me como cobaia.
Acontece-me com alguma frequência ter dezoito horas de trabalho seguidas e sempre em redline. Quando chego finalmente à cama doem-me músculos que desconhecia ter e a exaustão impede-me de adormecer de imediato. O cansaço físico é algo simples e limpo que se recupera com uma boa noite de sono que se possa prolongar manhã fora.
Depois existe o cansaço intelectual. Ao longo dos anos habituei-me a chamar-lhe "a nuvem" porque a sensação com que fico é a de ter uma nuvem cinzenta de chuva a trespassar-me o cérebro. Resulta normalmente de ter que pensar em mil e uma coisas, cobrir todas as possibilidades, gerir as funções de várias outras pessoas, verificar se tudo está minimamente perfeito, assegurar-me de que nada falta, encontrar soluções de última hora para imprevistos e por aí fora. Este cansaço mental desaparece com jornadas bem sucedidas, noites bem dormidas e zumba ou bodyboard.
O último ramo do cansaço é o emocional. O mais temível, perigoso e mortífero cansaço é o que nos rouba a paz de espírito, as gargalhadas da alma e a vontade de viver. Como por vezes se disfarça de apatia, inércia ou simples tristeza há quem não perceba que "apenas" se trata de cansaço emocional, ou seja, de já não se ter mais forças para lidar com a monotonia ou outras situações emocionalmente desgastantes que sugam o entusiasmo de viver até à ultima gota.
Não tenho fórmulas mágicas universais (quem sou eu para isso?) para se ultrapassar o problema, mas tenho o remédio santo para as raras ocasiões em que ele me atinge a mim: encontro novos projetos e interesses e, recordando-me da minha missão, sento-me e começo a escrever.

Ana Amorim Dias

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3.8.13

Perfeição e sabor

Perfeição e sabor

Não me lembro bem onde é que vi um senhor com um cabelo tão perfeitamente penteado que tive de me perguntar se não seria um capachinho.
- Já reparaste que as coisas demasiado perfeitas soam a falso?- comentei com quem estava comigo.

Pouco vou à horta que o Ricardo plantou cá na Quinta mas, quando o faço, fico encantada com a cor dos tomates, o aroma das meloas e o sabor dos morangos.
- Anda! Quero que proves uma coisa.- disse ele enquanto me fazia segui-lo de um socalco para outro.
- Prova este morango!-
Olhei para o aspeto imperfeito e enfezado do fruto acabado de apanhar, limpei-o com as mãos e comi-o em duas pequenas dentadas.
Depois de alguns segundos a, literalmente, gemer de prazer, agradeci como uma criança: - Foi o melhor morango que comi em toda a minha vida!!

Quando me apercebi do antagonismo destes dois acontecimentos compreendi o valor da sua conjunta mensagem: não é a aparência perfeita que confere o sabor a nada! A perfeição em excesso faz tudo soar a falso. Procuramos rodear-nos de perfeição e beleza. No nosso corpo, nas nossas coisas, nas nossas relações e vivências. E no entanto é tão frequente esquecermos-lhes o sabor...
Não quero um casamento perfeito, quero-o tão saboroso como aquele morango. Não quero filhos perfeitos, quero-os com o seu sabor espontâneo e genuíno. Não preciso de carros topo de gama nem roupas de luxo, quero apenas bens que saibam a fiabilidade e caráter. E quanto à minha própria pessoa, fico feliz por já ter descoberto há muito que embora a perfeição não more aqui, o sabor de ser genuína todos os dias me nutre.

Ana Amorim Dias

Inteligente decote

Inteligente decote

Há dias em que tudo o que queremos é passar despercebidas. Há outros em que nos incomodamos com olhares e hipotéticas considerações que possam formular sobre nós. Mas outros ainda existem em que nos sentimos tão confortáveis e sensuais na nossa pele que uma apresentação um pouco mais provocante faz todo o sentido.
Quando se veste uma saia curta ou um decote de deixar meio planeta a babar, temos que estar preparadas para isso. Não podemos pavonear condignamente a nossa estrutura física sem uma sólida estrutura emocional, sob pena de deixar que o invólucro fale mais alto que o conteúdo. Quando isso acontece está tudo perdido, é-se presa fácil das próprias inseguranças. O que transforma uma mulher "boa" num ser extremamente sensual é a confiança e a classe. Na verdade é preciso muita classe, inteligência e personalidade para sustentar um provocante decote sem se parecer oferecida. Da mesma maneira que tudo isso é necessário para se conseguir ser sensual com golas até às orelhas.

Ana Amorim Dias

Musicalmente

Musicalmente

Esbarrei por acaso com uma música dele assim que acordei. Ajudou-me a sair da névoa adocicada dos sonhos e a entrar no dia como se ele estivesse inegavelmente abençoado. Quase por instinto pedi-lhe amizade e lancei-me corajosamente a mais um cansativo e alucinante dia, esquecendo o acontecimento.
Ao fim da tarde, pouco antes de ir para o banho para passar depois à segunda fase laboral do dia, verifiquei que o Olivier Cosson tinha aceite o meu convite e publicado no meu mural. "Bom dia Ana, agradeço o teu convite. Desejo-te um doce dia. Musicalmente, Olivier Cosson." E juntou mais de uma hora da sua tranquilizante música que ouvi durante o banho e enquanto me vestia. O sublime atingiu-me e comoveu-me de tal forma que tive que lhe agradecer a partilha. E que fez ele? Bem, respondeu que era ele que me agradecia a mim por ouvi-lo!
Tive que sorrir. Ele faz melodias que dão paz e plenitude e ainda agradece a quem o ouve? Tive que sorrir porque senti a sintonia com o que eu própria descobri que faço: escrevo coisas que dão paz e plenitude e depois agradeço por lerem. Fico a pensar que se calhar há uma humildade estranha que une invisivelmente os artistas e sonhadores. Sim, se calhar há mesmo um fio mágico que nos une na esperança de inspirar e melhorar o mundo.
Mais uma vez obrigada, Olivier!
E vocês, meus meninos, vão lá ouvi-lo e sentir a paz!
Musicalmente,

Ana Amorim Dias

Fugaz dúvida

Fugaz dúvida

Quando fui convidada para ser entrevistadora num documentário, aceitei de imediato. Quando as minhas opiniões e visões me conduziram a estar diretamente envolvida na produção do mesmo, achei tudo muito normal. Ao perceber que as filmagens decorrerão em Paris e entrevistarei em inglês, achei tudo perfeito e não me preocupei minimamente.
Mas no outro dia, enquanto guiava, comecei a somar todos os factos e, por breves segundos, ocorreu-me que talvez o meu inglês e todas as minhas capacidades não estejam à altura deste desafio em finais de Setembro. Foi estranho porque não costumo duvidar, nem sequer por segundos, daquilo de que sou capaz. Mas percebi logo que, às vezes, uma breve dúvida pode representar um avanço. Talvez sejam as fugazes dúvidas que nos fazem dar o nosso melhor. A minha imagem pode não ser das mais perfeitas para aparecer na televisão. O meu inglês pode não ser dos mais fluentes. Mas descobri uma capacidade que já não quero perder: a de transformar as breves dúvidas no sério compromisso de tentar fazer mais e melhor. E fiquei com a ideia de que é precisamente assim que nos nasce a certeza de conseguirmos orgulhar-nos com tudo aquilo que fazemos.

Ana Amorim Dias

Visualmente diferente

Visualmente diferente

Eu não queria acreditar. Por isso olhei uma e outra vez. Tentando sempre que ninguém se apercebesse, claro, para não ser inconveniente. O curto vestido de alças deixava à vista umas pernas e sovacos tão peludos que, comparativamente, fariam qualquer homem sentir-se quase depilado.
Mas o que me fez mais confusão nem foram os visíveis e fartos tufos, foi a desenvoltura despreocupada com que a moçoila se pavoneava entre os seus pares, completamente feliz. Fiquei muito baralhada. Espero que não me tomem por preconceituosa, mas não entendi como se pode sair assim à rua e estar em público com o ar mais tranquilo e confiante que alguém pode usar.
O certo é que a corajosa (ou naturista) senhora me deixou a matutar sobre liberdades básicas. Enquanto várias outras pessoas olhavam consternadas para as suas pernas e axilas, ocorreu-me que não há nenhuma regra legal, ética nem moral que proíba as mulheres de andarem desaparadas! Ela não estava a fazer mal a ninguém, apenas usou o singelo direito de não alterar qualquer vírgula no seu corpo, circulando com ele assim.
Continuei com o raciocínio acrescentando-lhe novas variáveis. E quando uma pessoa cheira mal? Não está a perturbar os direitos de quem está por perto? Afinal é ou não legítimo agredir visual e olfativamente os outros? Estar demasiado feio ou mal cheiroso é um direito legítimo de cada um? Ou, pelo contrário, há que respeitar publicamente padrões instituídos de beleza e de bom senso?
Volto aos sovacos cabeludos da confiante senhora e percebo o que tinha que perceber: pode ser-se visualmente diferente porque ninguém é obrigado a olhar para ninguém. Além do mais os gostos não se discutem e o namorado dela até me pareceu bastante apaixonado.
Quanto aos cheiros...bem, deixemo-los para outro dia.

Ana Amorim Dias

A lição de hortelã

A lição da hortelã

Um amigo recente fez-me descobrir mais uns quantos truques do ofício de barman. Espero que ele não se importe, mas vou partilhar um convosco.
Explicou-me ele que, para intensificar o sabor e odores da hortelã basta colocar algumas folhas numa mão e, com a outra, dar-lhes uma valente palmada.
Experimentei cheirá-las antes e depois e, como poderão comprovar, a decidida palmada intensifica realmente as suas propriedades.
Como seria de esperar lá fiquei a pensar no caso. Será que as outras ervas aromáticas também se intensificam à chapada? E nós? Seremos como folhas de hortelã, libertando mais a nossa essência a toque de tabefes? Sei, porque também já comprovei, que quando a vida nos dá valentes chapadões mesmo em cheio, tendemos a aprender certas lições de uma forma inesquecível. Mas e a nossa essência? É ou não à chapada que liberta o seu sabor e odores? Será que é a pancada que a vida dá que nos torna mais conscientes, sábios e despertos? Tenho a leve sensação que tudo depende da atenção com que vivemos: quanto mais estamos abertos, curiosos, atentos e meditativos quanto ao verdadeiro sentido e valor relativo de tudo, menos a vida precisa de andar à chapada connosco para nos realçar a essência.
Obrigada João, por mais uma bela lição com cheirinho a hortelã.

Ana Amorim Dias