(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

1.12.13

Excursões e expedições

Excursões e expedições

Há uns tempos comentei com alguém, ao telefone, que estava de partida para uma expedição em África. Aquilo até me soou bastante bem, mas fiquei com a leve sensação de que tinha sido um pouco pomposa demais. Deve ser por isso que, ao longo das últimas semanas, as palavras "excursão" e "expedição", me têm aparecido por vezes a bailar no pensamento. Qual é, afinal, a diferença?
Define-se geralmente "excursão" como sendo um passeio organizado realizado em grupo; e "expedição" como uma viagem de exploração, que tanto pode ser feita em grupo como a sós.
A maneira como as encaro é ligeiramente diferente. Uma excursão é algo aborrecido, pré-estruturado, regrado e desprovido de qualquer valor que me possa interessar. Por isso não as faço, seria uma perda de tempo. Já uma expedição é algo encantador e excitante, surpreendente e aventureiro, sem regras nem monotonias, repleto de descobertas e ensinamentos. Se tivesse que definir a minha alma viajante, diria que sou uma exploradora solitária; adepta da improvisação, dos surpreendentes encontros e do crescimento através da experiência. Diria que sou uma pessoa de expedições sucessivas, capaz de se perder sem problemas para se encontrar mais à frente.

Hoje acordei para mais uma expedição. Uma que é simultaneamente tão banal quanto excecional: a expedição de cada novo dia! Acordei com a certeza de que, por mais normal que sejam os caminhos e destinos de cada momento, está nas nossas mãos fazer deles as mais incríveis aventuras... Está na nossa vontade vivê-los com a surpresa encantada de quem se rende a uma nova expedição!

Ana Amorim Dias


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A generosidade dos mestres

A generosidade dos mestres

Ontem à hora de almoço, ainda em Paris...

- Vou dar-te a tua primeira lição de fotografia, concentra-te!-
Pegou numa folha, numa caneta, pôs a Leica, com uma das suas soberbas lentes, sobre a mesa, e prosseguiu:
- Há três fatores a ter sempre em conta...- interrompeu-se para escrever uns rabiscos.
- Oh Eric, a sério, eu jamais saberei muito sobre fotografia. Parece-me demasiado complicado, é por isso que uso o iPhone!-
- Nada disso! Tens que ser uma artista completa! Vá, toma atenção à primeira lição!-
Afastei o atrito e abracei o privilégio de ter por mestre um dos melhores.

Mais tarde, no avião, olhei para a folha de rascunho e recordei o que me explicou, procurando que tudo fizesse sentido. Recapitulei noções básicas de sensibilidade, abertura, profundidade e velocidade. Recordei o que disse sobre enquadramentos, gradações de luz, escalas e milhões de pixels. Tentei visualizar de novo todos os botões e "rodinhas" da Leica e das ópticas que usou. E quase entrei numa momentânea depressão devido à confusão em que o meu humilde cérebro mergulhou.

- Parece confuso agora mas, com a prática e com as próximas lições, tudo vai fazer sentido.- disse-me no fim da lição, mesmo antes de me vir embora.

Tranquilizei o meu cérebro com as informações da alma. "Relaxa, Ana: quando o mestre investe no discípulo é porque o sabe capaz!"
E foi assim que consegui aterrar em paz em terras lusas, aterrando também em paz na certeza de vir algum dia a perceber alguma coisa de fotografia graças à generosidade de quem escolhe não guardar para si os segredos de uma arte.

Ana Amorim Dias


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Dezasseis

Dezasseis

Hoje chove em Paris. O dia cinzento não condiz com a data nem com o meu estado de espírito. A caminho do aeroporto, já só penso em chegar a casa e aos beijos de quem me espera.

Não é possível guardar todas as memórias dos dezasseis anos que hoje se cumprem. E causa-me uma certa pena esta incapacidade humana de registar todos os sorrisos, todos os momentos, todas os dias de luta lado a lado por uma vida em pleno. Se me perguntassem o que é que transforma duas pessoas num casal feliz, creio que só teria uma palavra para resumir tudo: magia. É esta magia que apaga o mau e constrói o bom. É esta magia que solidifica o ternurento movimento de corpos que bailam no uníssono do instinto. É esta magia que faz com que a soma de um mais um seja muito mais do que dois. É ela, também, que aceita e abraça o crescimento do outro, sem achaques nem crises.

Como de costume, não sei se lerás esta crónica. Talvez algum dos pirralhos te mostre. Ou talvez eu a leia, nos teus braços, ainda esta noite. Não é importante. O que me importa é que saibas como sinto a infinita sorte de partilhar a vida contigo. O que me importa que saibas é aquilo que todos os dias te mostro...

Ana Amorim Dias

Boémios silêncios

Boémios silêncios

Quando cheguei ao hotel nem conseguia dormir. A tarde e noite tinham sido tão intensamente ricas que, assoberbada pela vivência, demorei quase cinco minutos a conciliar o sono.

O Alexandre e a Sónia receberam o Eric com o entusiasmo natural dos grandes amigos que não se vêem há anos. Comigo foram de uma hospitalidade e carinho tão grandes que muito rapidamente me senti, também, como uma velha amiga. No silêncio campestre da sua mística casa, a magia aconteceu.
Mas deixem-me explicar os motivos de tanto entusiasmo: Alexandre Poussin é escritor. E Sónia é a sua companheira de viagens e aventuras. No início de 2001 começaram uma viagem de três anos e meio na qual percorreram África a pé. E esta foi apenas uma das várias colossais odisseias sobre as quais o Alexandre escreve.

Para quem, como eu, respira a escrever e sente as viagens como uma das maiores riquezas da vida, ter o privilégio de privar com pessoas assim é algo quase inexplicável. Partilhar momentos de boémia intelectual é o pináculo da revitalização artística. Debater métodos, sensações, experiências e emoções com outros escritores repercute-se na forma como encaramos a criação. Constatar uma tal comunhão e tantos pontos em comum com seres tão especiais, fez-me ver em mim coisas que nunca antes tinha constatado.

- Já viram que giro? Somos só três neste carro... E os três escritores!- comentei quando o Alexandre nos levou de volta a Paris.
- Pois é. - responderam.
E depois o silêncio. Um silêncio cúmplice, repleto de sentido. Um daqueles silêncios boémios que antecedem a arte.

Ana Amorim Dias


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Tenho que ir ali, já volto

Tenho que ir ali, já volto

- Bolas...-
- O que se passa?-
- Nada. Hoje ainda não se passou nada e o problema é esse: não tenho tema para escrever.-
Ele riu-se. Acha tanta piada a esta minha devoção que anda sempre a contar, a toda a gente a quem me apresenta, que todos os dias escrevo uma crónica.

Não demorou muito a surgir o tema. Fomos visitar um amigo seu, e eu, passados cinco minutos, desculpei-me:
- Tenho que ir ali, já volto.- e pimba, desapareci.
Caminhando, quentinha, ao frio, dei graças pela leveza com que me desembaraço das situações. Prefiro conversar comigo a ouvir conversas repetidas sem ser um agente ativo. Adoro o meu "vou ali, já volto" porque o reconheço como um forte aliado do gene que me obriga a estar sempre em movimento.
Mas acaba de me ocorrer algo: e se o convívio que deixei para trás se tornou interessante? E se estou a perder algo, algum ensinamento ou lição que possa dar azo a uma outra crónica?
Desculpem, mas tenho que voltar... Tenho que ir ali, já volto!

Ana Amorim Dias

O bafo da criação

O bafo da criação

Está frio em Paris. As folhas forram o chão e os bafos da respiração das gentes desprendem-se das bocas em pequenas nuvens visíveis.
Caminho a passo firme, tentando não me atrasar para os meus compromissos. Desloco-me, contudo, sem querer perder o encantamento com tudo.

Tenho ouvido muitos criadores dizer que o seu combustível mais forte é uma poderosa tristeza; que os seus acessos criativos se ativam muito mais com esse sentimento. Aceito. Porque os compreendo. Mas é ao comparar o meu combustível com o de quem se confessa assim, que me dou conta da minha sorte. O que me move e propulsiona é uma alegria indomável. O que mais me motiva a criação é esta capacidade de tudo olhar como se da primeira vez se tratasse, com a inocência espantada que vê sempre o lado belo, o lado bom.

Está frio em Paris e eu caminho feliz. Vejo os bafos das respirações alheias como um símbolo da capacidade de criação que todos têm em si. E atrevo-me a tentar inspirar os outros, para que se descubram assim: capazes de criar algo novo; capazes de criar na alegria.

Ana Amorim Dias


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Bonecas de porcelana

Bonecas de porcelana

- No outro dia lembrei-me tanto de ti...-
- Então?-
- Passei por acaso numa feira de velharias e vi uma boneca de porcelana que estive mesmo para te comprar.-
- Credo! Que horror! Nunca te atrevas!-
- Porquê, mãe?- quis saber o João, que estava a assistir à conversa.
- Ai vocês não sabem que a vossa mãe tem pavor a bonecas de porcelana?-
Confirmei o facto sem qualquer pudor. Detesto-as a ponto de já as ter posto fora do meu quarto, em casa de uma amiga.

Não sei se isto se prende com algum filme que vi na infância ou com a simples conjugação de nunca ter apreciado bonecas somado ao facto de a sua extrema perfeição me dar um nó nos nervos.
Odeio bonecas de porcelana e nunca escondi o medo que tenho delas. Contudo, ao viver há poucos dias este episódio, compreendi que, no fundo, não lhes tenho qualquer medo: são só coisas, feias e execráveis, é certo, mas apenas e só coisas. Percebi que elas talvez sejam o símbolo de todos os meus receios e que, como tal, tenho que começar a apregoar a mim mesma que sou superior a elas, que as posso anular, superar e até ignorar.
Todos temos as nossas bonecas de porcelana. Todos temos os ícones dos nossos medos. E isso é excelente! Quanto mais não seja porque, ao destruirmos o mito desse irracional receio, estamos também a afirmar-nos como seres capazes de enfrentar qualquer coisa.

Ana Amorim Dias


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