(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

26.4.13

Tamanho do Mundo

Até onde chegarias hoje?

Acontece-me vezes sem conta. Entro para o carro e tenho vontade de só me deter quando a vontade mandar. "Até onde chegarias hoje?", Pergunto-me. "E se tivesses um mês? Que paisagens darias aos teus olhos, que sensações aos teus sentidos?" Pergunto-me que tamanho tem para mim o Planeta. Pergunto-me se me assusta a ideia de o explorar.
Em termos factuais há quem corra o mundo, em constante movimento por países e continentes, e há quem viva toda a vida em vinte quilómetros quadrados. Parece-me lógico que, para os primeiros, o planeta seja um lugar maneirinho, que se atravessa em questão de horas. "Vou só ali a Xangai", "P'rá semana estou no Peru", "Voltei ontem de Moçambique", são frases de uma tal dimensão que nem dá para as medir. Para os que vivem no circuito fechado que os seus olhos alcançam, o Mundo é demasiado grande e perigoso para se pensar sequer em ir para o desconhecido.
Também há quem queira ir e só sonhe. A falta de dinheiro, tempo, coragem ou liberdade podem ser os seus travões, mas no fundo sabem que o Mundo está todo ali, e pode ser que algum dia o descubram. Para estes o mundo é grande. Tão grande e fantástico quanto os seus sonhos.
Que tamanho tem, afinal, o Mundo? Para os outros não sei bem, para mim não tem tamanho, vai para além de tais medidas. Vejo o Planeta como um grande parque de diversões à disposição da minha escolha e prazeres. Vejo o Mundo como uma bolinha encantada de intermináveis surpresas. Vejo-o pelos olhos de quem já viu bastante e sabe que verá muito mais. Porque a vontade conta e constrói a sorte. Porque a projeção e a lei da atração funcionam. E eu sei muito bem como.
Entro para o carro e pergunto: "Até onde chegarias hoje? E se tivesses um mês?". Um dia destes respondo-me. E depois volto. Para contar as estórias. Para abraçar as crias. E para voltar a repousar uns tempos, de olhos postos no Mundo, enquanto planeio devorá-lo de novo.

Ana Amorim Dias

Vou à fava!

Vou à fava!


Estou há mais de cinco minutos aqui sentada.
Agora estou há dez.
Viva a revolução?
Que digo sobre isto?
Faz-se outra?
Para quê?
Isso paga por acaso a dívida?
Uma revolução faria voltar os milhões roubados ao longo das décadas pelos ladrões que assaltaram o país? Não vejo como.
Uma revolução criaria as condições para que a educação, a saúde e outros setores voltassem a funcionar? Perdoem-me mas não creio.
Não é só a abanar cravos e a derrubar poderes instituídos que o país se pode vestir de novo com roupas que não estejam rasgadas.
Ser revolucionário é ter outra visão, é alterar por completo a noção de servidores e serviços.
Se sou revolucionária? Sim, muito mais do que pensava. Mas de revoluções que obriguem à responsabilização de quem fez merda. Revoluções que impliquem, no mínimo, a restituição dos produtos de todos os roubos. Revoluções que consigam levar ao poder pessoas sérias e empenhadas que vão para o trabalho de metro e ganhem o mesmo que ganha um professor. Nestas revoluções acredito... como acredito em milagres.
Por enquanto, em solidariedade com o estado da nação, (e desculpa lá mãezinha) visto as minhas calças rasgadas e vou... apanhar favas para o almoço!

Ana Amorim Dias

Contranatura

Contranatura

Dou uma dentada na torrada. Fico com a boca aberta, sem conseguir mastigar, enquanto na televisão os senhores da assembleia francesa armam um tumulto jeitoso. As imagens seguintes são de confrontos nas ruas, com a torre Eiffel por trás.
O motivo? 331 votos valerem mais que 225 e a lei do casamento gay ter sido aprovada.
Começo a dar aos maxilares. A torrada não se vai mastigar sozinha. Como é que pessoas ilustres de um nobre pais da velha Europa se portam como homens de cro-magnon perante algo que nada mais é que a lei do amor? E que reação teriam os manifestantes se os polícias levassem esta imagem no escudo? Talvez ficassem com vontade de agarrar com ambas as mãos bastões bem mais pacíficos,dando-lhes melhores usos, não?
Engulo um pouco de leite para desembuchar a torrada. O que não se me desembucha é a incredulidade. Quando começarão todos a entender que as únicas leis contranatura são aquelas que vão contra o sentimento AMOR?

Ana Amorim Dias

De mãos dadas com Deus

De mãos dadas com Deus

- O que é que tu tens? Pareces triste.- pergunta-me a Gui.
- Nada, estou bem.-
- Humf!...-
Como é que ela me conhece há trinta anos e não sabe que estou muito bem?
- O que tens filha? Está tudo bem?-
Bolas! E elas a darem-lhe!
- Sim, mãe. Está tudo bem.-
Como explicar-lhes que me sinto como o Clark Kent quando queria transformar-se em Super Homem e não podia porque tinha demasiadas pessoas ao pé? Como explicar que estou completamente mergulhada num projeto e já a preparar o próximo e que isso me faz a pessoa mais feliz do mundo? Como explicar que por mais emocionante que a minha vida pessoal seja, a vida criativa supera tudo?
Ajudem-me lá! Como é que se pode começar sequer a explicar que escrever é domar o tempo, visitar o futuro, voltar a viver o passado e congelar o presente em momentos eternos. Escrever é vestir o fato espacial, poder ver o Mundo de cima e perceber que de facto as estrelas não existem só acima de nós e sim em todas as direções.
Escrever é andar de mãos dadas com Deus e mostrar a língua ao Diabo; é ser anjo da guarda e guardião da evolução.
Escrever é usar os seis sentidos como se tivéssemos cem; é viver em encantamento e ter poder de encantar; é fazer mil perguntas e dar cem mil respostas.
Escrever é orar, treinar o intelecto, abraçar a essência, dar carinhos à alma.
Escrever é ouvir todos os sons naturais, ver por todos os olhos, sentir por todos os corações.
É por ser algo tão indizivelmente extraordinário que vicia e não se pode explicar.
Perceberam meninas? Perceberam que só estou calada porque estou a escrever em pensamento, absolutamente feliz? Mas não se preocupem: mais uma semanita e devo estar quase a sair do transe do novo livro. É claro que não sairei do meu estado natural, o criativo, mas ele só se voltará a agudizar em Outubro, quando partir para a próxima aventura...

Ana Amorim Dias

Sem bateria

Sem bateria

Oito e quinze, o minuto limite para sair de casa a tempo. O Tomás procura a mochila. O João ainda luta com os atacadores das sapatilhas. Eu corro até ao quarto e escolho uns quantos CDs para renovar o stock do carro.
- Go, go, go!- finalmente estamos todos sentados na viatura. Dou à chave. "Pio". Nada. Morreu. A última pessoa a usá-lo deixou a chave ligada. Não há bateria para ninguém.
- Rápido meninos! Acionar o plano B!-
Corremos para o outro carro enquanto eu profiro blasfémias em surdina.
Os CDs vêm comigo. Escolho um e ponho a tocar, ainda irritada.
- Mãe, emprestas o IPad?-
- Não! Assim talvez aprendam a estar prontos a tempo!- Conhecem a sua mãe suficientemente bem para escolherem fazer a viagem em silêncio. O mesmo silêncio que permite que a música entre em mim e exerça a sua magia.
"Não é grave. Levo-os à escola e o resto já se resolve", a alegria serena volta a atingir-me rapidamente graças a um cd que não ouvia há muito tempo.
"Que chatice, isto de deixar as músicas demasiado tempo nas pastas... Mas são tantas que há que ter tempo para as pôr a tocar e deixar que nos encantem." E então lembro-me das fotografias de grupo tiradas ontem na festa. Ocorre-me que também passamos a vida a estar demasiado tempo sem ver e ouvir todas as pessoas que nos encantam. Deve ser por isso que gosto tanto de reunir toda a gente: para os poder ouvir a todos e deixar que a alegria me invada com o som e a visão de cada presença. Até com a desta marota cunhada que me deixou um carro sem bateria...

Ana Amorim Dias

21.4.13

Detesto perder

Detesto perder

Oito da manhã. Ele salta-me para a cama ainda com mais energia e mimo do que é habitual.
- Hoje é o meu dia de anos! -
- Eu sei, meu amor. - encho-o de beijos.
Com tanto sono que tenho, a vontade era correr com ele, mas a importância do dia do seu oitavo aniversário fala mais alto.
Decido ligar o gravador do iPhone e entrevistá-lo para a crónica.
- Quais são os teus planos para o futuro, João?-
- Não sei. Ter filhos e bons carros. - emproa-se com a atenção da matinal entrevista, o ar muito sério e compenetrado.
- Que balanço fazes destes oito anos de vida?-
- Têm sido bons.-
Começo a perceber que não lhe vou arrancar grandes respostas.
- Do que é que menos gostas, amor?-
- De perder!- a rapidez com que responde não deixa margem para duvidas.
- De perder? Porquê?-
- Porque perder é horrível, mãe!-
Fico abraçada ao seu corpinho que continua a crescer, a sentir a suavidade daquele rosto que qualquer dia vai picar. Faço silenciosos votos de que ele nunca perca. Nunca perca a sua personalidade guerreira de quem luta pelo que quer; nunca perca a emoção das vitórias e conquistas; nunca perca a inocência de saber ser genuíno; nunca perca a esperança, a capacidade de amar e a coragem que tem. Como uma mágica fada, agito a minha varinha e desejo-lhe, acima de tudo, que nunca se perca de si.
Levanto-me e vou-lhe buscar os presentes. Tenho que começar a preparar a festa para que não perca um oitavo aniversario perfeito.

Ana Amorim Dias

20.4.13

Espontâneos


Ontem chegou-me outra, enquanto zumbava sozinha ao som ritmado dos Huecco. As epifanias dão-se numa explosão momentânea de compreensão em que coisas enormes se entendem com uma simplicidade cristalina.
Ali estava eu, a chover suor sobre o chão que me suportava o ritmo, quando o entendimento apareceu.
Tenho andado a vida inteira em busca da verdadeira razão do meu amor por estar sozinha. A luta por este espaço vital, impenetrável e sagrado, é semelhante a uma diária luta pela sobrevivência. Defender o santuário do tempo só meu implica preços, guerras, pactos e perdas. Mas não desisto, ou perder-me-ia de mim.
Desde miúda que me perguntava o porquê de tanto individualismo, rejeição de regras estritas, estruturas rígidas, horários e normalidades instituídas. Desde sempre quis perceber esta urgência de pensar pela minha própria cabeça, de me mover constantemente e construir uma liberdade maior.
Porquê? Porquê esta sede imensa de tanto espaço vital que me impulsiona a fazer tudo sozinha, até a zumba?

O corpo abanava-se em sincronia perfeita com o ritmo. A alma sorria inteira, em sintonia absoluta com a melodia. Não seguia nenhum exemplo. De ninguém. Ia fazendo os exercícios e passos como sempre tento fazer tudo: a sentir a música e deixando-me guiar pela espontaneidade. E então percebi!
A espontaneidade é o mais fiel reflexo da essência de cada Ser. A espontaneidade dos sorrisos e olhares. A espontaneidade dos abraços de coração e das palavras de força. A espontaneidade do "amo-te" que os lábios soltam sem pedir a permissão. A espontaneidade de se pensar como se quer e de se sonhar muito para além do que os sonhos alcançam.
É esta a razão que me faz ser tão necessitada de um enorme espaço vital: a espontaneidade de viver com a essência a comandar a vida.
Fica a questão: só podemos ser espontâneos a sós? Claro que não! Mas é no nosso próprio espaço vital que encontramos o campo de treino perfeito para podermos ser sempre... espontâneos.

Ana Amorim Dias

Manzanilla e sevilhanas

Manzanilla y Sevillanas

Cento e trinta quilómetros de caminho e chego a outro planeta. Cavalos de todos os portes, com arreios que encandeiam. Charretes lustrosas carregadas de gente que enverga o copo na mão e o orgulho no rosto. Vestidos de sevilhanas a cobrir as sevilhanas. Corpos de todas as formas, desenhando cem mil padrões, fazem oscilar as franjas com sensualidades latentes. E eles, à porta das coloridas casetas, bebem a manzanilla sob um sol que lhes derrete a brilhantina e os trajes que não deixam dúvidas: são espanhóis, andaluzes, de Sevilha.
Caminho invisível pelas calles musicadas. Olho, vejo, observo, absorvo. Imagino-me há décadas atrás, olhando o meu bisavô sevilhano a viver a festa por dentro. Disparo a minha máquina com novos olhos, iluminados por outras sabedorias que um mestre da fotografia me tem sabido ofertar. De repente entendo as ferramentas que trago comigo: a estética visão da arte; o iluminado olhar da alma; a infalível mirada da experiência, que a cada detalhe acede. Ocorre-me que as festas tribais são momentos em que o tempo se distorce e a realidade se transforma numa elevação sensorial capaz de mudar muitas coisas. Percebe-se perfeitamente quem pertence àquela tribo e quem não poderá nunca saborear o verdadeiro sabor da manzanilla nem rodopiar as mãos com uma tão sublime graça.
Continuo o meu caminhar invisível de quem não pertence à tribo, mas que a traz nos seus genes, sorrindo por saber que tudo o que me importa é continuar a conseguir ser a simples caçadora de emoções que vai fotografando em palavras as almas dos membros de cada tribo.

Ana Amorim Dias

Egos

Egos

Esquecendo definições catedráticas, falo do ego tal como usamos a palavra no dia a dia: correspondendo à imagem e à aceitação que cada um tem de si próprio.
Há egos pequeninos, sorrateiros, que mal se vêem mas estão lá. Há os comedidos, de tamanho médio, eficientes. E depois há os enormes, o que não quer dizer necessariamente que sejam exacerbados. E a justificação é simples. Da mesma forma que há corpos de vários tamanhos, também as essências não se medem em centímetros: comprova-o a expressão que reza que os Homens não se medem aos palmos. A verdade é que há pessoas pequeninas, limitadas. Pessoas que, vão-se lá saber as razões, vivem com os sentimentos encolhidos e uma visão de tudo que parece ter palas a toda a volta. E depois há os outros, que se sabem grandes por em tudo verem grandeza. As pessoas grandes sabem que o Planeta é maior que a sua rua; sabem que o mundo não acaba quando o coração se lhes parte; entendem podem aprender com tudo, com todos e não se fecham na ignorância de quem acha ser o dono da verdade. As pessoas grandes gostam de experimentar, de se aventurar, arriscar; não têm medo de sentir, de errar, confiar, encantar-se ou não gostar, porque sabem que existem sempre outras escolhas quando a primeira deu asneira. As pessoas grandes não se escondem atrás do ego que muitas vezes é quase tão grande como elas próprias.
É que há uma grande diferença entre ser egocêntrico e ter um ego gigante. Até tenho a convicção de que as pessoas "pequeninas" e com egos encolhidos, costumam ser egocêntricas, enquanto as pessoas grandiosas, donas de um ego merecidamente enorme, têm a maravilhosa capacidade de entender que são um elemento do todo e não o centro de nada.

Ana Amorim Dias

17.4.13

Gemidos

Gemidos

Quando penso escrever sobre algo está tudo estragado. Já sei que nem vale a pena tentar reprimir-me. Tenho que escrever. E o que escrevo tenho que publicar.
- Tens uma escrita corajosa, Ana. Sobretudo para mulher.- dizia-me no outro dia um amigo.
Corajosa ou inconveniente? Continuo a acreditar no que digo e isso é enorme. Mesmo que inconveniente para alguns, talvez outros queiram ler.
Chega de introduções, fica só o apelo aos púdicos para que se abstenham de ler.

Uma vida sem gemidos não pode ser sincera. Sensual não é, de certo. E a sensualidade faz falta. O deslizar lânguido dos corpos, mesmo que sós, acresce pontos à estética emocional de todas as vidas. Faz falta assumir os corpos nus. Faz falta envergá-los à luz, na assunção plena do nosso paradoxo de humano e animal. Faz falta sentir, assumir e admitir o prazer. E este só é inteiro quando nos sai com sons suaves, expressivos, guturais. Sons que prolongam, exponenciam e expressam todo o nosso prazer. É que a vida já é tão gritante no que toca a coisas más que se a deixamos muda no que ao prazer diz respeito, perdemos metade da voz. Há que gemer, sim, para não calar o prazer. E porque a sensualidade faz falta.

Ana Amorim Dias

Resistente

Robustez

Tenho uns amigos que se continuam a rir com o episódio, depois de tantos anos. Eu estava atrás do balcão do Piratas e, com duas canecas em cada mão, virei-me de uma maneira estranha. Não sei com fiz aquilo mas devo ter tropeçado e caí, com muito estrondo, como uma sequoia gigante.
À força de tanto recordarem a queda da grande sequoia, lembraram-me do jogo infantil: "se fosses um animal, que animal eras?" , "Se fosses uma máquina, que máquina eras?" e por aí fora.
Mal vi esta fotografia foi quase como ver-me ao espelho! Uma viagem sozinha naquele volante? Era até ao cabo do Mundo! Exatamente como faço comigo: sigo-me até ao fim, sem sequer olhar para trás.
Olho de novo. Admiro a robustez da máquina, quase assustadora, e percebo que sim: mesmo quando a vida me quis fazer sentir como um triciclo de plástico comprado nos chineses, eu no fundo sabia que era um peso pesado e que a estrada estava mesmo ali ao meu lado, à espera de que eu a percorresse com toda a minha potência.
Resta um pequeno "senão", que é o de gastar muito. Mas não é preocupante. Sei que por todo o lado há estacões de combustível com aquilo que me move.

Ana Amorim Dias

Sem saber

Sem saber

Há uns dias comecei a falar com uma senhora que não conheço de lado nenhum, como tantas vezes acontece. Na fila do supermercado, por ficar forçosamente quieta, tenho que me entreter com alguma coisa. Falei-lhe com o à vontade com que falo a toda a todas as pessoas, conhecidas ou não, mas estranhei a sua euforia por eu lhe estar a dar atenção.

A minha irmã tinha na carteira um postalito de um santo, com uma pequena oração. Com a curiosidade dos meus oito ou nove anos, perguntei-lhe o que era aquilo e ela contou-me a história.
- Eu estava na minha hora de almoço e uma velhinha, daquelas que moram na rua, pediu-me uma moeda porque estava com fome. Pedi-lhe para esperar e fui buscar qualquer coisa para comermos.-
- Para comerem?- perguntei.
- Sim, querida. Sentei-me com ela e almoçamos as duas, sentadas num degrauzinho da rua. Foi tão bom. Quando nos despedimos ela ofereceu-me esta oração.

Sei hoje que aquele almoço deve ter sido muito especial para ambas. O que não sei é se a minha irmã alguma vez sonhou no que este almoço fez por mim. Mas esta é uma prova irrefutável de que os nossos gestos têm repercussões que vão muito para além do momento, e se multiplicam como ondas para além do tempo e do espaço. Lembrei-me disto de novo, há dias, perante o olhar espantado da jovem mãe cigana, com quem tanto conversei na fila do supermercado.

Ana Amorim Dias

14.4.13

Alegria

Alegria

Eu achou que no fundo já sabia, mas ontem percebi-o conscientemente, enquanto desligava o telefone à minha mãe.
- Adeus princesa-mãe! Beijinho da princesa-filha!-
- Oh filha, mas se sou a mãe devia ser rainha, não?-
- Claro que não, isso era demasiado pesado para ti! O teu ar é tão jovial que só podes ser princesa!-
Riu-se. E antes de desligar perguntou:
- Mas porque é que tu me deixas sempre assim tão bem disposta?-

A universal lei da atração funciona com a alegria. As pessoas alegres magnetizam os outros, transformam a realidade, melhoram as energias e atraem coisas boas. A grande questão que fica? Como ser uma pessoa alegre!
Se é para estar triste que seja, mas que se chore a tristeza toda inteira até ao fim. E depois o encantamento. Com tudo. Com todos.
Se é para estar preocupado que seja, mas que se perceba que existe sempre solução. Quanto mais não seja a de perceber que o que não a tem, solucionado está! E depois? Mais alegria.
É que todos somos demasiado bons e belos para a rendição à tristeza! E todos os que nos rodeiam merecem o melhor de nós, certo?
Por isso comecem a treinar hoje mesmo, com a ajuda do sol. É que o espírito humano tende mesmo à alegria, para quê forçar o contrário?

Ana Amorim Dias

Não encomudar

Não "encomudar"

A culpa deve ser minha. E do pai também, claro. Mas em primeiro lugar, minha. Os meus pobres filhos sofrem com o excesso energético da progenitora desde tempos uterinos. Lembro-me de um jogo de matraquilhos que ganhei junto à ribeira, às oito da manhã do primeiro de Maio de 2001, depois de uma inesquecível direta. Um mês depois, o Tom nasceu. Vinha cansado.
Lembro-me de um casamento que fiz, há oito anos por esta altura, no qual trabalhei como louca. Cinco dias depois nasceu o João. Como também (não percebo porquê) vinha bastante cansado, deixei-o a descansar e, passados mais cinco dias, voltei ao trabalho.
Desde bem pequeninos que levam estafas terríveis. Seguem-nos durante quilómetros, vivem experiências extenuantes, mantêm-se vivos e alerta muito para além do que seria de esperar, porque perceberam logo cedo que só assim conseguiriam acompanhar a "pedalada" dos pais e absorver a intensidade de imensas coisas que lhes é facultado viver.
Mas às vezes pedem tréguas. Adormecem nos sofás de uma qualquer esplanada ou aninham-se na tranquilidade merecida do banco de trás, depois de pendurarem no retrovisor o apelo do "não encomudar"!

Ana Amorim Dias

Capitalizar emoções

Capitalista

Gosto de dinheiro, claro. Gosto de dinheiro nas contas, nos bolsos, na mala. Gosto de ganhar dinheiro e de gastar dinheiro. Gosto de dar dinheiro a ganhar. Não gosto que me roubem dinheiro nem que tenham deixado o país num estado em que já nada dá dinheiro por dinheiro não haver.
Encaro como normal esta minha relação com o dinheiro. Convivo com ele mas não vivo para ele. Conheço o seu valor, que é exatamente o que vale e nem um cêntimo a mais. E nem sequer vou dizer que o prazer de comprar é fugaz e se esgota assim que se passa o cartão, porque há coisas que ele compra que ficam mesmo para sempre. Há coisas compradas que nos marcam, constroem e deixam lembranças que ficam para sempre. Há dinheiro que sim, traz mesmo felicidade, sobretudo quando vem daquilo que amamos fazer e quando deixa feliz quem compra o que fizemos tão bem.
Gosto de ver para lá do dinheiro, para lá das roupas rasgadas que envolvem os indigentes; para lá dos fatos de marca e dos sapatos italianos. Gosto de me sentir para além do dinheiro, de saber que consigo sentir felicidade no zero e no mil. Gosto de perceber que talvez consiga viver com a humildade de ter para partilhar e com a nobreza de algum dia o ter que pedir.
Sei que só se adormece, imediata e profundamente, quando o básico está assegurado, quando não há grandes dívidas nem a sombra de devastadoras perdas. Mas o que de mais importante sei é que uma fatia de pão com manteiga partilhada com a minha melhor amiga, me sabe muito melhor que toda a lagosta do mundo; que ver as gargalhadas felizes da existência normal dos meus filhos me orgulha mais que tudo o que lhes possa comprar; que a alegria mais intensa pode estar numa volta ao quarteirão e não numa volta ao Mundo. É que o dinheiro pode comprar muitas coisas mas vale só o que vale e nem mais um cêntimo. Pode comprar muitas coisas mas não compra o sentido crítico, a sensibilidade, a inteligência e a criatividade. O dinheiro não compra a arte interior, a amizade eterna, o amor verdadeiro, a fé fervorosa, o respeito merecido nem a admiração genuína.
Sou capitalista, sem dúvida, mas acima de tudo de emoções boas e das gargalhadas que até de cabeça para baixo sei dar.

Ana Amorim Dias

Primeira vez

Atirei o barro à parede.
- Tomás, hoje lavas tu a loiça.-
- Oh mãe...-
- Oh mãe, nada, filho! Hoje em dia nenhuma mulher te vai querer se não souberes fazer estas coisas!-
Soubesse eu disto mais cedo! As minhas palavras embruxaram-no. Levantou a mesa, todo airoso, aproximou-se do lava loiças, arregaçou as mangas, olhou para mim muito sério, com a esponja na mão, e perguntou:
- O shampô vai de que lado?-
- Do que tem a parte verde. - respondi, tentando conter as gargalhadas.
Calculei que o resultado talvez não fosse perfeito, mas é a fazer que se aprende.
Instalei-me à secretária, liguei o facebook e saboreei o doce sabor da minha maquiavélica vitória, enquanto ele, muito satisfeito consigo, ia desenvolvendo mais uma aptidão de Don Juan.
Só mais tarde, quando fui fazer um chá, reparei na perfeição da limpeza e do alinhamento da loiça. O moço faz-se!

Ana Amorim Dias

10.4.13

Página 50

Pagina 50

Quando uma crónica se enche de "gostos" e boas críticas, a que escrevo depois é criada com um acrescido sentido de responsabilidade. Creio que acontece com tudo: a única desvantagem de fazer algo reconhecidamente bom é a necessidade de suplantar o feito logo na oportunidade seguinte. Mas se analisarmos bem o facto, ele nada tem de desvantajoso. Muito pelo contrário, é a capacidade de fazer bem as coisas que nos incendeia o fogo de ainda tentar melhorar.
Estou na página cinquenta da biografia do Eric. Um ritmo um pouco escandaloso se for fazer uma média. Ainda para mais porque não há prazos a cumprir, ninguém corre atrás de mim. A não ser eu mesma. Os dias sucedem-se entre treinos físicos, intelectuais e linguísticos; entre momentos criativamente orgásmicos, pesquisas culturais e geográficas, leituras incessantes numa língua que não domino e o apuramento de tudo o que a memória reteve. Em suma, vivo dias de desafio constante e de um prazer indizível, em que a responsabilidade de contar bem a vida mais interessante que algum dia poderia ter imaginado existir, quase me esmaga.
Faço-o com a vantagem de não precisar de suplantar qualquer obra minha anteriormente reconhecida. Nenhuma delas o foi. Mas faço-o com a pressão de querer manter e melhorar toda a qualidade que sei ter colocado nos livros que já escrevi.
Por agora vou indo. Já li alguns destes, mas faltam-me outros. E está tudo escrito em francês!

Ana Amorim Dias

Os corações tratam-se por tu

Os corações tratam-se por tu

Assim que liguei o facebook para publicar a crónica, vi que tinha várias mensagens. Uma delas, de uma doce Anabela, desejava-me simplesmente um excelente dia de escrita. A ser verdade que os pequeninos gestos transformam o Mundo, o meu em particular foi ontem ainda mais mágico e inspirado devido a este "bom dia" tão espontâneo.
Mais tarde, ao fim da noite, quando já estava a ponderar fazer descansar os dedos, um leitor publica algo no meu mural e escreve: "Adorei a tua crónica". Em que é que isto me despertou a vontade de escrever mais esta? No tratamento por "tu"!
Há algum tempo atrás, a Ana-advogada-princesa semi oligarca da Quinta teria torcido o nariz ao facto de alguém que não conhece a ter tratado de uma forma tão desautorizadamente intimista.
Mas hoje? Hoje parece-me bem!
Significa que estou a fazer um bom trabalho. Significa que a Ana-escritora se começa a sobrepor a tudo o resto e isso agrada-me imenso. Posso manter o meu hábito de, até prova em contrário, tratar todos por "você", mas é quando a espontaneidade alheia me brinda com "tus" que sorrio e percebo os porquês: é que escrevo de coração a corações e estes tratam-se sempre por "tu"!

Ana Amorim Dias

Heróis

Heróis

- Sabes qual é o meu único e verdadeiro medo?-
- Não. Diz-me.-
- É perder algum dia a capacidade de partir para novas aventuras; é ficar estagnada, não sentir nada, não ser a heroína da minha própria história...-
- Eu sei. Mas já pensaste que os verdadeiros heróis talvez sejam aqueles que sabem enfrentar a monotonia do quotidiano?-

Afinal quem são os heróis? Onde e como se salta por cima dessa linha que separa as vidas memoráveis das vidas banais? Existem vidas banais? O que implica mais coragem? Ficar ou partir? E a liberdade o que é? Todos a têm apesar de não a exercerem para não suportarem as consequências.
Desconfio que ele tem razão: os verdadeiros heróis se calhar são mesmo os que aceitam enfrentar a monotonia do quotidiano. Por isso não quero ser heroína. Isso não é para mim. Continuarei a ser apenas a pessoa que se constrói dia a dia com novos sonhos, novas partidas, mais ambiciosos planos e sentidas emoções. Continuarei a ser apenas aquela que há-de partir sempre em direção ao pôr do sol para escrever o livro da vida.

Ana Amorim Dias

Assobio

Assobio

- Mãe podemos ir àquela loja?- o Tomás adora andar sozinho e sem pressões pelo centro comercial.
- Está bem. Mas não se separem um do outro e tenham atenção ao assobio.-
Minutos depois volto à loja onde os deixei e, logo à entrada, faço soar o nosso assobio. Em apenas três segundos tenho as crias ao meu lado.
- Oh mãe...-
- Diz Tom. -
- A chamares assim por nós até parecemos uns cachorrinhos!-
Nem lhe respondo. Desconfio que um dia ele vai ter os seus próprios "cachorrinhos" para chamar com um assobio. E, se os meus planos funcionarem, também vai perceber que o mais importante nem sempre é o que fazemos por eles e sim o que lhes ensinamos a fazer por si próprios.

Ana Amorim Dias

6.4.13

Ontem à tarde

Ontem à tarde

O avião aterra em Sevilla sob um sol resplandecente. Olho para o relógio. Ontem a esta hora estava a beber cerveja numa esplanada da marina de Saint Tropez e agora vou tomar a direção de Castro Marim? Bem, é a vida!
Entro para o carro e páro junto às máquinas onde se paga o parque. Nesse momento lembro-me: faz hoje dois anos que, à hora em que eu hoje estava lá em cima nas nuvens, me ligaram: - Ana? Lamentamos informá-la, mas o seu pai acabou de falecer.-
Ponho o tiquet na máquina e a cancela levanta. Aprecio a união com o meu carro, esse prolongamento de mim que me leva onde quero. Entrego-me a esse prazer. Passo da segunda para a terceira e da terceira para a quarta, meio macambúzia. Mas quando a quinta se engata não reprimo o sorriso que se me estampa no rosto. De que me serve estar triste? Isso não o traz de volta. Prefiro abraçar este sorriso agradecido por tudo o que de bom ele deixou gravado em mim.
E então lembro-me de uma das gravações do Eric, sobre a forma como a sua mãe, as suas filhas e algumas mulheres que amou o ajudaram na sua construção pessoal. Faço o mesmo exercício com a minha própria vida e sorrio outra vez de orelha a orelha, lembrando-me da última lição deste homem que me inspira a superar-me.
- Não aprecio despedidas por isso tchau, nem vou olhar para trás.- disse-lhe eu.
- Tens razão, eu também não. Tchau!-
Devido às filas em corredor, acabei por ficar mesmo de frente para a saída da gare. E lá estava ele à espera. Deu uma gargalha, fez adeus e só então foi embora.
E eu fiquei a rir. Já aprendi que o Mundo é tão pequenino que um dia destes nos vamos encontrar por aí.

Ana Amorim Dias

Paciência

Paciência

As narrativas de incontáveis acontecimentos estão já retidas em horas e horas de gravações. Sei que vai ficar tanto por contar que ando sempre atrás do pobre Eric, de Iphone em punho, para o fazer falar ainda mais. Chateio a família toda, vasculho álbuns de fotos, pergunto, esmiúço e, claro, ponho toda a gente a rir a toda a hora com o meu francês deplorável e as minhas ideias loucas.
É incrível a hospitalidade de toda a família e a disponibilidade para fornecerem todo o barro necessário para prosseguir com a minha "escultura".
Mas ainda bem que já me vou amanhã. Deve ser por me sentir tão bem em todos os lugares e com todas as pessoas que acabo por me sentir em casa e ficar com a sensação que estou a encher mais espaço do que aquele que o meu corpo ocupa.
Amanhã tudo voltará ao normal em Saint-Maximin-la-Sainte-Baume. Já cá não vou estar a desencaminhar toda a família nem a testar a infinita paciência do Eric como uma miúda irrequieta a quem há que responder a todos os porquês. Começo a desconfiar que nem toda a formação antropológica e aventureira o prepararam para tamanha estafa!

Ana Amorim Dias

4.4.13

Eric lobo

Eric Lobo

Ora então vamos lá desvendar o segredo. Ando há mais de dois anos a querer escrever uma biografia. Mas não queria escrever sobre uma vida qualquer. Não teria paciência nem motivação para escrever sobre algum músico, ator, político ou qualquer outra personalidade com o ego demasiado inchado e uma vida desinteressante.
Devo ter uma estrelinha da sorte muito ativa (ou então sou apenas bastante determinada) porque o inusitado aconteceu. O Eric conheceu um pouco do meu trabalho e confiou-me a missão de narrar com carta branca estes quase cinquenta anos de vida em que os dias se sucedem com emoções tão intensas como fotografar tribos antropófagas ou dar a volta ao Mundo sozinho em cima desta Harley toda desconjuntada. Mas isto são só meras páginas do livro da existência deste fotógrafo antropológico-businessman-aventureiro-desvairado. E são todos os seus capítulos que espero ter a capacidade de narrar com justiça, emoção e interesse, de forma a fazer-lhe justiça e a dar-vos o prazer de lerem a história de vida deste herói dos tempos modernos cuja maior virtude é uma sensibilidade humana capaz de nos inspirar a todos a viver os nossos próprios sonhos.
Por agora, enquanto o livro se escreve, resta-me desafiar-vos a procurá-lo no facebook e, porque não, a pedirem-lhe amizade.
Abraço desde a Prevença,
Ana Amorim Dias

3.4.13

Maria Madalena

Maria Madalena

Às vezes desconfio que os destinos mais surpreendentes se escondem no fim de caminhos que se tomam por não querermos ficar parar parados. Aconteceu-me hoje outra vez.
Esta manhã não tive entrevistas porque os familiares da pessoa sobre quem estou a escrever foram fazer as compras para o almoço. O visado, por sua vez, tinha uma manhã de trabalho inadiável que o impediu de prosseguir com as narrativas que me estão a servir de base à sua biografia. Por isso fiquei com a manhã livre, no meio do campo, na Provença, sem qualquer meio de transporte à minha disposição.
Ia ficar parada? Não me parece. Comecei a caminhar pelo campo e, algum tempo depois, cheguei a uma vila chamada Saint-Maximin-la-Sainte-Baume. Linda. A sorte foi tanta que me vi no meio de um típico mercado de rua que só acontece às quartas feiras. Mas a delicia maior foi encontrar uma Basílica, a de Santa Maria Madalena, na qual se encontra nada mais nada menos que a sua cripta.
Mais palavras?
Para quê?

Ana Amorim Dias

Nas nuvens

Cá em cima

Gosto de escrever aqui em cima. Apesar de o café nunca ser sequer razoável, há algo de superior na criação feita acima das nuvens. Duvido que tenha a ver com a altitude. Nem me parece também que se prenda com a relativização dos problemas que a vista de cá de cima nos potencia. Sei muito bem que o que mais me entusiasma quando escrevo nos aviões, é a antecipação do que vou viver a seguir; a vertigem das novas experiências; a proximidade de fantásticas descobertas. Sempre que parto para um novo (ou repetido) destino, e seja qual for o motivo, não tenho quaisquer dúvidas que à volta vou estar incomensuravelmente mais rica.

Ana Amorim Dias

1.4.13

Evolução e esfregonas

Evolução e esfregonas

- Percebes mãe?-
Tenho a impressão que ela me respondeu com um olhar baralhado de incompreensão, mas não posso garantir porque ia com atenção à estrada.
- O que fazemos de mais banal pode ganhar dimensões super emocionantes se dermos o enquadramento certo. - continuei. - Por exemplo, andar de carro é algo a que já quase não se dá valor, mas se imaginarmos que estamos a guiar no velho Oeste, no tempo em só havia carroças e cavalos, a condução ganha outro sabor!-
A grande vantagem da minha mãe é que já me atura desde o dia em que eu nasci, por isso nada lhe faz confusão. O que me fez confusão a mim foi a reviravolta que a conversa deu. Evolução para cá, desenvolvimento para lá e eis que chega a sua bombástica revelação.
- As esfregonas só apareceram quando tu tinhas um ou dois anos... E tínhamos que ir a Espanha comprar. Foi uma maravilha!-
Continuo a tentar perceber como é que não bati no carro da frente. Então eu sou anterior às esfregonas???? Eu já existia quando as mulheres puderam passar à posição ereta para lavar o chão da casa?? Mas como? Eu ainda sou uma miúda!
De repente senti que pouco faltou para, durante a infância, ter tido por animal de estimação uma cria de dinossauro. Mas depois, num breve flash, recordei tudo o que existia e não existia nesses meus primeiros anos e compreendi que não sou eu que sou muito velha, é a evolução que é mais galopante que os tais cavalos do velho Oeste que às vezes me acompanham na estrada.
De qualquer das formas há uma coisa que é certa, vou levar o resto do dia para me conseguir ultrapassar o choque de ter descoberto que sou anterior à era da esfregona!

Ana Amorim Dias

Lembro-me

Escrever a vida

Lembro-me com precisão do que fiz há um ano. Lembro-me por onde andei, de como estava o tempo, do que pensei e do que senti. Não preciso de ir ler o que escrevi para me conseguir lembrar de tudo.
Lembro-me de muitos dias e momentos aparentemente normais, não por os catalisar em crónicas, mas por intensificar a vida ao escrevê-la. Assim de simples.
O que tem isto de bom? Uma coisa, acima de todas as outras: fazer com que todos os dias sejam dignos de ser vividos... e lembrados.

Ana Amorim Dias

Foco

Ganhar

Começo pelos matraquilhos. Um contra um. Ganho. O adversário, com o seu mau perder, desafia-me para um jogo de snooker.
- Quem ganhar este, ganha tudo.- explica, com vista a salvar a face.
Aceito. Sei que as minhas hipóteses são fracas porque, ao contrário dos matraquilhos, o snooker não é a minha especialidade. O meu oponente é bem mais forte que eu neste novo campo de batalha.
Dou a tacada da partida. Forte, firme, seca. As esferas ficam bem espalhadas e o adversário mete duas bolas e estrutura o seu jogo. Respiro fundo. Circulo à volta da mesa a planear a estratégia. Respiro com calma, centro o meu foco na direção e na força controlada que me deixa as bolas todas nas entradas dos buracos. O adversário ataca uma e outra vez até que por fim falha a preta. Tenho três bolas bem posicionadas. Tiro as medidas ao jogo. Deslizo como uma pantera pronta para chacinar a presa. Seguro no taco com a ferocidade e confiança de um daqueles bad boys que há nos antros de perdição. Só me faltam os olhos semicerrados pelo fumo da beata no canto da boca e duas armas nos bolsos.
"Foca-te, tu consegues." E meto uma. "Respira fundo, aproveita essa alegria confiante." Meto outra. Mantenho-me completamente neutra, sem manifestar qualquer reflexo do que estou a sentir. Meto a terceira bola e preparo-me para jogar à preta. "Yes!! Estás a jogar mesmo bem, nem importa que não ganhes!" digo a mim mesma. "Não ganhar?? Estar tão perto e não ganhar?? Maluca!", respondo-me.
Faço pontaria à preta. Doseio a força, esse meu ponto fraco quando é usado em excesso. Dou a tacada e fico a olhar para o lento rebolar da bola. Entra. Ganho o jogo outra vez. O adversário retira-se sem dizer palavra. Sabe tão bem ganhar. Tão bem, tão bem, tão bem!!
Tirando o condimento da sorte, todos os ingredientes necessários para ganhar dependem apenas de nós: o foco, a aptidão, a motivação, o esforço e, claro, a alegria de estar no desafio. E não me venham cá com histórias porque só jogar bem não é tudo. É que não é mesmo!

Ana Amorim Dias

O melhor banho

O melhor banho

Era Agosto. Agosto de 1989. O pó avermelhado e fino que os helicópteros elevavam pelo ar cobria cada milímetro do meu corpo. No Monte do Gozo, perto de Santiago, éramos 400.000 jovens por aqueles dias, naquela que foi a IV jornada mundial da juventude.
Vi o Papa João Paulo II, sim senhor: passou mesmo à minha frente. Mas a sensação de sujidade estava a perturbar-me com uma tal intensidade que creio ter rezado pelo milagre de um banho.
- Ana!-
Abri lentamente os olhos e vi-o, completamente desperto, a acenar para que o seguisse.
- Shhhh, não faças barulho para não acordares mais ninguém!-
Caminhei alguns minutos, no meio dos milhares de tendas e de pessoas que iam despertando para o dia, sem fazer ideia do que me esperava.
- Para onde me levas?-
- Já vês. Vais gostar! - e deu-me a mão para que eu não duvidasse.
Ao fim de uma curta caminhada, para lá da multidão, no sopé da colina, apresentou-me finalmente a sua oferenda: um riacho abundante e cristalino, sem uma única presença humana!
Creio que o meu agradecimento foi tão grandioso como a sua amorosa oferta: um banho de felicidade pura que me arrancou cada grama daquele pó infernal.
Tenho quase a certeza que foi naquele momento que me apaixonei por ele. Na parca sabedoria dos meus quinze anos lembro-me de ter pensado: "Uau! Se ficasse encalhada numa ilha deserta, que fosse com ele!"
Sei que lhe perguntei como tinha descoberto o fantástico manancial e que ele me explicou o raciocínio lógico que o levara ali. O que não lhe perguntei foi o porquê de me ter escolhido a mim para entregar o prazer daquele banho perfeito. Não foi preciso. Percebi bem depressa que ambos tínhamos escolhido a companhia um do outro para a aventura da ilha deserta do resto da vida.
O problema é que a ilha deserta do resto da vida pode ser tão incrivelmente hostil que poucos lhe resistem. É por isso que me alegro por lhe ter captado as grandes capacidades de sobrevivência; por o ter eleito. E é por isso também que quando as tempestades chegam à paradisíaca ilha, escolho nunca me esquecer...do meu melhor banho.

Ana Amorim Dias