(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

30.6.13

Assinar de coração

Assinar de coração

Ao longo dos últimos dias, ao levar o João às férias ativas, em vez de ir direta ao sítio certo, tenho falhado sempre o alvo. Devia virar logo à esquerda, trezentos metros antes da sua escola, mas vou dar a volta lá ao fundo depois de perceber que estava outra vez no aluado mundo das minhas divagações. Se isto me irrita? Nem um bocadinho. Pelo contrário, traz-me um sorriso feliz: posso falhar o alvo da vida real, mas estou no caminho correto deste crescimento interior.

Ao longo dos últimos anos tenho passado grande parte do meu tempo consciente a escrever em pensamento e, aparentemente, o mecanismo tem-se otimizado com uma tal eficácia que se tem tornado normal funcionar também em pleno não só quando estou a render-me ao sono como a regressar dos seus braços.

Mas foi ontem que tudo ganhou mais sentido. Andei a dar uns retoques de pintura, em paredes cá da quinta e, quando estava a terminar, consciencializei-me da vontade de assinar. Tornou-se óbvio que não iria fazê-lo como em cada crónica e livro, com "Ana Amorim Dias", por isso segui o instinto e assinei de coração.
Quando dei uns quantos passos atrás e ganhei mais perspectiva, consegui uma visão mais abrangente. Entendi finalmente que é assim que assino todas as criações: feliz e...de coração.

Ana Amorim Dias

Pelo sol ou pela vida?

Pelo sol ou pela vida?

- Não te rias, Ana! A sério: sou uma pessoa marcada!-
- Pelo sol ou pela vida?

Como ela tinha acabado de regressar da praia a minha pergunta saiu por instinto mas agora, quanto mais me lembro da questão mais lhe reconheço a pertinência.
Começo a divagação constatando que uma vida que não marca é como um Verão em que faltamos à praia. De que serve uma vida que não marca? Uma vida que não bronzeia nem nos deixa com um ar mais saudável e sensual?
"Mas, Ana, muitas vezes a vida marca com dores, com tristezas e sofrimentos...", poderão vocês contrapor.
Não posso falar em nome das "queimaduras solares" que a vida trouxe aos outros mas o que fiz com os meus próprios "escaldões" confere-me legitimidade para dizer algumas coisas.
Detenho-me um momento a fazer uma compilação dos dolorosos raios com que a vida já me queimou. Podem ter sido só três ou quatro mas fariam tombar qualquer um. Então porque é que me lembro de tudo sem me recordar da dor e com um sorriso tranquilo a brotar no corpo todo? Qual foi a alquimia que transformou queimaduras neste bronzeado perfeito? Aceitar que a vida é assim, que às vezes queima a valer; aceitar o ocorrido e encher o coração de amor, perdoar, seguir em frente, seja lá para onde for. É que o que não nos liquidou só nos pode tornar mais fortes.
Temos a sensata opção de não nos expor demasiado ao sol, mas não nos expormos à vida não devia caber nos planos de ninguém. Ela queima, é verdade, mas é com cada escaldão dela que conquistamos a hipótese de andar de alma saudável, forte, feliz, sensual... e bronzeada!

(E Luís? Esta é para si, caro amigo!)

Ana Amorim Dias

De luz e escuridão

De luz e escuridão

- Ai mãe... Está tão escuro...-
Seguíamos de carro por uma estrada isolada, o João e eu. Liguei os máximos quase instintivamente, para ver se lhe passava.
- Deixa-me explicar-te uma coisa, amor: a noite é escura, é mesmo assim, mas tudo o que vês de dia está igual durante a noite. Só que não se vê porque não há luz, percebes?-
Senti-o a relaxar um pouco ao medir a veracidade das minhas palavras. Mas não continuei a verbalizar os meus pensamentos.
Quantas pessoas vivem na escuridão mesmo em plena luz do dia? A confiança e ausência de medos tolos lança tanta luz à noite como os medos infundados escurecem os mais luminosos dias. Não é uma divagação, é um facto. Há quem se desloque na noite com olhos felinos, vendo nas sombras difusas exatamente o que lá está e não inexistentes monstros. E há quem atravesse a luz com o esmagador e negro peso dos fantasmas nascidos no seu interior.
Caminho por vezes às escuras, mas uso o passo firme e confiante da minha luz interior, a mesma que sabe que os mais perigosos demónios são os que a nossa imaginação se permite deixar entrar.

Ana Amorim Dias

Ao som dos chocalhos

Ao som dos chocalhos

Deviam ser umas dez da noite quando comecei a ouvir os chocalhos. À meia noite o Tomás veio reclamar: de janela aberta não conseguia adormecer porque as vizinhas fugitivas faziam muito barulho e com a janela fechada tinha que ligar a ventoínha que fazia um chiar estranho.
Segui-o até ao quarto, matei os três mosquitos, fechei a janela, arranjei a ventoínha e dei-lhe o "beijo mágico", capaz de adormecer quem já bebeu dez cafés. Cinco minutos depois a criaturinha respirava profundamente, entregue ao seu sono tranquilo. E eu continuei o meu serão embalado por chocalhos.

- Pai, pai!! Compraste vacas?? Yeeeyyyy!- o João chegou ao quarto a segurar um tabuleiro com o pequeno almoço para todos, provavelmente para comemorar e agradecer a "compra" das cinco vacas cujos chocalhos continuavam a soar.
- Não João. São vizinhas fugitivas.-
- Ooohhhh.-
Provei o leite com chocolate e engasguei-me.
- Filho: deixa-te de pequenos almoços. Está outra vez horrível.-
Habituado à minha frontalidade sincera, deu-me um satisfeito "Está bem" e foi olhar para as vacas chocalhantes que continuavam a espalhar bosta pelos relvados.

Quando saímos de casa e parei para as fotografar, olharam-me com o focinho de "O que é que foi? Há algum problema??" e eu respondi que "Não, não há problema nenhum". Gosto de chocalhos, mosquitos, ventoínhas chiantes e leites mal misturados. Acho que é a conjugação disto tudo que me faz mesmo feliz.

Ana Amorim Dias
Às vezes pergunto-me a quem foi o catraio sair. É que tanta demagogia numa pessoa tão jovem até me deixa assustada. Depois de se portar mal e perante a ameaça de eu já não lhe emprestar o iPad, a criança lembrou-se de ir fazer uma composição:

"A minha mãe é tão bonita como o pôr do sol
A minha mãe também é linda e também muito sexy. Quando ela fala tem uma voz tão meiga e o cabelo é preto como um jaguar. Sobretudo a minha mãe tem uns olhos tão bonitos e brilhantes como dois diamantes."

Ter filhos pode ser muito assustador...

Ana Amorim Dias

O estranho mistério da clavícula torta

O estranho caso da clavícula torta

Há uns anos, não sei precisar quantos, apanhei um susto no banho. Passava eu o gel pelos ombros e, ao chegar à zona das clavículas, apercebi-me que as tinha completamente diferentes uma da outra. A esquerda estava direitinha e a direita toda amolgada, metida para dentro na parte central do osso. Habituei-me ao facto e passei a ignorá-lo quase na mesma medida em que o ignorava antes de nele ter reparado.
Mas ontem ao almoço, talvez a propósito de alguma conversa, lembrei-me da clavícula torta e percebi finalmente que a devo ter partido à nascença sem que ninguém se tenha apercebido. Comentei a minha constatação perante o olhar espantado da minha mãe, que insistiu em comprovar com as suas próprias mãos e olhos este defeito de fabrico.
Ao fim do dia, quando lhe fui dar o beijo de boa noite à cama, confessou-me ter ficado incomodada e preocupada por nunca ter dado por nada. É claro que só me arrancou gargalhadas.
Tenho as minhas conclusões formadas quanto ao estranho caso da clavícula torta. Ela é como aqueles pedacinhos da nossa alma que já se quebraram sem nos termos apercebido e que se soldaram de novo, de uma forma muito própria e deveras eficiente. Ela é um símbolo de como quebramos e recuperamos de forma quase automática. Mas para mim, cá bem no fundo, a minha sui generis clavícula direita, é mais uma manifestação dos meus super poderes que, um atrás do outro, se continuam a revelar!

Ana Amorim Dias