(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

27.9.11

O fim da culpa

     É certa e segura a desvantagem do ser humano enquanto mulher, mesmo na sociedade ocidental.  A nossa constituição física é menos forte mas, ainda assim, temos que suportar mais agruras no corpo; os valores morais são, para nós, muito mais exigentes do que o são para os homens; o nosso intelecto é mais bem estruturado e maduro, mas somos subvalorizadas intelectualmente;  a nossa capacidade de trabalho  e organização tendem a ser mais consistentes, mas continuamos a ser mais mal remuneradas…  e a lista poderia continuar…
    Mas de todas as desvantagens que temos contra nós, há uma pior que todas as outras: é aquilo a que chamo “o estigma da nora perfeita”.  E não pense, quem me lê, que é algo que apenas as sogras trazem. É o próprio  karma social de se ser mulher, que vai passando de geração em geração tanto por  culpa  de quem o transmite como de quem o aceita  receber.
   O estigma da nora perfeita é, no fundo, termos de corresponder exactamente àquilo que a sociedade espera de nós enquanto mulheres, esposas e mães. E desengane-se quem pensa que tal estigma desapareceu no momento em que a mulher invadiu o mercado de trabalho: apenas se acrescentou  mais um requisito a todos os que já existiam…
   É assim que a sociedade espera de nós, hoje em dia, que sejamos mulheres rectas, esposas fieis e dedicadas, esmeradas mães e trabalhadoras exemplares. Como foi que nos deixamos enganar desta maneira? Em vez de conquistarmos terreno, parece que apenas o perdemos por queremos cada vez mais. Poucas de nós se sentiriam realizadas sem cada uma das partes que nos integram: sem a família, a casa e a profissão; e por isso há sempre coisas que têm de ceder e nunca somos a nora perfeita!
   Se nos dedicamos demasiado à profissão corremos o risco de sobressair perante o nosso macho que, tendo que ser dominante, não o admite de bom grado; além de que, muitas horas no trabalho implicam o descurar da vida familiar e até, quem sabe, algum caso amorosamente pecaminoso.
   Se temos filhos e tiramos toda a licença de parto a que temos direito, estamos a descuidar o trabalho e a pôr em causa tudo aquilo por que lutámos, mas se, pelo contrário, optamos por voltar ao fim de uma semana ou duas (como eu com os meus dois filhos), é porque somos a pior das mães.
   Se damos toda a atenção ao marido, descuramos a casa; se temos excesso de zelo com a limpeza da casa, traumatizamos os meninos, que não podem fazer nada; mas se os deixamos fazer tudo, não os estamos a educar bem…  E se vamos sempre ao take away é porque não estamos para cozinhar, mas se cozinhamos sempre, não nos resta tempo para ter a casa em ordem, dar atenção ao marido, ajudar os filhos com os trabalhos de casa, nem levar o cão a passear.
   Se levamos trabalho para casa, prejudicamos a família e se levamos algum filho para o trabalho, olham-nos como se fossemos criminosas com o pior dos cadastros; se não trazemos espuma da barba nos dez sacos de compras que carregamos sozinhas a cada três dias, é porque não estamos atentas às necessidades do nosso pobre marido que nunca soube o que era comprar um único rolo de papel higiénico ou faltar ao trabalho uma tarde para levar um dos filhos ao médico…
   Mas  o mais maravilhoso dos cúmulos, a verdadeira cereja no cimo do bolo, é quando o adorado marido, ou a querida sogra, nos vêm perguntar porque estamos com tão má cara e com um ar tão abatido….
   É  quando toda a realidade nos bate em cheio no estômago, como um seco soco da vida, que percebemos que nenhuma culpa é nossa: nada de que nos acusem pode ser por nós tolerado! Porque damos sempre o melhor, superamo-nos diariamente, como super heroínas, donas de de poderes especiais em que o maior é, sem dúvida, esquermo-nos sempre de nós mesmas e do que queremos e precisamos.
   Por isso e independentemente de tudo o que nos acusem,  quando vamos ao take away não podemos permitir-nos sentir a culpa de não ter feito o jantar, porque vamos ter um pouco de tempo para um abraço mais prolongado ao nosso amor, vamos poder beber um copo de vinho com ele, olhá-lo nos olhos, contar o nosso dia e dizer-lhe o quanto o amamos.    E quando deixarmos tudo num caos não sintamos a culpa de sermos de más  donas de casa porque os nossos filhos jamais irão esquecer as guerras de almofadas e as corridas de skate no corredor.
   Quando não dermos o nosso melhor no trabalho, não carreguemos essa culpa, porque estamos a dar um pouco mais de tempo a nós próprias ou ao nosso romance; quando não formos tão zelosas, não nos consideremos más mães porque o tempo também é necessário para nós mesmas e porque só estando felizes podemos ser boas em tudo o resto.
  E se alguma vez fizer falta deixar tudo para trás para nos reencontramos a nós mesmas, que não haja culpas nessa fuga e nessa  busca. Nada há de mais legítimo. Pedir dias de licença no trabalho, na casa e na família e partir uns dias sem destino, recuperando a alegria, a força e o prazer de viver.
  É legítimo porque apesar de sermos  super heroínas, torres de incomensurável força, somos também seres frágeis em quem todos se apoiam. Seres que, perante todas as frentes de pressão, se têm de manter firmes e seguras de si e das suas decisões, sob pena de colocar em perigo o frágil equilíbrio de todos os que nos rodeiam.
  É por isso que devemos insurgir-nos contra o “estigma da nora perfeita”, e fazê-lo através do simples facto de não sentir culpa pelas nossas decisões: sejam  banais ou grandiosas; momentâneas ou permanentes; certas ou erradas. Não devemos sentir o peso da culpa a não ser daquela que nos prova que colocamos sempre tudo acima de nós próprias e nos impedimos de, pelo menos, tentar ser felizes.

Ana Dias

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