(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

10.3.14

Parabéns pai

Parabéns pai. É o terceiro aniversário do teu nascimento que celebro sem ti por cá. Talvez tenha sido por coincidência que, há dias, encontrei este velho papel em que a tua letra impecável corrigia os erros dos meus seis anos. Ou talvez não tenha sido só obra do acaso. Não importa, já não me questiono sobre essas questões. Como não questiono sobre os porquês de partidas abruptas nem de chegadas inesperadas. A vida é mesmo assim, uma sucessão de surpresas que devemos encarar sem erros.
Mostrei esta folha aos meus filhos. Para lhes demonstrar que também eu dava erros (que ainda corro o risco de os dar, precisamente por escrever todos os dias) e que tu me corrigias com uma exigência que desde há muito te agradeço.
O Tomás já está mais alto que tu e continua a ser o miúdo mais meigo que conheço. O João é uma pequena força da natureza, mas fácil de orientar para o bem. São muito sociáveis e têm a tua humanidade e humor, por isso é fácil a nossa admiração mútua e relacionamento cúmplice. A Quinta está cada vez mais linda e o Ricardo e eu estamos mais felizes que nunca. A mãe está bem, não te preocupes. Mas não somos nós que tratamos dela, é ela que continua a tratar de todos os filhos e netos com a mesma doçura e beleza que sempre te apaixonou.
É esta a tua prenda: o teu legado. Deixaste uma família coesa, que se ama, admira e apoia. Uma família para quem os erros apenas servem de inspiração aos acertos corrigidos com amor.
Quanto a mim, meu pai, apenas posso dizer-te que continuo a tentar ser alguém bom, alguém em crescimento que procura não errar muito. E continuo a escrever e a fazer as pessoas pensar e sorrir. Como tu me fazias a mim. Como tu continuas a fazer, para lá do tempo e para além do espaço.
Ah, e pai? Prossigo no infantário da minha infantilidade inocente e feliz. Mas não preciso que me venhas buscar. Estás sempre em mim.

Ana Amorim Dias

Como se alguém te observasse

Como se alguém te observasse

Gosto do barulho da raquete a bater na bola. E hoje reparei numa coisa curiosa: o som produzido por esse impacto revela-nos logo se jogámos ou não bem. Ao ouvir aquele "ploc", meio desfalecido e pouco convincente, percebemos de imediato que aquela jogada não nos vai trazer qualquer ponto. No fundo tudo depende da maneira como nos focamos no que estamos a fazer. Usar o espaço de tempo do ir e voltar da bola para mergulhar completamente na previsão da jogada alheia faz toda a diferença no resultado final. Usar toda a energia e apurar os sentidos ao máximo é fundamental.

- Eh lááá! Mas eles jogam mesmo!- comentou a Guida com o Paulo enquanto nos viam no court.
E então percebi: uma das coisas que mais nos motiva a fazermos algo bem é saber que estamos a ser observados. Deve ser por isso que se costuma dizer: "Faz sempre tudo como se alguém te observasse."

Ana Amorim Dias

Quente e frio 2

Quente e frio

- Is it cold?
- Not really. I usually start in January...
A estrangeira continuou a olhar-me, embasbacada, enquanto eu saía da água. Eram quatro da tarde do dia 7 de Março. E sim, a água do mar ainda está fria no hemisfério norte. Mas nada se compara ao calor que nos fica depois destes banhos bem frescos.

Uma noite destas, ao deitar-me, senti o Ricardo irrequieto.
- O que tens?
Começou a debitar algumas das suas preocupações e eu sorri ao perceber que nenhuma delas me perturbava. Abracei-o com o corpo todo, pele na pele, consciente do que lhe queria transmitir. E ele deu um daqueles suspiros profundos de bébé a terminar o seu choro ao sentir-se finalmente seguro no colo da mãe.
- As fémeas têm poderes sobrenaturais...- comentou antes de adormecer tranquilamente.

Numa visão muito histórica e generalista, os homens são mais chão e as mulheres são mais ar. Eles têm mais facilidade nas concretizações e nós na ligação aos territórios desconhecidos do etéreo. Daí a importância da parceria entre géneros. O homem aporta as coisas, o território e a segurança concreta; a mulher traz a paz e a ligação ao divino.
Sim, temos poderes sobrenaturais. Muitos. Mas não concebo o dia da Mulher sem honrar e homenagear o Homem. Porque se eles sem nós não chegam aos infinitos céus, também nós sem eles não estamos inteiras no chão. No fundo esta sintonia é como um mergulho no mar de inverno: sentir o frio acaba sempre por vir a realçar o calor.

Ana Amorim Dias

A vitrine de Marraquech

A vitrine de Marraquech

Quando vi esta vitrine, numa loja em Marraquech, senti um asco enorme. Ainda assim fotografei-a, considerando que talvez um dia a imagem me fosse útil. Não me enganei.

- Oh mãe, quem era aquele senhor da televisão?
O João gosta de conversas sérias nos pequenos-almoços à mesa, mas eu não entendi a pergunta.
- Qual senhor, filhote?
- Aquele, ontem à noite, com quem tu te "passaste"...
Eu sabia que não devia ter chamado nomes a alguém encaixotado no ecrã. Muito menos em frente aos miúdos.
- É uma das muitas pessoas que, servimos-se da sua posição de poder, tem roubado o nosso país, meu amor. E, como se não bastasse, ainda tem o descaramento de vir para a televisão "arrotar a postas de pescada".

Sim, ontem fui pouco civilizada ao insurgir-me, exaltada, contra o homónimo do meu filho mais novo, de um tal clã Soares. Não bastasse o pulha senil do seu pai ter acenado (desde o púlpito da sua "fundação", também ela gamada ao país) num hipócrita apoio aos manifestantes, ainda veio o fedelho dessa fétida oligarquia de compadrios, debitar bacoradas tão asquerosas quanto os dentes da vitrine de Marraquech.
Desconfio que a vergonha na cara não os assiste. Nem a eles nem aos colegas de outras "devoções" ideológicas. É que, por mais que nos identifiquemos com comunismos, socialismos ou sociais democracias, todas as ideologias políticas têm as suas vantagens. E as suas falácias, claro, sendo que a maior de todas elas é serem, a maior parte das vezes, "pregadas" por corruptos que apenas defendem o mandamento da entrada de riquezas nos seus bolsos.

O dito asqueroso veio proclamar, referindo-se aos agentes da autoridade, que tem um profundo respeito por "esta gente"! Eu não queria acreditar! "Esta gente"?? Podia ser mais perjurativo que isto? Podia ter, perante eles, ainda mais soberba? E estava eu engasgada na minha indignação quando o voltou a referir: "esta gente", sem se aperceber sequer com que altivez os estava a diminuir. Não bastasse já a precária situação em que se encontram nem o difícil papel tanto dos manifestantes como dos que mantinham a ordem.
É deplorável a situação em que se encontram? Sem dúvida! Como deplorável é a situação de todos e do próprio país. Mas esse "senhor" que se lembre que as culpas não morrem solteiras e que, se estamos como estamos, também à sua "nobre" família o podemos agradecer. Não venha é para a televisão passar-nos o atestado de burros!
E de repente a vitrine de Marraquech deixou de me parecer tão asquerosa. Vá-se lá entender porquê.

Ana Amorim Dias

Tão simples como beber água

Tão simples como beber água de uma nascente

Vejo-me amiúde na contingência de ajudar os outros. Nem tenho a impressão de me pôr a jeito, simplesmente acontece. A toda a hora.
Ou é a velhinha que me pede para lhe alcançar o pacote de guardanapos que está numa prateleira alta do supermercado, ou são miúdos que se afoitam no mar, ou até pessoas que querem informações de direção em Paris (de cinco em cinco minutos, é incrível!). Tenho casos de "consultadoria" laboral, existencial e amorosa. Não viro as costas a ninguém, mesmo quando não estou bem segura das respostas porque, confesso, tenho o maior prazer em fazê-lo e aprendo imenso para poder, depois, escrever.

Ontem, perante o desespero dela, surgiu-me uma imagem/exercício que lhe comecei a descrever ao mesmo ritmo que se me formava na mente: "Imagina que te podias ver de fora, de cima, desde o teto. Imagina que conseguias olhar para os problemas dessa pessoa, ali em baixo, que és tu, e logravas ver a 'big picture' e observar os seus comportamentos e desmistificar os seus problemas. Se todos nos observarmos assim conseguimos entender de imediato que a única pessoa com todas as soluções para a nossa vida somos nós mesmos!"
Desafio-vos a que experimentem. Quando os ventos gélidos do vosso interior vos mergulharem no desespero, olhem-se de cima e percebam o poder que têm sobre a pessoa perdida que está lá em baixo. Continuo a dizer que os outros até podem ajudar, mas nós é que somos o único eficaz salvador de nós próprios! E acreditem: é tão simples como beber água de uma nascente.

Ana Amorim Dias

LOL

LOL

Há muitos anos, ainda no tempo do falecido HI5, ao deparar-me com um "LOL", não tive qualquer pudor em perguntar o que queria aquilo dizer. Responderam-me que era a sigla do riso.
Muitos anos antes disso, "aplicações" eram algo que os meus pais faziam com o dinheiro que conseguiam poupar e wifi talvez me fizesse lembrar o nome de algum dos seres esquisitos da "Guerra das estrelas". Chatear não era estar no chat à conversa, consistindo unicamente na arte de conseguir aborrecer o próximo.
Sim, sou do tempo em que as video-chamadas eram ficção nos filmes do James Bond e que os trabalhos da escola se faziam em papel, com pesquisas nas bibliotecas. Podia continuar por muitos parágrafos mas nem vale a pena. Estamos muito melhor assim, conectados na grande rede, a conhecer quem nunca poderíamos conhecer e a ter hipóteses laborais para além dos nossos mais selvagens sonhos. Estamos melhor a saber o que se passa no mundo sem ter que confiar apenas na comunicação social. Estamos melhor podendo obter toda a informação que queremos com recurso a um clic no "tio" Google.
Mas as aplicações de capital continuam a fazer falta para nos garantir o futuro; a conexão humana real continua a ser imprescindível para não sermos só virtuais. Talvez seja por isso que nunca uso o "LOL" (laugh out loud), continuando a optar pelo "ah ah ah". Porque ser virtual não implica deixar de ser virtuoso. E ser virtuoso, para mim, implica ser fiel à realidade, até em pequenas coisas como uma simples gargalhada.

Ana Amorim Dias

O lugar

O lugar

O parque não estava completamente cheio. Avistei um lugar apetecivelmente central, prestes a vagar, e fui-me a ele. Tive que dar a volta porque era proibido seguir em frente. Coloquei-me na posição correta para estacionar, sem estorvar o condutor que estava a sair, e dei o pisca.
Depois deixei de ver!
E não, não foi uma quebra de tensão. Foi um espertinho palerma que veio em sentido proibido e, sem querer ver o meu pisca, me "comeu" o lugarito.

Até há alguns anos eu tinha a mania de corrigir os outros. Depois fui mãe e comecei a pensar que a minha responsabilidade de educar e civilizar existe apenas perante os dois seres que gerei, por mais ninguém.
Deixei de armar cenas, ripostar ou tentar chamar animais à razão. Não têm educação? Azar. O problema não é meu.

Continuei com o pisca ligado enquanto o tal casal saía do carro.
Abri o vidro.
- Olhe, desculpe: veio por sentido proibido, viu?
Ignoraram-me.
Se eu fosse uma incomodativa mosca a zumbir-lhes num almoço de verão talvez me tivessem enxotado. Mas naquela situação? Nada!

Fui à minha vida, irritada, depois de estacionar noutro sítio. Cabe-nos ou não a responsabilidade de civilizar as bestas com que nos cruzamos? Devemos explicar como se devem comportar em sociedade, mesmo tendo a certeza que conhecem as regras básicas e optam por ignorá-las?
A minha vontade foi a de ir atrás deles e passar-lhes uma rasteira, como fazem os putos reguilas. Mas estaria apenas a ser igual a eles. Contudo obriguei-me a rever a minha opção de inércia ao longo dos últimos anos. Teremos mesmo apenas responsabilidade em formar civicamente os nossos descendentes? Será que a opção de deixar que as manifestações de má educação proliferem não é, só por si, um desleixo conivente? E como se deve proceder para ser eficiente nesta demanda? Agir de igual forma ou repreender com irritação não me parece boa opção. Talvez o sarcasmo de um simpático: "Obrigada por me ter ficado com o lugar!" seja mais produtivo.
Não sei. Mas vou experimentar.

Ana Amorim Dias

Proteção

Proteção

Eles ficaram um pouco para trás, parados numa das bancas do mercado mensal de Cacela. Fui espreitar o que andavam os dois a tramar e nem precisei de perguntar.
- Mãe, mãe, olha o que o Eric comprou!
- O que foi, João?
Estavam os dois com um sorriso traquinas e cúmplice.
- Um sininho para pôr na mota dele!!
Pelos vistos o miúdo ficou tão espantado como eu ao perceber que aquele marmanjão iria pendurar um sininho na sua grande e impressionante mota.
- A sério que vais pendurar isso na mota?- perguntei para afastar a suspeita de que ele estava a gozar connosco.
- Sim, é para juntar aos outros.
- Quê? Tu andas com sininhos pendurados na mota?
- Sempre!
- Mas porquê? - percebi que estava a falar o mais a sério possível.
- Há uma lenda que diz que os maus espíritos, que se erguem do asfalto para puxar os motociclistas para as quedas, se afastam ao ouvir o angélico som dos sinos. Devem colocar-se na parte de baixo da mota, o mais próximo possível do chão...


Ao escrever-lhe a biografia fiz questão de o conhecer para além do óbvio, mas este episódio dos sinos fez-me duvidar que se possa conhecer inteiramente alguém. "Ele não acredita em espíritos malignos, porque é que me está a contar esta treta? Ou será que acredita?"
Às vezes não sabemos bem no que é que acreditamos. E às vezes não sabemos em que acreditar. Mas eu acredito que, independentemente daquilo em que acreditamos, há pequenos subterfúgios que, pelo sim pelo não, nos dão o conforto de acreditar que estamos protegidos. E é ao acreditar que o estamos protegidos que nos tornamos capazes de tudo.

Ana Amorim Dias

Expiação

Expiação

- Mãe, vou ao pássaro.
- Ok, Tom.
- Vais onde, Tomás? - o João acabara de aparecer e quis saber o que se passava.
Eu fiz sinal ao Tom para não dizer, caso contrário o pequenino já não se concentraria nos estudos.
- Vou... Vou dar uma volta de bicicleta.
- Hum, vocês estão-me a querer enganaaaarr...
- Enganado estás mesmo se pensas que te escapas aos trabalhos de casa, meu menino! Vá, andor!- ordenei.- O teu irmão já estudou, de manhã, por isso agora pode fazer o que lhe apetecer.
- Bem, então vou para a minha expiação!- exclamou o bandidão enquanto subia as escadas.
"Expiação?? Ele está a comparar o estudo a uma expiação? Náh, não pode ser! Onde terá ele aprendido isto? Na catequese?" Impressionada com a riqueza vocabular do catraio, quis confirmar as suspeitas:
- Joããão! Volta aqui!
- Diz, mãe.
- O que é isso de ires para a expiação?
- Então, lá de cima espio melhor o que o Tomás vai fazer!
"Ahhh. Estão é isso!"
Expliquei-lhe a diferença entre espionagem e expiação, antes de o mandar de novo atacar os TPC. E percebi que as duas coisas estão ligadas, no que ao estudo destes rufias diz respeito. Enfrento a expiação de conseguir que estudem e tenho que andar em constante espionagem para me certificar que o fazem!

Ana Amorim Dias

Onde se compra este fato?

Onde se compra este fato?

- Não queres vir também?
- Onde?
- A uma festa de carnaval. Vamos todas disfarçadas de gatas.
A gargalhada interior ainda soou mais alto do que a que soltei com a voz. "Que doidas. Eu? Mascarada com um fatinho de licra malhado, bandolete de orelhas e uns bigodes colados? Quanto teriam de me pagar??"
- Nah. Mas obrigada na mesma.

Ontem, durante a indispensável ronha matinal na minha cama, o Ricardo perguntou ao Tomás:
- Hoje vais mascarado de quê para a escola?
- Eu? Vou de Tomás Dias Rodrigues!
- És mesmo meu filho, pá!- retribui-lhe o elogio que me está sempre a mandar ao revés.
- E tu, João? - voltou o pai à carga.
- Vou de agente secreto: roupa normal e um bigode colado!
Pronto, estou safa do carnaval!! Yess!

Do que é que eu não me importaria de mascarar? Qual é a minha "personagem totémica" afinal? Só me lembro de me ter mascarado de sevilhana, cowboy, pirata e louca. Se bem que, para louca, acho que nem vale a pena grandes disfarces, basta a atitude certa. Bem, mas voltando ao que interessa: máscaras para quê? O Tomás é que tem razão, ao disfarçar-se de si mesmo. Há lá coisa melhor que acordarmos cada dia prontos a "disfarçar-nos" na pessoa que queremos ser? É que, bem vistas as coisas, à força de tanto vestirmos certas personagens, acabamos por nos tornar nelas.

Sobrou-me o caso bicudo da minha "personagem totémica": onde se compra o fato de uma super-heroína que quer salvar o mundo com palavras e amor?

Ana Amorim Dias

Falhar não é opção

Falhar não é opção

- Mãe, e se chumbares?
- Tomás! Isso não é opção!!
- Está bem, mãe, mas imagina que falhas...
- Volto a repetir-te: FALHAR NÃO É UMA OPÇÃO! Não para mim, pelo menos. E para vocês os dois também não pode ser!

Antes do teste, comentei com amigos que não prestava provas desde o milénio passado. "Sim, a última foi a prova de agregação para a Ordem, numa outra vida..."
Estranhei o nervosismo deles. Eu fico nervosa quando os meus filhotes não estão bem, tudo resto é irrelevante. Mas detesto falhar. Tanto que não é opção.

- Mãe, estou aí daqui a quinze minutos, dás-me almoço?
- Claro, mas estás onde?
- Saí agora da prova específica de mota.
- Ok, até já.
- Mãe??
- Diz.
- Não perguntas se passei?
- Não preciso!
As mães sabem. E a minha sabe que não aceito falhar.

Em bom abono da verdade, isto estes testes são demasiado simples para errar uma questão sequer mas, quando saí, (sem qualquer felicidade em particular porque falhar não é opção), fiquei a pensar que, como toda a gente, tenho sido submetida a muitas provas de outros tipos, daquelas em que não existe nenhuma entidade reguladora a colocar o carimbo de "aprovado". Fiquei a questionar-me se tenho passado a tudo sem falhar. Fiquei a perguntar-me se será bom esfregar constantemente na cara dos putos que a mãe deles nunca falha... Até porque eles adoram particularmente a história (pedem amiúde que a conte) da única vez em que, já na faculdade, deixei uma cadeira para Setembro.

Detesto falhar, mas a verdade é que se calhar às vezes falho. O que terei que explicar bem aos meus filhos é que temos que dar o máximo de nós mesmos para nos transformarmos em quem queremos realmente ser. E no meu caso, gostaria de ser a pessoa que nunca falha.

Ana Amorim Dias

Vencer com gargalhadas

Vencer com gargalhadas

Houve uma altura em que quase senti pena dele. Mas eu tinha que marcar pontos ou perderia.
- Ana, pára!!!
E eu continuei. Impedindo-o de parar...de rir.
- Ah bola marafadã! Atã foste cravar-te na réde??
Ele bem tentava acertar nas bolas, devolvendo-as de forma a que eu não as pudesse apanhar mas, com as gargalhadas, era-lhe cada vez mais difícil.
- Ricarde, olhã: vô usar a minha raquetada torpede e mandar-te a bola assassinã! Tás preparade??
Como é que o pobre podia estar preparado? Só se fosse para algum concurso de rebolar a rir.

A sério que quando comecei a dizer disparates, no jogo de ténis de ontem, nem foi com o plano vil de o vencer com gargalhadas mas, quanto mais via a minha vantagem, mais prossegui com a tática. E fiquei a perguntar-me quantas situações não seremos capazes de vencer se nos decidirmos a desarmar o "adversário" com ataques de gargalhadas. É que o método é tão absolutamente perfeito que os nossos oponentes, de tão revitalizados e felizes, nem se importam de perder porque ganham um momento para lá de fabuloso.

Tenho que começar a usar mais esta tática e foi por isso que ontem à noite o desafiei:
- Bem, o próximo jogo de ténis vai ser à alentejana, o que dizes?

Ana Amorim Dias

Sempre a eito e com curvas

Sempre a eito e com curvas

Já não me lembro bem da conversa. Nem sequer sei se foi na jantarada de sábado ou no almoço de domingo. Tanto quanto recordo, a Paulina estava a dar força a alguém (uma das suas especialidades), com um "É isso mesmo! É sempre a eito!". Imediatamente a seguir, trocámos um olhar divertido e corrigimos: "sempre a eito mas com curvas!"

Bem sei que uso demasiado a Estrada como alegoria e metáfora, como analogia à vida, e até, claro, como terapia. Ora o que as figuras de estilo têm de bom é que nos fazem viver, tanto na teoria como na prática, com muito mais arte!
Quando eu era mais miúda e me davam um bom piropo, costumava desculpar-me com o facto de os meus pais serem ambos formados em Belas Artes. Já não sou tão convencida a ponto de dar respostas dessas, mas continuo convencida da responsabilidade de ambos nas curvas que trago no corpo e no pensamento. A verdade é que não me imagino sem curvas. As do corpo fazem-me sentir segura na feminilidade e fertilidade, e as do pensamento transmitem-me a fértil sensação de constante criação. Quer sejamos pessoas/auto-estrada, pessoas/caminho rural, pessoas/rua de cidade ou pessoas/estrada interurbana, todos somos a estrada que percorremos e a forma como o fazemos. Devemos seguir sempre a eito, sem grandes dúvidas nem hesitações, respeitando os contornos da nossa estrada interior sem lhe temer os perigos.
O que continuo a achar é que, quanto mais curvas trazemos dentro, mais arte e prazer podemos tirar da condução em nós mesmos.

Ana Amorim Dias

És minha mãe no facebook?

És minha mãe no facebook??

Abri os olhos. Duas chamadas não atendidas. Liguei de volta.
- Olá mãe. Passa-se alguma coisa?- não é costume, ligar-me logo de manhã.
- Fiquei preocupada! Não escreveste a crónica... E depois não atendeste. Está tudo bem?
Expliquei que tive uma rara ocasião para ficar a dormir manhã fora e que a aproveitei com gosto.

Há uns meses estavamos as duas no café, cada uma agarrada ao seu facebook e lembrei-me daquela possibilidade de identificarmos os nossos familiares. E então perguntei-lhe: "Olha lá, tu já és minha mãe no facebook?"
Devo tê-lo feito com o volume da voz um pouco alto demais porque as pessoas à nossa volta ficaram a olhar com um ar esquisito.

Hoje, ao acordar, percebi que a Laura Dias não só é a mãe linda e real que tive a fortuna de receber da vida, como é também uma mãe virtual, atenta e preocupada.

Aqui tens a crónica, Mami! E agora venham cá dizer mal do facebook! Ele até as relações absolutamente profundas e inabaláveis consegue solidificar mais ainda!

Ana Amorim Dias

Proibido pensar

Proibido pensar

Vinha mesmo agora a guiar com um jeep da GNR a perseguir-me! Está bem, está bem, talvez não viessem em perseguição. Se calhar vinham apenas para o mesmo sítio que eu. Por via das dúvidas prestei ainda mais atenção ao caminho que faço sempre porque, embora seja moçoila atinada nestas andanças da estrada, não me apetecia nada começar a semana com alguma desagradável surpresa.
A certa altura passei por um vilarejo e reduzi para os 50 quilómetros/hora que a placa indicava como limite máximo permitido. Mas, após passar o casario, não vi nenhum sinal que indicasse o fim da proibição de andar a mais de 50. Ora a estrada era nacional e com árvores de um lado e de outro. O que fazer? Seguindo as regras e a circunstância de os ter atrás de mim, deveria ter continuado a 50? Ou poderia circular mais depressa, de acordo com uma sinalética erroneamente inexistente?
Acelerei com a consciência de que talvez me estivesse a colocar em desnecessários apuros. Mas duvido que exista apuro maior do que não pensar e não reagir de acordo com os direitos e deveres que nos assistem. Preparei a minha defesa para o caso de me interpelarem e passei para 80 à hora. E eles fizeram o mesmo.
Acabei a pequena viagem a pensar que a única proibição que devemos desrespeitar sempre é a proibição de pensar, e que não há motivos para nos conduzirmos de acordo com os erros alheios. Muito pelo contrário.

Ana Amorim Dias

Dois sabonetes para a alma

Dois sabonetes para a alma

Ele veio ter comigo a rir.
- O que foi? - Eu não tinha dito nada, nem estava a fazer nenhum disparate.
- Nada. Só achei piada a ver-te assim ao sol, de biquini, com a chaminé da lareira a deitar fumo atrás de ti.
Gosto de paradoxos. Deve ser por representarem os contrastes que arrancam o tom cinzento à existência, tornando-a mais multicolor.
Voltei a fechar os olhos e, ao sentir o sol contra a cara, lembrei-me do pequeno dístico que ontem li. Estava sobre o lavatório do restaurante onde jantei com amigas e rezava desta maneira: "Lave as mãos com água e a alma com vinho". A parte de lavar as mãos/corpo com água não me deixou grande espaço a divagações. Mas lavar a alma com vinho? Como se lava a alma? Que sujidade é que ela tem? E que tipo de vinho usar? Será que o tinto é para nódoas de maus sentimentos e o branco é para tristezas profundas? Nesse caso talvez o rosê possa ser para lavar a alma de injustiças e o verde para limpar remorsos.
Não importa. O que me mais me preocupou não foi o tipo de vinho que devemos fazer correr nos duches das almas. O que mais me ocupou as considerações foi aferir as condições de higiene da minha alma. "Tenho-lhe dado banho, lavado os dentes, cortado as unhas?"
Acredito que todas as almas se sujam um pouco no decorrer das suas vidas. Sujá-las faz parte integrante e indissociável do verbo viver. Mas para as lavar não é preciso vinho nem qualquer outra substância. Os únicos sabonetes capazes de limpar as almas são o PERDÃO e o AMOR, a nós e aos outros.

Saí do sol e vim para dentro, para o quentinho da lareira. Um sorriso triunfante apoderou-se do meu rosto. "O nosso eterno paradoxo será sempre o do bem versus mal. E estupidamente nem suspeitamos que as substâncias mais poderosas do universo inteiro moram dentro de nós... na forma de dois sabonetes para a alma..."

Ana Amorim Dias

O Jantar

O jantar

Acho que foi na terça à noite que eles me fizeram o comunicado.
- Mãe, na sexta feira fazemos nós o jantar!
- Sim, eu e o mano!
- Maravilha!- esfreguei as mãos de contente.- E o que precisam que eu compre?
- Bifes de vaca, mas que sejam tenrinhos!- explicou o João.- Eu sei uma receita!
"Onde a terá ele aprendido..."

Deviam ser umas seis da tarde quando cheguei à sala e os vi, muito arrumados, lado a lado, a cortar alhos na bancada da cozinha.
- Quantos alhos é que isto leva, mãe?
"Mau, então não sabiam a receita?"
- Sei lá, varia de pessoa para pessoa. Põe aí uns sete dentes.
- Dentes é isto ou isto?
Lá lhes expliquei a diferença. Regressei aos meus afazeres mas fiquei com uma dúvida:
- Tomáhás.
- Diz mãe.
- Que acompanhamento vão fazer para os bifes?
- Isso é preciso?
"Vai ser um rico jantar, vai!"
- Olhem, por que não fazem couscous?
Acataram a sugestão e, enquanto embirravam um com o outro quanto à distribuição de funções, a aparelhagem da cozinha ganhou inteligência artificial e começou a tocar o genérico do Indiana Jones. E eu fugi de fininho.
"Amanhem-se!"

- Mahãe!
- Digam.
- Isto é com azeite que se frita?
"Caneco, mas estes miúdos querem-me fazer o jantar ou o lanche?"
- Ainda é cedo para fazerem os bifes, isso é muito rápido. Já fazem, daqui a pouco.

Dez para as oito e eles sem darem à costa.
Chamei-os. Nada. Subi as escadas e lá estavam, no quarto do Tom, a tratar dos seus assuntos.
- Meninos, tenho fome, quero comer!!
Olharam para mim, muito espantados, e lá se lembraram que o jantar era com eles.
- Nah, agora já não me apetece...
O João foi o primeiro a desertar. A primeira baixa entre os meus soldados. A sorte é que o general-pai foi em socorro do mais velho e os bifes lá saíram (quase sem sabor) porque, a não ter sido assim, não haveria jantar.

Conselho a todas as mães em situação semelhante: esperem no sofá, mas façam como eu e levem um copo de bom vinho tinto para vos acompanhar a espera.

Ana Amorim Dias

Sobre o poder e a vida

Sobre o poder e a vida

- Onde é que estava mesmo o coelho, mãe?
- Ali mais à frente, na beira da estrada.
- E não o mataste com o carro?
- Oh João! Claro que não, então eu era lá capaz de matar o bichinho!
- Dizes tu que tens "poderes"!...
A voz dececionada que proferiu aquele sarcasmo ativou-me a coerente e sentida reação.
- Meu amor: o poder nunca está em tirar a vida. O verdadeiro e maior dos poderes é preservá-la!

Enquanto estiveres a ler esta crónica, há pessoas iguais a ti a defender nas ruas os seus direitos mais básicos. Neste minuto há corações destroçados pela injustiça de tantas vidas ceifadas sem qualquer pudor. Nesta hora há milhares de cidadãos anónimos a arriscar-se a morrer em nome de um futuro digno. E a informação não chega inteira da Ucrânia. Não chega precisa da Venezuela. E da Coreia do Norte e de outros tantos países, nem sequer chega. Milhares (milhões?) de seres humanos como tu e como eu, com filhos e pais, amigos e amores, caem às mãos de déspotas inexplicáveis. Pessoas como tu e eu, com um passado e um futuro, com projetos e sonhos, vivem o horror indizível da opressão levada ao extremo.
Pouco ou nada justifica que gente mate gente.
Até podemos tentar compreender alguns conflitos entre nações. Mas como entender poderes instituídos que, em nome "da ordem pública" e do "bem maior", chacinam a sua própria gente? Nem no mundo animal é normal tal coisa, por isso como havemos de começar sequer a tentar entendê-lo no mundo humano?
Como chegam os déspotas ao poder? Que sortilégios macabros executam para lá se conseguirem manter? Como é que sociedades inteiras de gentes boas, que apenas querem viver em paz, se deixam enredar nestes dantescos e recorrentes episódios de despotismo assassino? Que espécie de terror é este que nem a abnegada coragem de povos inteiros consegue vencer? Talvez nunca encontremos resposta para isto. Talvez, na história vindoura do planeta terra, nunca se venham a esgotar os casos de terror imposto a milhões por algumas dezenas...

- E se fosse um coelho gigante assassino, mãe? Um que te quisesse comer? Também não o matavas?
- Isso não existe, amor!
- Está bem, mas e se fosse um urso?
- Fica descansado meu bebé: quem quer que venha para te fazer mal, terá que me enfrentar primeiro a mim!

É por isso que devemos apoiar quem se opõe aos ditadores do costume. Pelo nosso futuro e o dos nossos descendentes.
Mas, mais importante que isso, é estarmos atentos para impedir o surgimento de novos déspotas.
O verdadeiro poder jamais tira vidas. Preserva-as a qualquer custo.

Ana Amorim Dias

A ponta de um corno

A ponta dum corno

Ele ligou-me com uma dúvida.
- Ana, lembras-te do que o apresentador disse sobre mim no início do programa?
- Qual deles, Eric?
- O Borges, no 5 para a meia noite.
- Sei lá o que é que ele disse, no meio de tantos disparates...
- É que eu continuo sem perceber.
Não ia deixar o rapaz com dúvidas, coitado, e fui ver: "Ele não fala a ponta dum corno de português, portanto a gente vai-se tentar desenrascar em castelhano..."
Não admira que o pobrezito não entendesse! Como é que se traduz "não falar a ponta dum corno" para espanhol, inglês ou francês?
- No hablar la punta de un cuerno es decir que no hablas nada de nada de português.
- Pero no es verdad, yo entiendo mucho...
Imaginei-lhe o beicinho do outro lado da linha.
- Deixa lá. Ele também disse que percorreste 500.000 quilómetros nessa volta ao mundo e na verdade foram só 36.000.

Ontem não fiz a ponta de um corno. E vinha pensar nisso, agora mesmo, no carro. Foi aliás por isso que me recordei deste episódio de impossível tradução literal. Usei o tradutor Google (não serve de muito, bem sei) para tentar traduzir a frase para várias outras línguas e conclui que a "ponta dum corno" é só nossa.
Não sei se é bom ou não, mas trata-se (acho que o posso afirmar) de um exclusivo lusitano.
Cheguei a duas conclusões: hoje vou trabalhar a dobrar para compensar a improdutividade de ontem e, decididamente, todos devíamos optar por não ligar a ponta dum corno aos disparates alheios.

Ana Amorim Dias

Os abraços

Os abraços

Ele aninhou-se em mim com o sorriso mais satisfeito do mundo. Como sempre, aliás. E eu... bem, eu prestei mais atenção à forma como o estava a abraçar, mais do que com o meu corpo inteiro, e expliquei-lhe o que estava a acontecer.
- Sentes, João?
- O quê, mãe?
- Estou a dar-te todos os super poderes, neste abraço.
- Uau...
Enchi bem os pulmões e expirei, expirei, expirei. Até não me sobrar mais ar e ter revitalizado também todos os meus poderes.
- Transferência terminada!
Ele riu-se.

Fiquei a abracá-lo mais um pouco. E lembrei-me de um pensamento que ontem à noite me nasceu. Dei comigo a fazer uma "pequena" lista de tudo o que tenho aprendido com as centenas de pessoas que, ao longo destes últimos anos de maior consciência, tenho conhecido. Da infinita lista de conhecimentos recebidos, passei à dos sentimentos que quase toda a gente em mim desperta. Amigos, conhecidos, desconhecidos que passam a amigos; pessoas prováveis, improváveis; gente real que acaba por ficar sempre presentes no mundo virtual e pessoas virtuais que, de tão fantásticas, se acabam por tornar reais...
"O que fiz para merecer tanto?", perguntei-me. Depressa chegou o sorriso: "Pois. Abracei-os! Limitei-me a aprender a abraçar, mesmo sem braços, toda a gente com quem me cruzo! Caramba, este é bem capaz de ser o maior dos meus super poderes!!"

- Mãe? Eles só servem para a escola?- perguntou o João mesmo agora, ao sair do carro.
- Os poderes, baby? - ri-me - Claro que não! Funcionam sempre!

Ana Amorim Dias

Mala de mulher

Mala de mulher

Ele entrou para o banco da frende do carro.
- Só quando tiveres um metro e noventa é que podes vir à frente, filhote!-
- Podes parar de me gozar um bocadinho, podes?-
Eu devia era ter posto a fasquia nos dois metros porque com um metro e noventa está ele quase.
- Mãe, desculpa lá mas hoje vou à frente!
Fico sempre exaltada quando não levo a mala e a pasta de CDs mesmo pertinho de mim, no banco do lado.
- Insolente...
- Mãe!!
- Está bem, está bem! Vem lá à frente...
E então expliquei-lhe a teoria da mala ao pé. Todas as mulheres precisam sempre da sua mala o mais perto possível de si. Não basta ela estar no nosso campo de visão, é imperativo que esteja ao alcance da mão porque lá dentro existe todo um mundo de objetos essenciais cuja absoluta necessidade de proximidade os homens jamais poderão entender.
A mala de uma mulher é a sua casa portátil, a sua nação, a nascente de todas as soluções. Tem coisas tão importantes como o rímel e um verniz; o comprimido para as dores de cabeça e lencinhos de papel. Tem canetas, uma pinça, um espelho e pastilhas. Já para não falar do telefone, dos auriculares e de um carregador de emergência. Tem os documentos todos, o bloco de notas e papeis extremamente importantes que são quase sempre para deitar fora. E um par de brincos extra, uma tesoura pequena e um ou dois batons. Mala de mulher que se preze é uma espécie de recipiente mágico que comporta muito, mas muito mais do que o seu espaço físico permite.
E depois ainda perguntam como é que temos esta capacidade perpétua de solucionar todos os problemas em qualquer lugar... A mala é a nossa varinha de condão, é a poção mágica sem a qual ficamos desprovidas de grande parte dos poderes.
- Mãe!
- Hã?
- Vocês são mesmo complicadas!

Não. Definitivamente os homens nunca vão entender todo o valor que se encerra na mala de uma mulher!

Ana Amorim Dias

Escolhidos

Escolhidos

- Sabes quando é que sou mais feliz?- perguntei sem esperar resposta.- ... quando escrevo.
Sim, eu ia mesmo explicar-lhe o que é, para mim, escrever.
- Imagina que te ligavam a uma máquina mágica. E, com essa ligação, podias ver tudo e sentir tudo e compreender tudo com a nitidez mais cristalina que possas imaginar.-
Do outro lado o silêncio. Continuei.
- Imagina outro plano da existência. Onde tudo faz sentido e não sentes mais nada a não ser uma paz e uma felicidade absolutas. Escrever é isto; não é comparável a nada! É por isso que não entendo aqueles escritores que têm "brancas" e sofrem muito durante o processo criativo. Dá ideia que as palavras lhes saem com uma dose grande de sofrimento e elevadas quantidades de "papel rasgado". Somos algo quando aquilo que revela o que somos nos sai sem esforço e com alegria. Sei que sou escritora porque escrevo em qualquer lugar, sobre o que quer que seja, com qualquer que seja o ruído exterior...porque não estou ali, estou em mim, na alegria total.
- Tu foste escolhida! - respondeu-me no fim.

Todos fomos.
Todos fomos escolhidos. Existirmos é a prova disso mesmo. Eu só tenho a sorte de o ter entendido um pouco mais depressa.

Ana Amorim Dias

Não há dois momentos iguais

Não há dois momentos iguais

"Fogo, estou tão cheia...", embalada pelo suave trepidar do carro e pela música calma, fechei os olhos e senti o sol na cara.
"Hum...que preguiça, sobre o que é que vou escrever hoje?". Não fazia mesmo ideia. Ponderei divagar sobre a maneira como as pessoas se reúnem para comer e beber e comer e beber e comer, comer, comer... mas não me pareceu suficientemente interessante.
- Tu tens razão. Estar em movimento é mesmo bom.- comentou o Ricardo, do nada.
- É, não é? Sobretudo quando conseguimos saborear cada minuto da nossa deslocação no espaço.- repliquei.
- E tu já reparaste que não há dois momentos iguais?-
Pimba! De um segundo para o outro o tema chegou, como chega sempre!
- Pois é!- respondi-lhe entusiasmada, mas já a voar para longe em pensamento.
"Realmente, e por mais que sejam parecidos, nunca há dois momentos rigorosamente iguais. Podemos olhar a mesma paisagem e vê-la igual, mas ao segundo momento já houve mudanças. A segunda garfada do almoço pode saber ao mesmo que a primeira mas já é outra lasca do bacalhau e outra batata que estamos a saborear. É curioso como podemos usar todos os momentos passados para nos prepararmos melhor para os futuros..."
E de repente uma nova visão da realidade apoderou-se de mim com uma explosão se alegria: "Se conseguirmos estar sempre conscientes de que cada momento é algo absolutamente novo e irrepetível, a vida torna-se numa eterna sucessão de instantes únicos, preciosos, em que nos podemos maravilhar sempre como se fosse de novo a primeira vez!!"

Sim, muito óbvia esta constatação. Mas infelizmente tão óbvia como a de estarmos, o tempo quase todo, num estado de inconsciência profunda.

Ana Amorim Dias







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On the Road again 2

"On the Road again"

Eu tapava o nariz e cantava com uma voz nasalada: "On the road again, I just can't wait to get on the road again...", esganiçava bem a pronúncia americana e conseguia afastar toda a gente de mim, vá-se lá saber porquê. "The life I love is making music with my friends, and I can't wait to get on the road again."
Eu não entendia, na infância, as razões por trás da alegria sentida ao cantar esta música do Willie Nelson, já que não gostava nem dele nem do estilo. Mas havia mesmo, nesta minha cantoria, um qualquer fator misterioso de alegria pura...

A maior parte das situações, até mesmo as mais insignificantes, encerram em si um sentido, uma mensagem. É pena que a maior parte das vezes não as entendamos de imediato, por falta de atenção ou de preparação para tal.
Mas depois há momentos em que, sem que façamos nada por isso, as epifanias se dão.

Esta manhã, ao começar uma nova viagem, entrei para o carro a cantar "on the Road again, I just can't wait to get on the Road again". E percebi de vez o mistério!
Sei há muitos anos que só estou bem em movimento. Não importa como, não importa para onde, não importa com quem. Desde que esteja a ir, estou feliz. Desde que esteja em deslocação, qualquer caminho é válido, qualquer estrada é a certa, mas agora já sei porquê.
"The life I love is writing stories for my friends, and I can't wait to get on the road again!!"

Ana Amorim Dias

De um a cem

De um a cem

- De um a cem amas-me quanto?
- Sei lá.
- 55? 87?
- Amo-te muito. Amo-te bem. É tudo o que importa.

O amor não é quantificável em números. Nunca foi e jamais será.
O amor é uma questão de intensidade do olhar.
O amor é não conseguir respirar ao ver-te depois da ausência.
O amor é o arrepio de uma recordação; é a sede com que te bebo as palavras e a fome com que te devoro o corpo.
O amor não é científico nem explicável; é um paradoxo brutal tão simples quanto complexo.
O amor não é um algarismo, é uma alegoria divina.
O amor não é matemática, equação nem proporção, é a ausência total de razões e da razão.
Porque o amor, meu amor, é a única coisa capaz de fazer de nós Deuses.

Ana Amorim Dias

Dois por dois

Dois por dois

- Tenho meia hora, queres ir lá?
- Ir onde?
- Ver a cama que queres.
Era quase hora de almoço e eu estava a meio de algo.
- Vou para o carro apitar.- provocou-me.
"Chego ao carro antes de ti!"
Dez minutos depois estavamos na loja. Sabia que não iria encontrar nenhuma cama que gostasse. Ela está desenhada no meu cérebro há já alguns dias. Mas o colchão era necessário.
- Tem colchões de dois por dois?- perguntei à senhora que nos estava a atender.
- Metros?
"Não, centímetros, minha burra!"
- Sim, claro.
- Ah, quem costuma levar essas medidas são os estrangeiros.- replicou.
O Ricardo olhou-me, divertido, à espera da minha reação. Controlei-me.
- Todos estes modelos podem ser feitos nessa medida.- continuou a senhora, levando-nos para uma parte da loja com colchões por todo o lado.
Comecei a deitar-me em todos.
- Não, nem pensar, demasiado mole!- e saltava para outro - Este talvez! Vem cá experimentar, Ricardo!-
Mas ele conhece-me demasiado bem e foi púdico o suficiente para não se aventurar...não faço ideia porquê.
"Devia ser como no cinema, a língua inglesa fica sempre bem...", comecei a cantarolar enquanto fazia o filme na minha cabeça, perante o olhar algo espantado da vendedora.
- Já escolheste?
- Sim, é este! Mas convém que experimentes...- mais um sorriso safado.

- Quatro metros quadrados não é cama a mais?- perguntou-me, já no carro, depois da compra estar feita.
- Os teus filhos estão cada vez maiores e vão sempre para lá, de manhã! Dois por dois é imperativo!
Lembrei-me dos tempos de namoro e da cama de solteiro que às vezes partilhavamos na casa das Olaias. Sorri feliz ao concluir que de facto não é necessária uma cama dois por dois para um casal ser dois por dois.
Desenhámos em conjunto a cama antes dele a ir encomendar ao carpinteiro. Dois por dois é assim: ambos os desenhos mentais a serem só um no papel...

Ana Amorim Dias

Voos

Voos

Olhei para as estrelas e respirei fundo. O silêncio frio da noite fez-me sentir livre. Vi as luzes de um avião, lá no alto, e imaginei para onde iria. "Engraçado, os aviões "apanham-se" com data e hora marcadas... as estrelas não."

Há cerca de dez anos, recebi em minha casa uns grandes amigos da Colômbia. Durante os dias em que interromperam a sua longa viagem pela Europa, reforçamos a sensação de família que na realidade não somos. No fim da sua estadia, levei-os ao aeroporto (na altura a trinta e cinco quilómetros da minha casa) ainda de madrugada. Tinha-me deitado muito tarde e não me podia demorar porque tinha um julgamento nessa manhã.
Quando foram fazer o check in, vi o Luís, sempre tão organizado e composto, a ficar muito branco. Tinham-se enganado no dia: o seu voo era vinte e quatro horas mais tarde.
Ficaram tão aflitos com o transtorno que passaram o resto do dia a desfazer-se em desculpas perante o meu perdão ensonado.

Todos temos os nossos "aviões" para apanhar. Sabemos as datas e as horas, contudo às vezes perdemo-los e outras vezes chegamos tanto tempo antes que ainda não existe tal voo.
Será que tudo na vida se prende com questões de timing? Será que quem tem um faro mais apurado para a pontualidade age sempre na hora certa? Ou o não chegar demasiado cedo nem demasiado tarde é só uma questão de sorte?
Pelo sim, pelo não, sempre que tenho voos marcados, confirmo e reconfirmo a data e a hora, dando aos imprevistos generosas margens de tempo.
Mas, e os voos até às estrelas?... Bem, esses simplesmente
acontecem sem que seja preciso comprá-los nem fazer marcação prévia.

Ana Amorim Dias


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Redesenhar o mundo

Redesenhar o mundo

- Sempre vens tomar café?
- Claro. Demoro vinte minutos a chegar, esperas por mim?
- Yes!
Cheguei vinte e um minutos depois. Ele já andava há um mês para se ir embora e eu obrigara-o a prometer que pararia em Altura para se despedir de mim.
Na sua maneira caricata de falar inglês, com aquela pronúncia alemã, explicou-me as rotas e paragens que planeia para os próximos tempos.
- Então vai ser demorada, a tua viagem de regresso a casa!
- Depende do que tu estás a entender por minha casa.- sorriu misterioso. - Ela não é longe daqui, a minha casa é Faro...

Ontem tive uma birra tão grande que durou até hoje. Entre os inúmeros planos de ano novo, eu tinha decidido, entre muitas outras coisas, escrever para a Vogue e publicar (pelo menos) o "Olho Ubíquo" com uma grande editora. Aparentemente a minha escrita não tem o registo jornalístico e especializado em moda que pretendem nessa revista. Compreendo. Na Elle não têm espaço. Entendido. Respostas das editoras, nem vê-las. Muito bem. Mas fiz birra. Daquelas grandes, típicas dos insuportáveis miúdos que costumam ter tudo o que querem.
"Vou tirar umas férias da escrita e desta luta por tentar fazer chegar ao grande público o meu trabalho!", "Preciso de me libertar um pouco disto.", "Serei escritodependente? Isto é um vício? Uma necessidade? O quê?", "Amanhã não escrevo, pronto!"

Olhei de novo para a mota do Ralf, à chuva, carregada com os seus pertences. Olhei enternecida para as suas barbas de velho lobo da estrada e lembrei-me de algo que ontem escrevi e que muitas pessoas insistiram em citar várias vezes: "O mundo só faz sentido se houver um cantinho de afetos que é nosso."
Voltei dos meus pensamentos com algo que ele me disse.
- Tirei-te fotografias em que a tua expressão é a de quem está a pensar em redesenhar o mundo. - Estavamos a falar de fotografia e na forma como nelas nos revelamos.
- Desculpa? Repete lá.
- Disse que em algumas fotografias tens a cara de quem planeia redesenhar o mundo.
Sim, eu ouvira bem.

Vi-o partir à chuva, naquela Triumph toca carregada, para se fazer aos caminhos do seu mundo pessoal. E vim-me embora a pensar que não escrevo por vício nem por necessidade. Não escrevo por nenhuma obstinada teimosia nem para provar nada a ninguém. Escrevo como quem respira e para conversar comigo. Como poderia, por isso, embirrar em não escrever? Que parvoíce tão grande essa de suster a respiração ao pensamento, como se fosse possível caminhar de costas voltadas a nós mesmos.
Sentei-me depressa perante o ecrã em branco. Que se danem as portas que insistem em permanecer fechadas. Tenho-vos aqui: a cada uma das vossas preciosas presenças! E, enquanto me tiver também a mim, continuarei a redesenhar o mundo com as palavras que respiro.

Ana Amorim Dias

O rótulo do amor

O rótulo do amor

A mensagem dela chegou-me esta manhã. Como todos os dias me chegam tantas, com os mais variados temas, sugestões e desabafos.
Queixava-se, esta amiga que tanto adoro, dos rótulos que se nos colam como uma segunda pele e que temos, por vezes, dificuldade em desfazer e desmistificar perante os demais. Referiu que eu sou a única pessoa com quem se dá que não tem essa irritante tendência, e que foi por isso que, no meio da sua confusão, lhe apeteceu desabafar comigo.
Fiquei a pensar na minha relação com os tais rótulos e, sem demoras, respondi-lhe:
"O único problema dos rótulos é deixarmos que existam. Eu só aceito que se me colem dois: a escritora excessiva. O resto são detalhes sem importância.
Quero amar gente. Pessoas. Com amor humano. Sem me lembrar se são homens, mulheres, crianças ou anciãos/ãs; se são solteiros/as, divorciados/as, viúvos/as, predadores/as ou presas. Isso são meros detalhes e a mim importa-me amar gente. Com amor humano!
Ah e sabes? Rótulos à parte: amo-te!"

Quais são afinal os mais espartilhadores rótulos? Aqueles que nos incomoda que nos colem ou aqueles que decidimos vestir? Olhem-nos os outros como decidirem olhar-nos, desde que nos mantenhamos fieis ao que de facto somos (humanos capazes de amar com amor humano), viveremos com o único rótulo que importa: o da capacidade de amar.
E sim, o resto são pormenores sem qualquer importância!

Ana Amorim Dias


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