(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

27.10.13

Prazer e arte

Prazer e arte

Mandei-o ler o texto todo e responder às questões. Nada melhor do que a prática para nos preparar para os testes.
- Mas mãe... São sete páginas!- respondeu.
- Só podes estar a gozar comigo, Tomás! Isso não é nada! Vá, ataca!-
Passados alguns minutos, e vendo-o a patinar em seco, decidi dar uma ajuda.
- Vá lá... Aproveita que eu vou ler isto de uma forma interessante e divertida. Mas presta toda a atenção para depois responderes às perguntas de interpretação!-
Animou-se um pouco e eu comecei.
Um parágrafo. Dois. Três. Vi logo quem era o responsável pelos bocejos dos dois: Alexandre Herculano em "Lendas e narrativas". Optei por disfarçar o caso e continuar a tentar tornar a leitura interessante, mas regressei à minha adolescência e à entediante tortura que foi para mim, naqueles anos, ler "Viagens na minha terra" do Almeida Garrett. É que dos cantos de "Os Lusíadas" até gostei, assim como do "Amor de Perdição" ou de "Os Maias". Mas a obra "Viagens na minha terra" traumatizou-me ao ponto de quase colocar em causa a minha paixão pela leitura.

A sério: não deviam fazer isto aos miúdos! Quer dizer, revelar-lhes, num afloramento ligeiro, os grandes mestres da literatura pura e dura, é uma coisa; submetê-los a intensas terapias de aversão à leitura, é outra. Ainda mais quando temos contemporâneos de tão boa qualidade literária e capazes de despertar muito mais emoção e interesse!

Jamais poderia criticar o valor literário, intelectual e artístico dos grandes mestres, mas nada me impede de manifestar as minhas impressões enquanto consumidora dos mesmos... Sou da opinião que os verdadeiros criadores devem ser como os mais perfeitos amantes: tão atentos ao seu prazer como empenhados no prazer alheio. A erudição, a perfeição e a genialidade têm um elevado valor. Mas a arte, desculpem-me o atrevimento, é mais que isso; é conseguir tocar o outro dando-lhe o mais intenso prazer...em vez de o fazer bocejar!

Ana Amorim Dias

Ironias

Ironias

Procurei por todos os sítios possíveis mas, como é óbvio, não encontrei nenhum. É o que dá quando temos aversão a algo. Mas chovia a cântaros e, farta de levar com chuva no lombo a semana inteira, decidi render-me momentaneamente ao óbvio.
Conduzi debaixo de um dilúvio até Castro Marim e, como tinha oito minutos até ao toque de saída do Tomás, parei à porta da loja e comprei um guarda-chuva. Cinco minutos depois a natureza mostrou-me a língua: o céu limpou e um sol radioso iluminou uma atmosfera límpida e vibrante.

Às vezes dou por mim a rir das ironias da vida. Por exemplo: como é que uma pessoa que tanto ama viajar, detesta tão intensamente fazer malas? Ou porque é que, tanto amando as pessoas em geral, tenho uma necessidade tão gritante de, constantemente, estar a sós?
Serão as ironias da vida, lições que temos de decifrar? Servirão realmente elas para nos ensinar alguma coisa, ou existirão simplesmente para zombar das nossas vontades?
Quase aposto que as ironias, como tudo o resto, existem para nos fazer aprender algo mais. O que ainda continuo a tentar decifrar é o que é que cada uma em si encerra para me fazer evoluir.
Entretanto, enquanto vou pensando no caso, terei que ir fazer a mala!
...Ou então fica para depois: é que não me apetece mesmo nada e ainda tenho tempo!

Ana Amorim Dias

Janela e espelho

Janela e espelho

A certa altura quase deixei de a ouvir. Quer dizer, estava a escutá-la com a consciência e o cérebro, mas a minha alma, embalada pelo Billy Paul a cantar "Me and ms. Jones", abraçava aquela partilha com uma tal emoção que me confirmou mais um dos meus amores eternos.
Não saíamos juntas e sozinhas há muitos meses, mas recuperámos totalmente o tempo perdido com as mesmas infindáveis horas de ininterrupta conversa e sentidas gargalhadas que sempre nos recordam as razões desta paixão.

- E isso foi a melhor coisa que te aconteceu na vida...- disse ela quando a deixei em casa.
Começar a escrever foi tudo isso e mais, realmente.
- A "melhor coisa que já me aconteceu na vida" foram tantas coisas, em tantos momentos diferentes... E uma delas foste tu!- respondi-lhe com toda a verdade.

Voltei para casa a ouvir a "Canção de mim mesmo" dos Black Mamba. "...sou janela e espelho por onde te vês...sou o sol que depois da chuva, brilha outra vez..."
A amizade é isto, pensei, completamente feliz.

Ana Amorim Dias

Fecundar emoções

Fecundar as emoções

- Mãe, põe mais alto...-
Fiquei toda contente. Normalmente sou eu a querer a música aos gritos no carro e são eles a reclamar.
"Mas espera, Ana... O João está a gostar assim tanto da SINFONI DEO dos Era?!..."

Isto aconteceu depois de o ir buscar à porta da escola enquanto caía uma chuvita convicta. Durante os sete minutos que durou a espera, tive vários simpáticos convites para partilhar o abrigo de sombrinhas alheias e tive até direito a uma cara de espanto/incompreensão com uma pitada de piedade (não foi Luísa? :) ).
Acontece que gosto de andar à chuva. E até de estar parada sob ela. Acho uma delícia entregar-me plenamente aos elementos, desde que com alguma segurança e conforto, claro. Até entendo que algumas pessoas temam a chuva como quem teme uma rega de ácido sulfúrico misturada com essência de doninha e veneno de cascavel mas, se a temperatura está amena e nos podemos secar em breve, porque não havemos de nos deixar levar pelo momento?
"Quem anda à chuva, molha-se!" diz a popular sabedoria, esquecendo que a chuva é só água. Está bem, molha, e depois? É tão bom estar molhado (podem interpretar como quiserem que a ideia também é essa).
Regressem lá da gargalhada que isto ainda vai a meio. "Quem anda à chuva, molha-se" faz-me sempre lembrar uma receita de anti-vida: "Não arrisques, não te mexas, olha que vai dar sarilho!", e depois?? Não estamos aqui para experimentar, sentir, errar e aprender com cada molha? Existirá algo mais fecundo que estas metafóricas chuvadas que nos fazem brotar as sementinhas da alma?

- Mãe, põe outra vez a musica de ontem...- Pediu o João ainda agora, enquanto o levava para a escola.
Fiz-lhe a vontade e recordei a sensação que tive ao ouvi-la, há uns anos, depois de uma semana em que poderia ter morrido de três maneiras diferentes. Depois de experimentar um abalo sísmico, uma explosão na cozinha e a queda do teto de um centro comercial mesmo por cima de mim, ouvi esta música e pensei: "Caneco, vou viver tão intensamente esta vida!!"
- Porque é que gostas tanto desta música, filhote?-
- Hum... Não te sei explicar. E tu, mãe?-
- Porque é emocionante... E tu sabes que eu adoro emoções!-
- Sabes? Acho que é por isso que eu também gosto.-

Ana Amorim Dias

A tristeza tem razões que a própria razão desconhece

A tristeza tem razões que a própria razão desconhece

Nem dei por ela a chegar. Veio, sorrateira, e instalou-se descaradamente em mim como se eu fosse a sua casa.
- O que é que tu tens hoje?-
- Sono.- Como podia confessar-lhe uma tristeza que não saberia, depois, como justificar?

Dei voltas e caminhadas pelas ruelas da razão. Procurei por todos os becos, espreitei portas e janelas que nem tenho por hábito abrir...e nada! Não encontrei absolutamente nada que pudesse justificar uma tristeza tão absoluta, invasiva e intensa. Recordei fases passadas em que me empenhava em estar triste; lembrei-me da emocionante intensidade com que já senti a tristeza e a forma como ela me conduziu à arte que me dá o pleno sentido à vida. Encerrará a tristeza, em si mesma, uma das poderosas forças que nos faz avançar?

A certa altura desisti de pensá-la e de a tentar racionalizar. Os sentimentos nem sempre precisam de um atestado justificativo. Basta que os aceitemos em toda a sua imensa plenitude, fazendo dessa intensidade o nosso maior combustível, para que a força nos chegue. E, de repente, a razão conseguiu mostrar-me que até os mais sofridos sentimentos, desde que bem encaminhados, podem fazer de nós invencíveis sobreviventes.
E foi assim, completamente vencida pelo ensinamento que trouxe, que a tristeza me deixou, entregue a melhores sensações.

Ana Amorim Dias



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Alegoria da urgência

Alegoria da urgência

A encomenda chegou finalmente. Os livros que encomendei com urgência (duplamente paga) há vinte e dois dias (sim: vinte e dois) foi hoje por mim levantada (como a Quinta do Monte não tem número de porta, todos os árduos esforços para a encontrar foram inglórios) no posto de correios mais próximo.
Poderia maldizer a wook e os serviços expresso dos ctt, mas prefiro, sem qualquer ponta de ironia, agradecer-lhes. Passei por fases de incredulidade, indignação e ação (averiguar o estafeta em causa revelou-se impossível: parece que os ctt expresso gostam de encobrir a incompetência dos seus) até chegar à iluminação. Gosto de tentar reagir às contrariedades extraindo-lhes algo de bom... E esta contrariedade trouxe-me a alegoria da urgência.

Podemos lutar, correr, ter a maior das pressas e agir em conformidade: o facto é que as coisas só nos chegam quando têm que chegar. De pouco serve madrugar se o sol só nasce à sua hora. De nada serve ter urgência e de, muitas diferentes maneiras, tentar pagar o que ela vale pois tudo tem o seu tempo, por mais que nos pareça excessivo.
Quando queremos algo há que lutar e trabalhar por isso. Um dia a "encomenda" acaba por nos chegar...mesmo que tenhamos que calar a nossa urgência e esperar muito mais tempo do que seria aceitável.

Ana Amorim Dias

Lutando com monstros

Lutando com monstros

- Depressa, mãe!-
- Hã?- estava a ouvir música com fones e não o escutei à primeira.
- Passa-me aí o comando! Tenho que mudar depressa, mãe!-
Assim que levantei os olhos entendi-lhe o pânico: era a casa dos segredos.

- Tu já viste isto?- perguntou-me uma amiga, à espera de opinião sobre como lidar com uma pessoa complicada que lhe acabara de mandar uma mensagem feia.
- Ignora, querida. Em absoluto. Caso contrário só estás a fazer mal a ti mesma e a alimentar a insanidade alheia. Não respondas!-

Lutamos constantemente com todo o tipo de monstros e, de facto, durante cada batalha, temos que estar bem vigilantes por forma a não nos tornarmos, nós também, um pouco monstruosos.
É tão fácil deixarmos que a raiva, a frustração, a inveja, o desalento e mil outras monstruosas características nos invadam e comecem a dominar desde dentro que, se não nos acautelarmos, depressa fazem de nós seus reféns.

O ideal é conseguir evitar contactar com monstros, tal como o Tomás sabiamente ontem fez ao mudar de canal. Mas quando os monstros se colocam mesmo à nossa frente, fazendo com que a luta seja inevitável, mais vale que usemos a única "arma" eficaz: uma monstruosa inocência!

Ana Amorim Dias