(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

16.10.12

Uma dança ao luar



 Ela acabou de colocar a loiça na máquina de lavar. Olhou para o balde do lixo com preguiça mas pegou nele e saiu para a rua. Lá fora sentiu o calor da noite e o luar que a banhava. Caminhou  os trinta passos que a separavam do contentor verde, embalada pela sonoridade ritmada da música que estava a ouvir. Caminhou os trinta passos a deixar-se envolver pela tranquilidade e segurança daquele paradisíaco vale tão protegido do mundo. Colocou o saco no contentor e começou a voltar para casa.
   E então a sua sombra tomou-a nos braços e roubou-lhe uma dança. “Hoy voy a verte de nuevo, voy a  alegrar tu tristeza, vamos hacer una fiesta… “ cantava a Gloria Stefan.  E ela rendeu-se. Dançou com a sua sombra sob a luz cintilante do luar. E na sombra viu a silhueta do Cristo redentor, viu o pensador de Rodin e o Poseidon com o seu ceptro. Dançou com todos eles ao luar, num êxtase inesperado que a fez voltar a si.
   Volveu a casa no fim da música. Colocou um novo saco no balde do lixo e suspirou de alegria. O dia tinha valido a pena.
Ana Amorim Dias

(Des)governos

Qualquer dona de casa, por poucos estudos que tenha, é melhor economista  do que os nossos governantes têm sido. Qualquer pessoa percebe que quando as receitas não chegam para cobrir as despesas há que reduzir os gastos.
   Tenho trinta e oito anos e chego à conclusão que o País, durante toda a minha vida,  foi (des)governado por cabeças ocas e gananciosas que só olharam para o crescimento do volume dos seus próprios bolsos, sem olhar às consequências que inevitavelmente trariam a dez milhões de pessoas que se estão a tornar indigentes.
   O (des)governo destas décadas é semelhante ao de  uma dona de casa que, com o seu modesto salário, se permitiu comprar vestidos Gucci, sapatos Manolo Blahnik, malas Louis Vuitton e comer em restaurantes gourmet todos os dias. É semelhante a uma dona de casa que, com o seu modesto salário, adjudicou obras milionárias na sua casa de duas assoalhadas, fazendo a entrega de  entradas chorudas a que perdeu o direito por não ter como levar as obras até ao fim.
  Sempre me senti segura neste país que é o nosso. A par com o clima ameno, com a beleza deste retângulo à beira mar plantado e com a suavidade das gentes, sempre amei Portugal pela sua capacidade de me fazer sentir segura e sem medo. Nunca experimentei  o pavor de não poder falar o que penso nem de ouvir balas a zunir pelo ar quando saio à rua.   E de que serve isso agora?  De que serve este amor e valorização quando parte da minha família está na iminência de ter que emigrar?  De que serve o bom clima e a nossa linda História, quando todas as pessoas  se vêem  roubadas  por um Estado que supostamente deveria zelar pelos seus?
   Como dona de casa que também sou, já vivi ocasiões em que tudo o que era supérfluo teve que ser banido. Já vivi em grandes casas e em apartamentos mínusculos. Mas nunca roubei ninguém. Nunca, para manter o meu bem estar, lezei quem quer que fosse, muito menos o poderia fazer  com quem tenho a obrigação moral de cuidar.  
   Ao longo das últimas décadas os nossos governantes têm sido pais tiranos e injustos; viciosos e viciados. Têm sido como aqueles pais bêbados, drogados e sem honra que roubam as poupanças dos filhos e lhes tiram o pão da boca!
  O problema é conjuntural e estrutural. Não se soluciona nem rápida nem facilmente, se é que ainda tem solução.   Não digo que  os “filhos” da Nação não estejam dispostos a sacrifícios, mas é imperativo que os “filhos da mãe” que nos (des)governam, compreendam que não é só a apertar a rosca que isto lá vai. É preciso que deixem os empresários ( ignorantes ou não…) trabalhar.  É preciso que entendam que a “venda”  do turismo nacional no estrangeiro tem que ser apadrinhada. É preciso que  responsabilizem criminal e civilmente quem gastou milhões em elefantes azuis às pintinhas cor de rosa. É preciso que  devolvam alguma dignidade às pessoas e lhes recuperem  a esperança e a capacidade de  ganhar algum dinheiro pois sem ele a economia pára de vez  e aí é que Espanha ficará com vista para o mar a toda a volta. É preciso que os “filhos da mãe” que nos (des)governam   se humanizem um pouco mais e compreendam os dramas que se intensificam em cada casa, porque a economia, meus senhores,  não serve para escravizar o Homem e sim para o organizar!  
Ana Amorim Dias

O bichinho



    Todos temos um bichinho dentro de nós, seja ele qual for.  Calculo que quem costuma ler o que escrevo esteja já a prever que vou dizer que o meu bichinho é escrever. Pois desenganem-se! Esta crónica ainda vai dar algumas voltas até eu conseguir produzir uma conclusão, muito embora, confesso, tenha já uma ideia bem clara de onde é que isto vai parar.
   Escrevi a última crónica há três manhãs atrás, antes de me “enclausurar”, para uma sequência de três festas, na  Quinta do Monte, de onde apenas saí para comprar ovos e dar um tropeção no mar.
   Ora acontece que o bichinho que vêem na imagem que acompanha estas palavras,  se cruzou várias vezes no meu caminho ao longo dos últimos dias. Volta e meia eu virava-me e lá estava ele a meter-se comigo.
- Olá! Sou giro, não sou? – Perguntava-me o animal que eu não soube catalogar.
- Estás a falar comigo? –
- Sim. Tiras-me uma fotografia?... Pode vir a servir-te para alguma crónica…  -  Instigou-me.
“ Olha-me este!” – pensei – “ Mais um a fazer-se à crónica!”
   Bem, o certo é que lhe tirei a foto e aceitei o desafio. Mas foi ao não conseguir definir se o bicho é um rato, um coelhinho ou qualquer outro animal, que percebi que iria pelo caminho do “bichinho”: o bichinho que todos temos cá dentro.
   Passei a sexta, o sábado e o domingo com pessoas maravilhosas. Tanto as que me contrataram as festas como as que às suas festas vieram. Mas de todas, as mais maravilhosas  são as que  repetidamente chamo  para me ajudarem a tornar perfeitos os dias alheios que se querem especiais!  Todos juntos formamos um grupo tão eclético quanto louco e cómico. Cada um com as suas manias, conversas, ritmos e humores. Cada um com os seus sonhos, desejos, ambições e problemas. Mas todos com uma simpatia sem mácula e com uma amor à camisola “Quinta do Monte” que não tenho como agradecer.  Tenho a sorte de trabalhar com amigos; com pessoas sensacionais que,  por mais que às vezes peguem fogo às toalhas, se esqueçam dos camarões ou partam pratos, se juntam estóicamente nos momentos dos pequenos stresses para solucionar tudo com muito empenho e gargalhadas.
   E é ao fazer este balanço que acabo por perceber o significado de todos os  “bichinhos” que moram dentro de mim.  E fico a saber que, de todos eles,  o mais  ativo e constante, é o bichinho que me impulsiona na direção dos outros.   O meu mais valioso bichinho é o que me faz  conseguir estabelecer uma ligação especial com quem faz parte da minha vida.  Porque é nas mais significativas ligações que conseguimos estabelecer com os outros que os grandes valores da vida nos são revelados.
Ana Amorim Dias