(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

17.4.13

Gemidos

Gemidos

Quando penso escrever sobre algo está tudo estragado. Já sei que nem vale a pena tentar reprimir-me. Tenho que escrever. E o que escrevo tenho que publicar.
- Tens uma escrita corajosa, Ana. Sobretudo para mulher.- dizia-me no outro dia um amigo.
Corajosa ou inconveniente? Continuo a acreditar no que digo e isso é enorme. Mesmo que inconveniente para alguns, talvez outros queiram ler.
Chega de introduções, fica só o apelo aos púdicos para que se abstenham de ler.

Uma vida sem gemidos não pode ser sincera. Sensual não é, de certo. E a sensualidade faz falta. O deslizar lânguido dos corpos, mesmo que sós, acresce pontos à estética emocional de todas as vidas. Faz falta assumir os corpos nus. Faz falta envergá-los à luz, na assunção plena do nosso paradoxo de humano e animal. Faz falta sentir, assumir e admitir o prazer. E este só é inteiro quando nos sai com sons suaves, expressivos, guturais. Sons que prolongam, exponenciam e expressam todo o nosso prazer. É que a vida já é tão gritante no que toca a coisas más que se a deixamos muda no que ao prazer diz respeito, perdemos metade da voz. Há que gemer, sim, para não calar o prazer. E porque a sensualidade faz falta.

Ana Amorim Dias

Resistente

Robustez

Tenho uns amigos que se continuam a rir com o episódio, depois de tantos anos. Eu estava atrás do balcão do Piratas e, com duas canecas em cada mão, virei-me de uma maneira estranha. Não sei com fiz aquilo mas devo ter tropeçado e caí, com muito estrondo, como uma sequoia gigante.
À força de tanto recordarem a queda da grande sequoia, lembraram-me do jogo infantil: "se fosses um animal, que animal eras?" , "Se fosses uma máquina, que máquina eras?" e por aí fora.
Mal vi esta fotografia foi quase como ver-me ao espelho! Uma viagem sozinha naquele volante? Era até ao cabo do Mundo! Exatamente como faço comigo: sigo-me até ao fim, sem sequer olhar para trás.
Olho de novo. Admiro a robustez da máquina, quase assustadora, e percebo que sim: mesmo quando a vida me quis fazer sentir como um triciclo de plástico comprado nos chineses, eu no fundo sabia que era um peso pesado e que a estrada estava mesmo ali ao meu lado, à espera de que eu a percorresse com toda a minha potência.
Resta um pequeno "senão", que é o de gastar muito. Mas não é preocupante. Sei que por todo o lado há estacões de combustível com aquilo que me move.

Ana Amorim Dias

Sem saber

Sem saber

Há uns dias comecei a falar com uma senhora que não conheço de lado nenhum, como tantas vezes acontece. Na fila do supermercado, por ficar forçosamente quieta, tenho que me entreter com alguma coisa. Falei-lhe com o à vontade com que falo a toda a todas as pessoas, conhecidas ou não, mas estranhei a sua euforia por eu lhe estar a dar atenção.

A minha irmã tinha na carteira um postalito de um santo, com uma pequena oração. Com a curiosidade dos meus oito ou nove anos, perguntei-lhe o que era aquilo e ela contou-me a história.
- Eu estava na minha hora de almoço e uma velhinha, daquelas que moram na rua, pediu-me uma moeda porque estava com fome. Pedi-lhe para esperar e fui buscar qualquer coisa para comermos.-
- Para comerem?- perguntei.
- Sim, querida. Sentei-me com ela e almoçamos as duas, sentadas num degrauzinho da rua. Foi tão bom. Quando nos despedimos ela ofereceu-me esta oração.

Sei hoje que aquele almoço deve ter sido muito especial para ambas. O que não sei é se a minha irmã alguma vez sonhou no que este almoço fez por mim. Mas esta é uma prova irrefutável de que os nossos gestos têm repercussões que vão muito para além do momento, e se multiplicam como ondas para além do tempo e do espaço. Lembrei-me disto de novo, há dias, perante o olhar espantado da jovem mãe cigana, com quem tanto conversei na fila do supermercado.

Ana Amorim Dias