(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

26.12.13

Insuficiente e incompleta

Insuficiente e incompleta

- Sinto a minha vida incompleta e insuficiente, percebes?-
Queixou-se, com alguma tristeza, nesta quadra natalícia que tem o condão de fazer com que as pessoas se analisem um pouco mais profundamente.
Por uns segundos fiquei sem palavras, sem saber o que dizer...

Quando constatei que os correios, hoje, ainda estavam fechados e eu não podia enviar mais uns livros que me encomendaram, dirigi-me ao carro. E ela apareceu do nada, a desejar-me as Boas Festas.
- Parabéns! Adorouj o que escreve! E sabe? Recebi o seu último livro de prenda, ofereceu-me a sua sogra!- exclamou, com um sorriso rasgado.
E eu, feliz, agradeci o elogio e percebi que talvez esteja no bom caminho do meu sucesso pessoal: encantar e inspirar...

O meu silêncio durou poucos segundos.
- Sabes uma coisa? A minha vida também é incompleta e insuficiente. Mas achas que o constato com tristeza?? Nada disso! Dou graças por ter a consciência do facto. É essa insuficiência e incompleitude que me faz batalhar todos os dias por me completar e construir; por preencher a minha vida com cada pecinha de aprendizagem, dádiva e emoção!-
Não sei que efeito tiveram as minhas palavras em quem me ouvia mas, para mim, foram uma nova peça do puzzle que me compõe. Que fantástico entendimento, este de ser insuficiente e incompleta! Que magnífica sabedoria este conceito nos pode aportar. Cada dia traz algo novo à nossa construção pessoal. Cada momento pode ser um novo degrau no caminho da nossa ação positiva, dando à nossa vida uma compleitude maior.
O que desejo agora? Que a minha existência seja uma eterna insuficiência incompleta, até ao fim dos meus dias, para que possa, assim, continuar a colocar a minha energia e criatividade ao serviço dos valores que mais me inspiram.
Realmente tudo depende da maneira como olhamos! Que as nossas incompleitudes e insuficiências sejam de facto o motor da mais bela evolução!

Ana Amorim Dias


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Peru do ano que vem

Peru do ano que vem...

O almoço do dia de Natal é sempre em casa da sogra. A canja, o bacalhau no forno e, claro, o belo do peru, inchado de tanto recheio.
- Ana!?-
- Oups! Já parei, já parei!- estava a tirar fotografias de louca, a atacar o dito bicho, e desculpei-me pelo abuso.
- Para o ano és tu!-
- Eu? Sou eu o quê?- sei muito bem que o que as sogras dizem é lei, nem vale a pena argumentar...
- Então, para o ano és tu a cozinhar o peru! A tradição tem que seguir!-
Fingi que não ouvi. Desconversei, fomentei outras conversas e esforcei-me para que a conversa morresse ali, mais finada que o peru que jazia sobre a mesa. De nada serviu: com as sogras não se brinca!
- Ouviste? Tens que aprender a fazer o peru, Ana, senão a tradição perde-se...-
A menina Glorinha tem razão, por mais que me custe a admitir. Tenho que aprender a temperar, rechear e cozinhar o bicharoco, no forno a lenha, se quero fazer valer a pretensão de ser uma matriarca capaz! Afinal, tenho feito coisas bem mais difíceis e não costumo sair-me mal.

No meio das conversas dos alegres comensais e da música de Natal que se desprendia da televisão, perdi-me nos pensamentos. Nunca estamos completos nem totalmente instruídos. Se queremos tornar-nos na pessoa que sonhámos, isso implica aceitar uma ajudinha de quem se propõe a ajudar-nos. "Por isso, peru do ano que vem: desculpa lá mas és meu!"

Ana Amorim Dias

Feliz Natal

Feliz NATAL!!

Estava a ver velhas fotografias e esta prendeu-me a atenção. Há uma certa pitada de inocência corajosa a salpicar a atitude. Digitalizei-a e guardei-a para a próxima vez que precisasse de salvar o mundo...

O pobre parece um saco de boxe. Leva socos por todos os lados. Está espancado, mutilado, e não me parece justo!
"Época de hipocrisia", dizem muitos; "época odiosa de cinismo, escravidão social e discrepâncias atrozes", atacam cegamente, como se a razão dos males do mundo fosse mesmo o Natal.

Mas que raio? Ainda não perceberam que o Natal não são os presentes nem a obrigatoriedade de os dar? Anda não perceberam que esta época existe porque há milhões de pessoas que não sabem ser carinhosas e precisam de um estágio anual para ver se aprendem? É assim tão difícil entender que se trata de celebrar a família, a generosidade, o amor ao próximo?? É assim tão impossível readaptar tradições, mantendo o brilho mágico da única altura do ano em que só a humanidade importa?

Só me apetece dizer palavrões, a sério, mas o coração acalma-se-me ao recordar a chegada dos meus filhos esta manhã à minha cama.
- Porque é que és sempre tão quentinha, mãe? - perguntou o Tomás, chegando-se mais a mim.
- A mãe tem um brilho!- explicou-lhe o João.
- És uma Deusa-Sol, mãe! - determinou o Tom, secundado pelo irmão:
- Sim, isso, uma Deusa-Sol!
Abracei-os com força:
- Obrigada Pai Natal, obrigada vida!!! Vocês são as melhores "prendas do mundo"!! Ah, e obrigada Ricardo!-
Riram-se e aninharam-se mais ainda na Deusa-sol das suas pequenitas vidas.

Natal é isto: calor humano, amor. E ele pode (deve) ser dado sem estribeiras tanto a quem faz parte de nós como a quem nunca vimos. Mas para isso precisamos de nos surpreender connosco: olhar para dentro e partir na expedição de resgate da nossa esperança, dos nossos sonhos, do nosso otimismo, da nossa capacidade de amar para além do explicável! Quando nos decidirmos a fazê-lo, não só o Natal voltará a fazer sentido, como todos os dias do ano serão mágicos... Acreditem porque eu sei! Parti há muitos anos, na minha nau, decidida a salvar o mundo. Talvez nunca consiga, mas jamais deixarei o leme da minha vontade andar à deriva!

Agora sim, desejo a todos um bom Natal!

Ana Amorim Dias

Mensagens

Mensagens

Fui incumbida de escrever um poderoso e inspirador texto para um pequeno vídeo.
Fi-lo em inglês. Tanto por ser compreensível a todos os envolvidos como pelo facto de, talvez devido à influência dos épicos cinematográficos, este tipo de escrita me sair melhor nessa língua.
O problema, como de costume, chegou com as traduções...
- Não, não, não!- comecei a reclamar logo de manhã.-Há que respeitar o sentido, mais do que as palavras! O importante é a mensagem. E a estética das poucas palavras. Aqui o menos é mais. A eficiência está nas frases curtas. Lembrem-se que a arte jamais se encontra no óbvio!-
Debati-me como pude, para defender o meu material, e consegui.

A arte não costuma andar de mãos dadas com o óbvio. A arte tem que ser sentida para além da razão. E é assim que a mensagem mais profunda encontra o caminho da sua transmissão.

Mais uma vez, no banho, fiquei a pensar; a meditar sobre estes dias em que as mensagens óbvias, de bons Natais e felizes anos novos, se desprendem da arte e da transmissão poderosa do que sentimos cá dentro. E então, enquanto a água quente continuava a cair sobre mim, reforcei a crença de que a eficiência de toda a mensagem está no ato mais simples: no sentir o que se emana.

Ana Amorim Dias

Estupidamente simpáticos

Estupidamente simpáticos

Saí do carro à pressa depois de um estacionamento à campeã de rali. Vinha com uma urgência enorme de começar a escrever.
O tema foi fermentando ao longo dos últimos dias: porque é que as pessoas não são mais simpáticas? Porque é que eu, que acho que sempre o fui, agora estou muito mais?

- Oh Ana, até há pessoas que dizem: "hum, aquela pessoa é demasiado simpática, há qualquer coisa que não está bem..." - dizia-me uma amiga, ontem ao jantar, quando lhe comentei o facto.

Se calhar é isso. Há um certo medo em revelar toda a simpatia. Há receio de nos entregarmos aos outros. Porque os mal entendidos existem e porque essa entrega implica uma energia que muitos não estão dispostos a gastar.

Estou muito mais simpática, agora. A Ana escritora está-se a borrifar para os olhares desconfiados dos desconhecidos a quem sorri. A Ana caçadora de histórias sabe-se verdadeira nesta simpatia brutal, incomodativa talvez, que espalha por quem apenas conhece. Sim, porque os amigos, esses, aturam-nos tudo com a sapiência do amor.
Dou comigo a pensar: "eh pá, isto não será demais?" E respondo-me: "Não sejas estúpida, tu és escritora e podes. Além do mais o que é sincero e bom nunca pode ser demais."

Estava, há pouco no banho, quando novos factos se somaram à divagação. Constatei que todos os meus novos (e antigos) amigos motards são de uma simpatia para além de explicações.
O Marco e o José, por exemplo, conheci-os na apresentação do "Olho Ubíquo" no moto clube de Faro. A conexão foi imediata. Partilhámos apenas alguns minutos das nossas vidas, mas sei que da próxima vez que os vir a simpatia vai estar lá. Inteira. Soberba.
Tenho descoberto que esta "estirpe" da estrada tem um modus vivendi muito próprio. Os motards entregam-se em simpatia e conexão verdadeira porque sabem tudo sobre a emoção. E sabem o valor de cada vida humana. Quando se entregam a abraços viris, apenas cinco minutos depois de conhecerem alguém, fazem-no com a força do pacto: "tu és meu irmão". E isto enternece-me e faz-me dar-lhes um valor que jamais saberei colocar em palavras...

Faz-nos falta simpatia. Faz-nos falta paixão pela vida. Faz-nos falta perceber o valor de cada vida que se cruza connosco. Senão pela humanidade, pelo menos por vocês, façam como os escritores loucos e como os príncipes das duas rodas: sejam estupidamente simpáticos, pelo menos de vez em quando.

Ana Amorim Dias


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Queres normal ou à bruta?

Queres normal ou à bruta?

- João? Vou fazer-te uma pergunta.- cheguei à sala já com o banho dele a correr e a roupa toda escolhida.
- Diz mãe...- respondeu, sem me ligar muita importância, dividido entre as festinhas dadas ao gato e a revista que estava a ler.
- Vais querer normal ou à bruta??-
- Hã!?! - esbugalhou um pouco os olhos e endireitou-se, mas não desistiu sem dar luta,- não sei do que falas, mas deixa-me só acabar esta página.-
Eu mal podia crer em tão grande e convicto descaramento.
- Pronto, é à bruta!!!- eu andava a mandá-lo para o banho há dois dias e a resposta era sempre a mesma: "Espera só um bocadinho". Pus o meu ar número um de louca (o usado para persuadir os meus filhos) e agarrei-o pelo braço.
Dez segundos depois a casa estava a mergulhar numa paz bem lavadinha.

Esta manhã, quando se foi deitar na minha cama, enroscadinho ao meu corpo, não resisti a perguntar-lhe:
- Porque é que gostas de mim, baby?-
- Ora, porque és minha mãe.-
- Então e se não fosse?-
- Oh mãe... Já me estás a deixar "esbandalhado"!-
Por momentos assustei-me, pensei que fosse pelas minhas perguntas, mas afinal era o edredom que, por eu me ter mexido, se tinha movido do sítio.
- Não respondes?-
- Se não fosses minha mãe, se eu gostava de ti? Claro! Nem sei porque é que perguntas!-
- Olha lá...-
- Diz.- percebi no tom de voz que já estava a ficar sem paciência.
- E o que é que não gostas em mim?-
- Não gosto quando te zangas: ficas assustadora!-

A maneira engraçada como ele pronuncia os "ss" ficou-me a rebolar nos ouvidos. E percebi que, às vezes, temos que "esbandalhar" quem amamos com a questão "vais querer normal ou à bruta?" porque só assim é que lhes lavamos bem o feitio!

Ana Amorim Dias

De amor e perdão

De amor e perdão

- Põe, mãe!-
- Estás louco, não ponho nada! O que é que as tuas avós vão dizer?-
- Não importa, estás linda! Passa para cá o IPad, se não pões tu, ponho eu!-
Rendi-me. Tenho aprendido que é de onde menos se espera que boas opiniões nos chegam.

Ao serão, enquanto a curiosidade pelo aumento dos "gostos" me perturbava o trabalho criativo, fiquei a olhar, intrigada, para a minha imagem. Não fumo charutos mas, como imagem promocional para o novo livro, a coisa até faz sentido.
"Quem és tu, afinal? Que ar misterioso é este?"
A vida tem muito mais interesse quando nos descobrimos como as primeiras pinceladas de uma enorme pintura; como as primeiras páginas de um livro. Sim, a vida só é mesmo uma aventura fantástica quando temos a capacidade de encarar cada acontecimento como algo que nos desafia, transforma e constrói. Não sabemos o aspeto final da obra "nós mesmos", mas temos que aprender a aceitar que não somos obra acabada: somos a soma de tudo o que nos acontece e de todas as nossas reações. E temos a obrigação de a criar da mais inesquecível maneira, senão pelos outros, por nós! Porque merecemos o melhor. Merecemos ser melhores. Merecemos viver com o encantamento de quem inspira, de quem ama, de quem perdoa tudo para todo o sempre.
E então, enquanto pensava isto tudo, lembrei-me dos filhos que não falam com os pais; lembrei-me dos amigos desavindos que já não recordam as razões do fim da amizade; lembrei-me do estúpido orgulho que impede as pessoas de recomeçar afetos que nunca acabaram.
Não, isto não é o espírito natalício: é a voz da razão, de mãos dadas com a do coração, que sabe o ano inteiro o que realmente importa.
Não me vejo especialmente bonita, nesta fotografia, mas vejo-me com a beleza de quem sabe que a vida é a construção contínua da nossa personagem real; vejo-me com a sensualidade mística de quem aprendeu muito bem as mais importantes lições. De amor e perdão.

Ana Amorim Dias

O próximo

O próximo

Duvido muito que seja coincidência. Acho que é a sequência lógica do funcionamento criativo. Se é, claro, que o funcionamento criativo se rege por algum tipo de lógica.
Mas deixem-me expor os factos e defender o meu caso.

Iniciei, finalmente, uma excursão exaustiva pelas mensagens privadas do Facebook. Tinha urgência em agradecer a quem me trouxe palavras simpáticas. Tinha a obrigação de começar a dar resposta às encomendas; saber mais sobre os destinatários para poder, assim, escrever dedicatórias sentidas e com sentido. Percebi que, talvez, esta missão me leve alguns dias, até porque os outros trabalhos (e os catraios de férias) também precisam de toda a minha atenção. Comecei por uma ponta e lá fui cumprindo o meu papel, sorrindo de cada vez que o telefone tocava com uma nova encomenda.

Voltei à minha secretária como quem aterra do espaço. O corpo continuava ali mas o pensamento tinha-se escapado, indomável, para o próximo livro. Pela primeira vez em meses, percebi o que aí vem. Há personagens demasiado fortes a povoar os meus dias; há a necessidade de escrever sobre a personagem que melhor conheço e sobre a qual ainda nenhum livro escrevi. Sim, tornou-se tudo muito claro: no próximo não vou inventar, não faria sentido. Já sei sobre o que vou escrever e como o farei.

Regressei ao meu corpo e à minha secretária. Olhei com uma satisfação orgulhosa para o encantador "Olho Ubíquo" e senti-me feliz. "Em breve terás uma nova companhia", disse baixinho, enquanto apagava as luzes e me preparava para entrar no mundo dos incontroláveis sonhos.

Ana Amorim Dias


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Percursos

Percursos

Foi o senhor que, ao ver-me de braço muito esticado em pleno restaurante, se ofereceu para nos tirar uma fotografia.
- Desculpem a indiscrição, posso perguntar uma coisa?-
- Claro!- respondi, sorridente.
- Os senhores não saltaram por acaso daquela televisão ali, ontem, para esta mesa aqui, hoje?-
- Sim, era a que estava mais perto!- raramente me sai só um "sim" ou um "não", nunca entendi bem porquê.
- Obrigado. Eu tinha a certeza, mas eles não acreditavam.- queixou-se, a olhar para os colegas com um ar triunfante.

- É para a estacão de Entrecampos, por favor.- pedi ao taxista, enquanto ele colocava a mala na bagageira.
- Vai para Sul, não é minha senhora?-
- Sim, vou.- fiquei a pensar se saberia os horários de cor ou se me topou a pinta de moura.
- Ui, agora três horas de viagem!! É muito cansativo, ir para tão longe!- exclamou com uma enorme veemência.
Fiquei sem saber o que responder. Mas, como não me apetecia começar a divagar tão cedo nem ia deixá-lo a falar sozinho, limitei-me a um "Pois".

O que para uns é uma enorme viagem, para outros é um pulinho. O que para uns é tremendamente distante, para outros é logo ali. O mundo de cada pessoa tem um tamanho tão personalizado quanto os seus horizontes, expetativas e experiências de vida.
Gosto de ver cada percurso como mais uma página em branco sobre a qual há que escrever. Não importa a distância, nem o transporte escolhido; não interessa a proveniência, o destino ou a velocidade; não é relevante ao que fomos nem ao que estamos a regressar. Porque o encanto de cada percurso está no facto de ser mais uma ferramenta para a nossa construção. É por isso que estou absolutamente convicta de que, quer seja um salto do ecrâ para a mesa do restaurante, ou uma expedição de meses, é no movimento do percurso que a mais encantadora viagem se dá: aquela em que vamos escrevendo a história da nossa vida.

Ana Amorim Dias

Importadora de heróis

Importadora de heróis

- Este cabelo vai precisar de um "arranjo"- disse ela com um ar um pouco desesperado.
- Claro. Precisa sempre, eu é que nunca tenho paciência!-
Ouvi as gargalhadas das minhas amigas, lá fora, e desejei escapar-me à maquineta quente que fabrica caracóis, para me juntar à festa. Mas, claro, tive algum juízo e lá me deixei ficar.
Olhei para o lado: a jovem que estava a ser maquilhada seria a Erica? Não perdi tempo.
- É a Erica, não é?-
- Sim.- Um sorriso rasgado, genuíno, puro.
Em cinco minutos estavamos a falar sem parar, no meio de gargalhadas, com a maquilhadora e a cabeleireira à mistura.
- E a Ana o que faz?- perguntou uma delas.
- Sou importadora.- Saiu-me sem pensar.
- Importadora? De quê?-
Peguei no iPhone e mostrei uma fotografia do Eric.
- Importadora de heróis.- exclamei com ar trocista.
Olharam e espantaram-se.

No fim do programa, quando fui buscar as minhas coisas ao camarim, passei pelas magas da beleza e agradeci-lhes imenso a doçura e competência com que me receberam.
Não sou importadora de heróis. A minha função é muito mais bela e poderosa que isso, creio: sou alguém que consegue ver heróis por todos os lados; alguém capaz de fazer com que todos se sintam, à sua própria maneira, heróicos.

Ana Amorim Dias

Maus presságios e bons augúrios

Maus presságios e bons augúrios

O tempo não era muito, mas eu não quis pisar no acelerador.
- Não, não! Não vou mais depressa, já viste que mau presságio seria, se apanhasse uma multa mesmo antes da primeira apresentação da tua biografia?-
- Porque têm as pessoas essa mania, Ana?-
- Qual?-
- De inventar travões. Não há porque inventar travões! Os maus presságios são uma invenção estúpida dos receosos.-
- E os bons augúrios? Como os vês?-
- Sim, esses podemos dar-nos ao luxo de ter. Lembra-te sempre de algo: duvidar é perder o controle. Fica longe de tudo o que te faça duvidar de ti, especialmente se fores tu a inventá-lo. Parece-me óbvio, não?
- E lógico!-

Nem maus presságios, nem bons augúrios. Confiar e não perder o controle. Assim tudo corre bem.

Ana Amorim Dias




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Promessas

Promessas

Andava a prometê-lo há meses. Aquele jogo no Sul de França, nos matraquilhos perros da casa do Bernard, nem devia ter contado (quem está a ler o livro vai perceber do que falo).
Prometi ganhar-lhe. E cumpro sempre as promessas. Ganhei. A solo e a pares.

- Não, não! Assim não vale, Ana!-
- O quê?-
- Os golos de meio campo não contam!-
- Só podes estar a gozar! Que batoteiro!-
- É assim: golo de meio campo não conta e quem marca depois fica com dois golos.-
- Está bem, ganho-te na mesma!-
E o primeiro jogo, que ganhei com golos de meio campo, ficou desclassificado.
- Então vamos lá!-
- Sim, mas aviso-te que as tuas regras não te vão salvar!-
Ganhei o jogo seguinte, também. E depois ganhou ele. Não vou dizer que o tenha permitido, para lhe salvar a face. Ganhou e pronto.
Quem perdeu, a meu ver, foram os clientes do Piratas, porque a gritaria foi tão grande que não sei como não fugiram assustados.

Continuo a dizer que ganhar sabe bem mas, bem melhor que isso, é saber estar à altura dos desafios. E cumprir promessas jamais feitas em vão.

Ana Amorim Dias


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Cem por cento e mais duzentos

Cem por cento e mais duzentos

O João adormeceu no sofá e eu levei-o para a cama. Subi as escadas com ele ao colo sem perceber bem como o estava a conseguir fazer. Eram quase três da manhã. Outra vez.

E hoje o telefone tocou às oito e pouco. Ameacei de morte quem teve a infeliz ideia de ligar tão cedo, a um sábado. Nem sequer tentei voltar a adormecer; a irritação não permitiria.

O almoço terminou e mal comi. Não tinha fome. Só sono e uma nuvem espessa a trespassar-me o cérebro.

"I'm doing the best i can, yes i'm doing the best i can!", cantavam no rádio do carro esta manhã. Estarei mesmo a fazer o melhor que posso?

Continuei insuportável durante quase todo o dia. Sim, tenho sono e o cérebro meio estafado. E consigo entender os motivos. O que não percebo é porque é que este mau feitio tomou conta de mim. Estarei a fazer o melhor que posso? Mesmo?

Fui varrer. Estava a precisar de um tipo de ação ritmada e humilde que me permitisse ordenar a cabeça. Que neura! Dou tudo por tudo e mesmo assim não basta? Escrevo de corpo vibrante e com a alma inteira. Entrego a intensidade, a loucura, a emoção. Faço correr as palavras com a mesma beleza com que corre um puro sangue numa praia deserta. Ou pelo menos tento. But am i doing the best i can?

"Devia sair uma lei que obrigasse todas as apresentações artísticas a estarem de sala cheia", pensei, "podia ser através de requisição civil ou de qualquer outro expediente, mas devia ser assim!" Pronto, saiu. Agora entendo perfeitamente a minha angústia e mau humor. Detesto falar para pouca gente mas, ao mesmo tempo, isto faz-me valorizar mais ainda quem aparece e me acompanha. Há uma certa injustiça na entrega absoluta a qualquer arte: passa-se tempo demais a dar quase tudo para obter quase nada.
"Então, Ana?? O que é isso?? Escrever é o teu mundo, o teu alimento; não devias precisar de mais nada!!" Assim que este pensamento chegou, tudo começou a mudar. Pousei a vassoura e pensei que dar cem por cento não chega: é preciso dar cem por cento e mais duzentos!
E garanto-vos que acabo de tomar a mais firme decisão: na apresentação desta noite, terei a energia a trezentos... mesmo que esteja a falar só para vinte.
Yes i'm doing the best i can!
I'll keep doing the best i can!

Ana Amorim Dias

Inspiradora ventania

Inspiradora ventania

Um encontro marcado para as oito da manhã? A sério? Depois de uma noite tão longa, intensa e emocionante como a da apresentação do livro em Lisboa? Depois de semanas e semanas de imenso trabalho em tantas frentes diferentes? Onde é que eu tinha a cabeça? Bem, mas era a única hipótese possível para conhecer um amigo de um amigo que achou que este encontro poderia ser interessante. E foi.
Mas agora estou cheia de sono. E de pressa. E a pensar na interminável lista de coisas que os próximos dias me reservam. "Este ano, preparar o Natal vai ser um passeio no parque", penso, em modo de consolação.

- A Ana é uma força da natureza!- explicava, ontem, a minha homónima Ana Amorim, a uma amiga sua.
Eu ri-me. Oiço-o com frequência e dito com tanto carinho que suspeito que seja verdade. Ri-me porque o que talvez poucos saibam é que as pessoas assim, vistas como vulcões, furacões ou ventanias, lutam os dias inteiros. Penso que deve existir uma certa predisposição genética para se "levar tudo à frente", mas o que tenho a certeza é que a força também se constrói. A capacidade de ver mais além, de esperar, de lutar por encantar, de trabalhar sempre e não desistir nunca, tem que ser uma constante. As dúvidas, receios, ansiedades e cansaços têm que se deixar guardados no espaço mais pequeno e oculto que encontrarmos em nós. O pessimismo deve ser, a todo o custo, esmagado e a noção épica da nossa missão jamais se pode perder.

Quando o despertador hoje tocou, imaginei como seria bom esquecer tudo e render-me à necessidade de ficar deitada na cama, mas o motor da caçadora de histórias soube ronronar mais alto e lá fui, como uma inspiradora ventania que se vai levantando para abraçar o novo dia.

Ana Amorim Dias



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Aprender

Aprender

Começo a habituar-me a estas situações. Estou na minha vidinha e, de repente, como que por magia, vejo-me rodeada de pessoas fantásticas, num ambiente boémio e artístico que me preenche por completo.
Ontem conheci, finalmente ao vivo, uma talentosa e incrível mulher que já considerava amiga.

- Era isto que eu lhe dizia no outro dia, Isabel...- exclamei ao observar o vida pulsante que o seu olhar irradiava.-
- O quê?-
- Que só quem ama o que faz consegue possuir esse brilho no olhar que a Isabel está a ter neste preciso momento. Este brilho, sempre que o vejo em alguém, deixa-me maravilhada e feliz!-
- Ohh Ana, tão querida!-

É verdade: o brilho dos outros olhares maravilha-me sempre! Fico com a sensação de que são mestres, mentores prontos a encaminhar-nos para planos mais elevados.

- Sabes o que foi incrível ontem?- perguntou-me o Eric há pouco.
- Tudo?-
- Percebi no Luiz um talento e experiência tão grandes que fiquei com a certeza que posso aprender muito com ele!-
Maravilhei-me outra vez.

Posso andar sempre com o brilho no meu olhar, mas quero aprender a ter mais. O Eric é um fotógrafo soberbo mas sabe onde ir beber mais talento. Será isto sabedoria? Será que tudo se pode continuar a aprender? Sempre? Sei que sim. Sei que enquanto nos mantivermos atentos e sequiosos de vida, podemos apreender mais para saber, depois, transmitir melhor. Sei que enquanto sonharmos melhorar-nos, a sorte se encarrega de colocar no nosso caminho quem nos possa inspirar.

Ana Amorim Dias


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11.12.13

Na palma da mão

Na palma da mão

Desci as escadas a falar com convicção.
- Sabes o que se diz das pessoas que falam sozinhas, não sabes?-
- Eu não estava a falar sozinha, estava a falar com a palma da minha mão, olha!-
Tinha apontado só a lista de coisas a fazer até ao jantar (porque as do serão já não couberam) e vinha a verificá-las.

Quando voltei às minhas atividades, que ainda iam só a meio, surgiu-me a dúvida: será que se consegue fazer tanta coisa? Poderemos assegurar as nossas funções habituais e ir acrescentando mais e mais e mais? Sairão todas bem? Ou estarei a abusar e a correr o risco de falhar em algumas?
Lembrei-me que o Ricardo se ofereceu para me ajudar e lhe respondi que não precisava. Quero conseguir fazer tudo. Fazer tudo e fazer bem. Mas porque é que hei-de ser orgulhosa e achar que sou a super mulher?
Mudei para a atividade seguinte e olhei para as palmas das minhas mãos. Devemos esgotar todos os nossos recursos e fazê-lo com gosto e brio. Mas qual é, afinal, o problema de aceitar alguma ajuda? Isso não é vergonha nenhuma e dá-nos a consciência humilde de que todos temos limites.
Agarrei nas palmas das mãos e fui-lhe dar um abraço. Entendi que as mãos também servem para aceitar estas bem vindas ajudas.

Ana Amorim Dias

Inesperados

Inesperados

Apesar de estar acompanhada, entrei para o carro a rir sozinha. Esperava tudo menos terminar a noite a conduzir um motard francês e outro alemão para uma ceia tardia que se veio a revelar numa caudalosa nascente de gargalhadas e crónicas.

- Esperavas terminar hoje a tua noite com dois escritores meios loucos, Ralf? - Perguntei ao alemão que só regressará a Munique lá para finais de Abril.
- Eu sou surpreendido a cada instante, Ana! A vida é um inesperado constante e interminável... E é fantástico!-
- Hum... Já descobriste a energia certa para a viver.- comentei com um certo ar catedrático.

O inesperado tem outro sabor e valor. O inesperado ensina-nos muito e torna-nos mais humildes e sábios. Mas fiquei a perguntar-me: os maravilhosos inesperados da vida atingirão mais quem se põe a jeito? Ou atingem todos por igual e apenas há quem saiba tirar deles maior partido? Desconfio que as pessoas demasiados inertes e pouco dadas à emoção perdem milhões de surpresas. Quem não se abre a partilhas humanas fica enjaulado em si mesmo. Quem não se deixa levar por impulsos de aproximação ao próximo perde quase todo o encanto da existência. Quem não entrega a sua genuinidade completa, olhos nos olhos, não está apto para se relacionar de verdade; para tocar e ser tocado.

Não esperava terminar a noite da primeira apresentação do meu último livro a cear apenas com o Eric e o Ralf. Mas o realmente inesperado foi, ao levantar os meus olhos durante um discurso inflamado, deparar-me com o ar fascinado com que olhavam os dois para mim.
E,vendo bem, o que me fascina no inesperado é perceber que o posso potenciar eu mesma.

Ana Amorim Dias

Adeus sexta feira 13

Adeus sexta feira 13

O balde de água fria caiu-me em cima ao princípio da tarde. Estava afogada em trabalho, vindo de várias frentes, quando me foi noticiado o "naufrágio": por decisão alheia à vontade do apresentador, o "5 para a meia noite" de sexta feira 13 terá que ser exclusivamente dedicado aos "filhos do rock".
- Podemos adiar para Janeiro?- perguntou-me o Bruno, chefe de redação do programa.
Comecei a andar às voltinhas.
"Rápido, Ana! O plano B, o plano C! Pensa, pensa!!"
- Tem cinco minutos, Bruno? Vamos falar um bocadinho!-
Expliquei-lhe tudo o que queria explicar e expus todos os meus argumentos, sempre com a empatia natural com que temos contactado ao longo dos últimos dias.
Quando desliguei o telefone confesso que estava um pouco triste mas sabia que nem o Bruno Jerónimo nem o Nilton me deixariam ficar mal. Sabia (porque isto sabe-se logo) que estava perante dois homens de honra, palavra e profissionalismo e que, por isso, a solução seria encontrada.

No meio de um dia de loucos, depois de mais umas quantas chamadas e outras tantas diligências, a solução ganhou vida.
Adeus sexta feira 13.
Olá segunda 16!
Nem tudo é como queremos e planeamos, mas sempre que me deparo com pessoas de elevados valores, que decidem lutar ao meu lado, não posso deixar de me considerar uma tremenda sortuda!

Portanto já sabem: segunda feira 16, deitem-se um pouco mais tarde... talvez valha a pena.

Ana Amorim Dias

All we need is love

All we need is love

Mas porque é que acordei quatro horas e meia depois de me ter deitado? Não havia nenhuma mosca no quarto. Os miúdos estavam em silêncio... Não entendo.
Confiro as horas. Sim, dormi só quatro horas e vinte. Acho que me dói um pouco o corpo. Mas o pior são os olhos. Ardem. É do sono.
Viro-me outra vez para baixo. Sei que já não serve de nada pôr-me na posição preferida, não voltarei a dormir.

Consolada com a água quente do duche a chover sobre mim, lembro-me dos beijos que ontem dei ao Tomás. Como trabalhei dezoito horas e quase não lhe dei atenção todo o dia, ao chegar a casa fui ao quarto dele e, mesmo enquanto dormia, enchi-o de beijos e de amor. Lembro-me de ter pensado, enquanto o acarinhava, qua talvez fosse tempo perdido por ele não estar consciente.

- Vais ficar aí para sempre?-
- Hã?-
- Estás há meia hora no duche, eu também quero ir!-
- Ah, sim, claro...-

Devo ter perdido a noção do tempo, debaixo daquela água quentinha. Perdi a noção do tempo, mas ganhei noções de sabedoria. Perguntei-me quantos beijos me terão dado os meus pais enquanto eu dormia. Perguntei-me quantas manifestações de amor já recebi sem saber. Perguntei-me até que ponto o facto de sempre me ter sentido tão amada não será o fundamental alicerce deste amor todo que sinto por toda a gente.
Nunca uma demonstração de amor é perdida! Por mais que o destinatário não a veja nem tome consciência dela: ele recebe-a. E, mesmo sem a sentir, absorve-a e integra-a nos códigos da essência.
All we need is love. Só precisamos de amor. De o receber e de o dar, mesmo quando o destinatário se encontre no mais profundo dos sonos.

Saí finalmente do banho, já sem sono nenhum. Estas reflexões despertam-me sempre muito...

Ana Amorim Dias

Imortal

Imortal

Agarrei-lhe no casaco e puxei-o para trás.
- Mas tu és doido? A atravessares a estrada assim ainda te matas!-
- Eu sou imortal!-
O ruído dos carros, naquela movimentada rua de Paris, fez-me duvidar do que ouvi.
- O que é que disseste?-
- Eu sou imortal!-
Rompi em gargalhadas.
- E sabes que mais? A tua imortalidade vai-me chegar pelo correio na semana que vem!-

Chegou ontem. Eu andava com a normal excitação que antecede sempre a chegada material de um novo livro. Quem escreve sabe do que estou a falar. Há uma espécie de ganância incomparável. Nem quando sabemos estar a desembrulhar um anel de diamantes a sensação é tão boa e sim, posso comparar. Umas folhas de papel feitas livro, se é escrito por nós, ganham um valor superior a qualquer outro objeto; encerram em si um prazer maior do que qualquer outra coisa nos pode trazer.

Dizem que os "diamonds are forever". Talvez.
Disse ao Eric que imortalidade dele me chegaria pelo correio. Talvez.
Digo-vos que a imortalidade é ganha por quem sabe deixar a sua marca. Tenho a certeza. É o que sinto de cada vez que um novo livro me chega na volta do correio.

Ana Amorim Dias

Nas asas certas

Nas asas certas

No outro dia saímos todos de casa atrasados.
- O Ser Humano devia ter asas. Assim éramos mais rápidos e não tínhamos que andar sempre a correr.- comentou o Ricardo enquanto nos precipitavamos pelas escada abaixo.
- Não sejas parvo! O Ser Humano tem as melhores asas de todas as espécies. Eu não trocava as asas interiores pelas exteriores, digo-te já!-

Mais tarde, nesse dia, voltei por acaso a ver o vídeo do silencioso reencontro, no Moma, da artista performativa Marina Abramovic com uma antiga paixão que não via há mais de 30 anos. Comovi-me de novo. E lembrei-me das tais asas.
Não creio que seja apenas a capacidade intelectual da nossa espécie que nos traz toda a vantagem. O que nos faz maiores, melhores, mais rápidos e aptos à evolução, é esta capacidade de nos eternizarmos no amor. Quem ama é imortal. Pelo menos enquanto ama.
Temos asas interiores, capazes de nos levar para fora do nosso corpo em segundos, porque sabemos amar.
Reforço o que disse enquanto, naquela manhã, descia as escadas à pressa: não trocava as asas interiores, que todos temos, por absolutamente nada. Sei que voamos com as asas certas.

Ana Amorim Dias

Adolescência

Adolescência

Eu começava a duvidar da normalidade da nossa relação. Nada pode ser tão absurdamente perfeito o tempo todo. Tive que esperar pelos seus doze anos e meio para ter, finalmente esta manhã, a primeira "pega de caras" com o meu pequeno gigante.
Tinham-me avisado. Tinham-me dito raios e coriscos dessa espécie alienígena que se nos apodera dos filhos durante a adolescência. E eu ria-me, alicerçada na paz com se vive com o Tomás.
Mas deixem-me recapitular os factos:
- Hoje vais vestir esta blusa!- impus-lhe, numa exceção à regra da sua liberdade indumentária. Tinha comprado três, em cores diferentes, giríssimas, claro, e ele nunca as usou.
- Não.-
Normalmente o mau feitio matinal de ambos dissolve-se no calor dos mimos, mas hoje explodimos os dois nesta birra sem sentido.
- Atreves-te a desobedecer-me? Não vás por aí, meu menino!-
- Vá, calma. Não enerves o miúdo, que vai ter teste de matemática agora...- interveio o Ricardo com a doçura habitual.
- Ele vai vestir esta blusa hoje e não há mais conversa!- comecei a subir o tom.
- Não visto!- até fez beicinho, o pobre.
Depois, ao ver a minha autoridade ameaçada e apercebendo-me do enorme perigo do facto, usei de um expediente muito feio...
- Garanto-te que se ela blusa não for usada hoje, o treino de basquete vai para o espaço!!-

Quando nos encontrámos na sala, para tomar o pequeno-almoço, vi que tinha a dita blusa enchouriçada por baixo de uma das suas coloridas sweatshirts desportivas.
- Levas-me ao treino? Tenho a blusa vestida...- uma humildade amuada trespassava-lhe a voz.
- Sim, claro: nunca falho ao prometido.-

Agora estou a sorrir ao lembrar-me da sua capacidade de arranjar soluções diplomáticas. E estou a rir-me de mim. Afinal qual dos dois estará na adolescência? O adolescente dócil e de fácil trato ou a adulta que entrou em pânico ao ver a sua autoridade em perigo?
É demasiado ténue esta linha que separa a parentalidade firme e consciente do despotismo irracional. De hoje em diante tentarei "comprar" apenas as "guerras" que valham realmente a pena. Há que mostrar sempre que, até à independência, há regras a cumprir, mas é preciso também dar espaço suficiente para que os recalcamentos não nasçam.
Acabei de ganhar três blusas giras e, daqui para a frente, ou o deixo escolher a roupa, ou aposto apenas em valores seguros.

Ana Amorim Dias

Muita luz

Muita luz

- Mãe, tu tinhas dito que era dia um!-
- Hã?-
- A árvore de Natal e o presépio: disseste que se montam sempre no dia um de Dezembro.- reclamou o João.
- E já é dia dois, não é?-
O Tomás, entretanto, aproximou-se interessado.
- Então vamos lá! Mas, como já sabem, há que criar as condições!-
E lá andaram, a rodopiar atrás de mim, enquanto eu acendia a lareira e as velas e punha música de Natal a soar, bem alto, na casa toda.
Fomos buscar a parafernália e começámos.

À medida que os ramos do pinheiro ganhavam volume a seis mãos, deixei-me envolver pelas gargalhadas felizes destes dois anjos e lembrei-me de um outro, que adorava esta época como nenhuma outra.
- Sabem quem adorava isto?-
- Sabemos: o avô João!- responderam quase em uníssono.
Eu sorri, invadida por um sentimento de missão cumprida, sentindo a luz quente de uma companhia que nunca me deixará.
Pouco depois, sem saber muito bem como, estavamos os três no chão, envoltos em luzes brilhantes.
"When we finally kiss good night
How I'll hate going out in the storm!
But if you'll really hold me tight
All the way home I'll be warm"... Cantava o Dean Martin.

Gosto de luz, muita luz e não gosto de dizer adeus. Mas vejo as memórias, que quem já partiu deixou em nós, como um abraço apertado que nos mantém quentinhos para sempre.

Ana Amorim Dias

Caprichos

Caprichos

- Já ouviste a música da irmã do Ronaldo?- perguntou-me o Ricardo.
- Reservo-me o direito de não te responder a essa pergunta...-
- Diz lá! ...É que gozaram tanto com ela na rádio, no outro dia!-
- Espera.-
Peguei no iPad, fiz soar o barulho através do YouTube e fiquei a olhá-lo para lhe ler a reação.
Nem um minuto passou para que outras reações se manifestassem.
- Mãe!? A sério!? Não me vais fazer ouvir isto, pois não? - reclamou o Tomás que, por estarmos todos dentro do carro, não tinha para onde fugir.
- Tira isso depressa! Está-me a furar os ouvidos!!- ajudou o João.
Desliguei de imediato e poupei-nos ao sofrimento. Fizemos o resto da viagem com prazer, a ouvir de facto música. Por um lado fiquei feliz, ao constatar que os meus pequenos anjos já se sabem proteger de atentados aos seus sentidos. Por outro lado fiquei triste, ao pensar que talvez haja mais arte perdida por falta de oportunidades do que lixo promovido por caprichos e dinheiro.

Ana Amorim Dias

1.12.13

Excursões e expedições

Excursões e expedições

Há uns tempos comentei com alguém, ao telefone, que estava de partida para uma expedição em África. Aquilo até me soou bastante bem, mas fiquei com a leve sensação de que tinha sido um pouco pomposa demais. Deve ser por isso que, ao longo das últimas semanas, as palavras "excursão" e "expedição", me têm aparecido por vezes a bailar no pensamento. Qual é, afinal, a diferença?
Define-se geralmente "excursão" como sendo um passeio organizado realizado em grupo; e "expedição" como uma viagem de exploração, que tanto pode ser feita em grupo como a sós.
A maneira como as encaro é ligeiramente diferente. Uma excursão é algo aborrecido, pré-estruturado, regrado e desprovido de qualquer valor que me possa interessar. Por isso não as faço, seria uma perda de tempo. Já uma expedição é algo encantador e excitante, surpreendente e aventureiro, sem regras nem monotonias, repleto de descobertas e ensinamentos. Se tivesse que definir a minha alma viajante, diria que sou uma exploradora solitária; adepta da improvisação, dos surpreendentes encontros e do crescimento através da experiência. Diria que sou uma pessoa de expedições sucessivas, capaz de se perder sem problemas para se encontrar mais à frente.

Hoje acordei para mais uma expedição. Uma que é simultaneamente tão banal quanto excecional: a expedição de cada novo dia! Acordei com a certeza de que, por mais normal que sejam os caminhos e destinos de cada momento, está nas nossas mãos fazer deles as mais incríveis aventuras... Está na nossa vontade vivê-los com a surpresa encantada de quem se rende a uma nova expedição!

Ana Amorim Dias


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A generosidade dos mestres

A generosidade dos mestres

Ontem à hora de almoço, ainda em Paris...

- Vou dar-te a tua primeira lição de fotografia, concentra-te!-
Pegou numa folha, numa caneta, pôs a Leica, com uma das suas soberbas lentes, sobre a mesa, e prosseguiu:
- Há três fatores a ter sempre em conta...- interrompeu-se para escrever uns rabiscos.
- Oh Eric, a sério, eu jamais saberei muito sobre fotografia. Parece-me demasiado complicado, é por isso que uso o iPhone!-
- Nada disso! Tens que ser uma artista completa! Vá, toma atenção à primeira lição!-
Afastei o atrito e abracei o privilégio de ter por mestre um dos melhores.

Mais tarde, no avião, olhei para a folha de rascunho e recordei o que me explicou, procurando que tudo fizesse sentido. Recapitulei noções básicas de sensibilidade, abertura, profundidade e velocidade. Recordei o que disse sobre enquadramentos, gradações de luz, escalas e milhões de pixels. Tentei visualizar de novo todos os botões e "rodinhas" da Leica e das ópticas que usou. E quase entrei numa momentânea depressão devido à confusão em que o meu humilde cérebro mergulhou.

- Parece confuso agora mas, com a prática e com as próximas lições, tudo vai fazer sentido.- disse-me no fim da lição, mesmo antes de me vir embora.

Tranquilizei o meu cérebro com as informações da alma. "Relaxa, Ana: quando o mestre investe no discípulo é porque o sabe capaz!"
E foi assim que consegui aterrar em paz em terras lusas, aterrando também em paz na certeza de vir algum dia a perceber alguma coisa de fotografia graças à generosidade de quem escolhe não guardar para si os segredos de uma arte.

Ana Amorim Dias


Enviado do Writer

Dezasseis

Dezasseis

Hoje chove em Paris. O dia cinzento não condiz com a data nem com o meu estado de espírito. A caminho do aeroporto, já só penso em chegar a casa e aos beijos de quem me espera.

Não é possível guardar todas as memórias dos dezasseis anos que hoje se cumprem. E causa-me uma certa pena esta incapacidade humana de registar todos os sorrisos, todos os momentos, todas os dias de luta lado a lado por uma vida em pleno. Se me perguntassem o que é que transforma duas pessoas num casal feliz, creio que só teria uma palavra para resumir tudo: magia. É esta magia que apaga o mau e constrói o bom. É esta magia que solidifica o ternurento movimento de corpos que bailam no uníssono do instinto. É esta magia que faz com que a soma de um mais um seja muito mais do que dois. É ela, também, que aceita e abraça o crescimento do outro, sem achaques nem crises.

Como de costume, não sei se lerás esta crónica. Talvez algum dos pirralhos te mostre. Ou talvez eu a leia, nos teus braços, ainda esta noite. Não é importante. O que me importa é que saibas como sinto a infinita sorte de partilhar a vida contigo. O que me importa que saibas é aquilo que todos os dias te mostro...

Ana Amorim Dias

Boémios silêncios

Boémios silêncios

Quando cheguei ao hotel nem conseguia dormir. A tarde e noite tinham sido tão intensamente ricas que, assoberbada pela vivência, demorei quase cinco minutos a conciliar o sono.

O Alexandre e a Sónia receberam o Eric com o entusiasmo natural dos grandes amigos que não se vêem há anos. Comigo foram de uma hospitalidade e carinho tão grandes que muito rapidamente me senti, também, como uma velha amiga. No silêncio campestre da sua mística casa, a magia aconteceu.
Mas deixem-me explicar os motivos de tanto entusiasmo: Alexandre Poussin é escritor. E Sónia é a sua companheira de viagens e aventuras. No início de 2001 começaram uma viagem de três anos e meio na qual percorreram África a pé. E esta foi apenas uma das várias colossais odisseias sobre as quais o Alexandre escreve.

Para quem, como eu, respira a escrever e sente as viagens como uma das maiores riquezas da vida, ter o privilégio de privar com pessoas assim é algo quase inexplicável. Partilhar momentos de boémia intelectual é o pináculo da revitalização artística. Debater métodos, sensações, experiências e emoções com outros escritores repercute-se na forma como encaramos a criação. Constatar uma tal comunhão e tantos pontos em comum com seres tão especiais, fez-me ver em mim coisas que nunca antes tinha constatado.

- Já viram que giro? Somos só três neste carro... E os três escritores!- comentei quando o Alexandre nos levou de volta a Paris.
- Pois é. - responderam.
E depois o silêncio. Um silêncio cúmplice, repleto de sentido. Um daqueles silêncios boémios que antecedem a arte.

Ana Amorim Dias


Enviado do Writer

Tenho que ir ali, já volto

Tenho que ir ali, já volto

- Bolas...-
- O que se passa?-
- Nada. Hoje ainda não se passou nada e o problema é esse: não tenho tema para escrever.-
Ele riu-se. Acha tanta piada a esta minha devoção que anda sempre a contar, a toda a gente a quem me apresenta, que todos os dias escrevo uma crónica.

Não demorou muito a surgir o tema. Fomos visitar um amigo seu, e eu, passados cinco minutos, desculpei-me:
- Tenho que ir ali, já volto.- e pimba, desapareci.
Caminhando, quentinha, ao frio, dei graças pela leveza com que me desembaraço das situações. Prefiro conversar comigo a ouvir conversas repetidas sem ser um agente ativo. Adoro o meu "vou ali, já volto" porque o reconheço como um forte aliado do gene que me obriga a estar sempre em movimento.
Mas acaba de me ocorrer algo: e se o convívio que deixei para trás se tornou interessante? E se estou a perder algo, algum ensinamento ou lição que possa dar azo a uma outra crónica?
Desculpem, mas tenho que voltar... Tenho que ir ali, já volto!

Ana Amorim Dias

O bafo da criação

O bafo da criação

Está frio em Paris. As folhas forram o chão e os bafos da respiração das gentes desprendem-se das bocas em pequenas nuvens visíveis.
Caminho a passo firme, tentando não me atrasar para os meus compromissos. Desloco-me, contudo, sem querer perder o encantamento com tudo.

Tenho ouvido muitos criadores dizer que o seu combustível mais forte é uma poderosa tristeza; que os seus acessos criativos se ativam muito mais com esse sentimento. Aceito. Porque os compreendo. Mas é ao comparar o meu combustível com o de quem se confessa assim, que me dou conta da minha sorte. O que me move e propulsiona é uma alegria indomável. O que mais me motiva a criação é esta capacidade de tudo olhar como se da primeira vez se tratasse, com a inocência espantada que vê sempre o lado belo, o lado bom.

Está frio em Paris e eu caminho feliz. Vejo os bafos das respirações alheias como um símbolo da capacidade de criação que todos têm em si. E atrevo-me a tentar inspirar os outros, para que se descubram assim: capazes de criar algo novo; capazes de criar na alegria.

Ana Amorim Dias


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Bonecas de porcelana

Bonecas de porcelana

- No outro dia lembrei-me tanto de ti...-
- Então?-
- Passei por acaso numa feira de velharias e vi uma boneca de porcelana que estive mesmo para te comprar.-
- Credo! Que horror! Nunca te atrevas!-
- Porquê, mãe?- quis saber o João, que estava a assistir à conversa.
- Ai vocês não sabem que a vossa mãe tem pavor a bonecas de porcelana?-
Confirmei o facto sem qualquer pudor. Detesto-as a ponto de já as ter posto fora do meu quarto, em casa de uma amiga.

Não sei se isto se prende com algum filme que vi na infância ou com a simples conjugação de nunca ter apreciado bonecas somado ao facto de a sua extrema perfeição me dar um nó nos nervos.
Odeio bonecas de porcelana e nunca escondi o medo que tenho delas. Contudo, ao viver há poucos dias este episódio, compreendi que, no fundo, não lhes tenho qualquer medo: são só coisas, feias e execráveis, é certo, mas apenas e só coisas. Percebi que elas talvez sejam o símbolo de todos os meus receios e que, como tal, tenho que começar a apregoar a mim mesma que sou superior a elas, que as posso anular, superar e até ignorar.
Todos temos as nossas bonecas de porcelana. Todos temos os ícones dos nossos medos. E isso é excelente! Quanto mais não seja porque, ao destruirmos o mito desse irracional receio, estamos também a afirmar-nos como seres capazes de enfrentar qualquer coisa.

Ana Amorim Dias


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24.11.13

Pressão

Pressão

Entrei no balcão debaixo de fogo cruzado. Sem qualquer tipo de exagero, estavam uns trinta homens a pedir coisas ao mesmo tempo. Atropelavam-se, aos gritos, sem respeito uns pelos outros nem por quem os estava a servir. Pareciam acreditar que, caso não fossem imediatamente atendidos, as portas do inferno se abririam debaixo das suas pernas, tragando-os para todo o sempre.
"Hummmm, isto está mesmo como eu gosto!" - pensei, esfregando as mãos de contentamento.
- Vai depressa buscar mais leite e copos de "cortado". - Pedi a quem substituí, ao apoderar-me da máquina de café.
De costas para a multidão enlouquecida por falta de cafeína, e enquanto ouvia os sobrepostos pedidos, respirei fundo e comecei.
Não sei quanto tempo demorou a odisseia, mas passei-a com um sorriso trocista colado ao rosto. "Credo! Atropelam-se sem respeito e são todos amigos, o que seria se não fossem!" ; "Bem, se estivesse na selva a ser atacada por leões, a coisa era bem pior" ; "Sim, meu caro, vai chamando por mim até ser a tua vez, antes disso nada feito".
Silenciosa, sorridente e firme, servi "Cortos", "cortados" e "cafés con leche" até se calarem todos. Quando a loucura passou, cedi de novo o lugar. Não gosto de grandes pressões nos meus territórios, nem sobre quem me é querido. Costumo optar por ser eu própria a aguentar o embate dessas mesmas pressões: a verdade é que me divirto imenso a testar até onde as aguento... enquanto vou treinando um pouco mais a resistência.

Ana Amorim Dias

Muita massa

"Isto é muita massa para uma batedeira tão pequena..." - pensei. Mas já não havia nada a fazer.

Acordei com vontade de fazer bolo de chocolate. Procurei a receita e comecei.
"Quatro ovos? Humm...é pouco! Vou fazer com oito. Não! E se fizesse com doze?" Decidi que, já que ia fazer, que fosse em grande! E acabei por usar dezasseis ovos e quadruplicar a receita.
O problema surgiu quando as pás da batedeira se começaram a afogar na massa. Não me incomodam nada os meus excessos, mas creio que, daqui para a frente, terei que começar a prever as situações em que enfrento massa a mais.
Por agora resta-me esperar por voluntários que comam os cinco bolos...

Ana Amorim Dias

Sentidos

Sentidos

Quando os miúdos entraram no carro ainda me perguntaram porque é que eu me estava a rir daquela maneira. Disfarcei o caso e acabei por me escapar à resposta: não me estava a apetecer nada ser alvo das gargalhadas deles.
O que aconteceu foi simples. Mas muito estranho. Enquanto fazia a manobra de estacionamento, cheirou-me levemente a queimado e, para apurar o olfato, baixei instintivamente a música.
"És mesmo parva! Achas que é por estares em silêncio que vais cheirar melhor?!? Doida...", brinquei comigo mesma.
Mas, claro, fiquei a pensar naquele instinto que, nesse momento, me pareceu tão descabido. No fundo, embora todos eles se completem, existe por vezes uma certa lógica em bloquear uns sentidos para intensificar os outros. Se fechar os olhos exponencia o sentir de uma carícia ou a perceção de certos sons, porque é que bloquear a audição não há-de melhorar o olfato? Além do mais, no que toca aos sentidos, o instinto costuma ser um credível e ancestral mestre.
Mas o que de mais interessante entendi foi que, ao bloquear o negativo sentido crítico, ativamos outros melhores, como os de aprendizagem e novos encantamentos.

Ana Amorim Dias

Discrepâncias

Discrepâncias

- Boa tarde. Estou a falar com algum familiar do Tomás Dias Rodrigues?-
Fiquei logo aflita com o início daquele telefonema. O que se teria passado?
- Sim, está a falar com a mãe dele.-
- Estou a ligar dos serviços centrais do registo civil. O processo de renovação do cartão de cidadão do seu filho veio para tratamento manual devido a uma discrepância detetada...-
Percebi logo o que estava a acontecer.
- Confirme-me por favor, minha senhora: ele tem doze anos e...-
- E mede um metro e oitenta e dois, sim! Posso-lhe confirmar isso agora, no mês que vem é que talvez já não possa!-

Numa loja, no outro dia:
- Desculpe, a senhora é portuguesa?- perguntou a senhora que me estava a atender.-
- Sim, claro. Porquê?-
- Como é tão alta...Eu, se pudesse, gostava de ser assim!-
- Infelizmente não é coisa que esteja nas nossas mãos, como o ser-se mais magro ou mais gordo...- respondi, para a consolar.

Compreendo tudo o que o Tomás sente porque, com a idade dele, também eu era demasiado alta e tinha que enfrentar constantemente as exclamações de admiração.
Ser alto é fantástico. Não é que dê um sentimento de superioridade, mas acredito que traz uma sensação de segurança e confiança que o oposto talvez não traga. Também tem inconvenientes porque há momentos em que, para nos integrarmos nos grupos, nos curvamos um bocado, já para não falar dos espaços apertados nos quais a única vontade que temos é a de enrolar as pernas à volta do pescoço e deixá-las lá penduradas.

Mas o que retirei deste episódio foi uma certa sensação de impotência perante a discrepância entre o ritmo de desenvolvimento das crias e a nossa preparação para tal facto: num momento estão de chupeta na boca, com o ar mais fofinho do mundo e, depois de piscarmos os olhos, metem-nos debaixo do braço e ensinam-nos coisas a falar já com voz grossa. Num momento somos o centro das suas vidas e, no seguinte, "apenas" o porto de abrigo onde se abastecem de tudo.
Se fico incomodada com estas discrepâncias? Nem por um segundo! O seu imparável desenvolvimento é como a altura: não está nas nossas mãos controlar. Mas a maneira como encaramos o facto e os acompanhamos durante todo o processo, é como ser-se mais magro ou mais gordo: depende da nossa vontade!

Ana Amorim Dias

De mestres a discípulos

De mestres a discípulos

- Ensinei-te bem!- exclamou ele perante uma atitude minha.
Sorri embevecida com o elogio. Creio que, nessa altura, não sabia ainda que a gratidão orgulhosa do discípulo pode ficar muito aquém do sentimento de realização do mestre.

É fácil perceber que todos podemos ser discípulos durante toda a nossa existência, desde que prestemos atenção. O que talvez muitos não se apercebam é que também somos mestres... do princípio ao fim da vida. Um recém-nascido, por exemplo, é um inconsciente mestre de amor; ensina, sem saber, à mãe, milhões de lições por segundo.

A cada momento somos (ou temos a obrigação de ser) mestres em relação a uns e discípulos de outros. É esta a mais natural lei do crescimento humano.

Na fotografia que acompanha esta crónica eu estava a olhar para o meu pai.Talvez em mais um momento de consciente aprendizagem. Ou então, como tantas vezes acontecia, estava eu a ser sua mestre. O que me importa reter da curta reflexão que esta lembrança me trouxe, é que todos nascemos mestres e que, na caminhada de construção da nossa mestria, nunca nos devemos esquecer de ser, também, discípulos.

Ana Amorim Dias

O meu rolo na parede

O meu rolo na parede

Se a crónica de hoje tiver alguma "moral da história", começarei a crer que não há impossíveis. Então vamos lá!

Eram quase duas da tarde quando dei por mim a inventar letras de músicas pimba e a proferir piropos às paredes. Como é que cheguei a isto?
...Tudo começou quatro horas antes...

Num minuto pensava que trabalharia toda a manhã à secretária e, no seguinte, vi-me com uma trincha na mão a pintar acabamentos numa divisão da casa. Segui um impulso estranho e avancei. Mas depressa constatei que havia muito mais para pintar. Troquei de roupa, fui buscar o escadote e pensei: "Vou pintar isto tudo!"
É tramado pensar isto. É muito cansativo medir forças com paredes de reboco irregular e com a nossa própria teimosia. Mas aproveitei o tempo para refletir. Sem pausas. Sem medos. Era só eu, a tinta e as paredes (ok,ok, e o rolo, os pincéis, o escadote, o pano para limpar as borradas, blábláblá).
Um dos debates mais interessantes que tive comigo foi o do perfecionismo versus o "bora lá despachar". Não é caso para ter carteira profissional, mas pinto paredes desde miúda e posso dizer que sei o que faço. Só que ontem, contra os meus próprios instintos de demorado esmero, obriguei-me a um ritmo célere e, simultaneamente, a um trabalho que não envergonhasse o melhor pintor de construção civil do mundo (também me perguntei quem será ele e o porquê de não aparecer em entrevistas nos jornais e na tv).
À medida que as paredes iam mudando de cor, fui constatando que a coisa até nem estava a correr assim tão mal, apesar de ter ficado com tinta desde a sola das botas até à sobrancelha direita (literalmente).
Depressa e bem não há quem? Qual quê! Com um empenho concentrado e motivado, tudo pode acontecer!
Mas vi que estava a abusar de mim mesma quando, já quase no fim, comecei a "descompensar" e a cantar alto músicas pimba inventadas no momento sobre a vida dos pintores (Óh Sr. Quim, se precisar de letras novas é só dizer!). Alternava as ditas cantigas com expressões como: "Anda cá parede, deixa-me esfregar-te o meu rolo"... Perante o abanar de cabeças, condescendentes, de outros trabalhadores que esporadicamente passavam por mim, entendi que estava na hora de pousar o meu rolo e ir almoçar.
Vida de pintor não é fácil, mas isto é como tudo: há que passar por elas para saber dar valor.

Ana Amorim Dias

Uma vida mais feliz

Uma vida mais feliz

No outro dia disse, em público, que, se me perguntassem há uns anos o que é que eu queria da vida, teria que pensar bastante e, provavelmente, daria uma extensa e pouco clara resposta. Agora é simples: quero passar o máximo de tempo possível a fazer as coisas que mais gosto.
Fazer-se o que se gosta dá uma trabalheira incrível. Desde logo porque, antes de tudo, é necessário perceber o que é que nos faz brilhar. Depois porque, a maior parte das vezes, os inícios nunca são fáceis e compensadores.
Para viver (também) é preciso dinheiro. E caçá-lo implica tempo: esse tempo que todos deveríamos usar a fazer-produzir o que mais prazer nos dá.

Sinto uma enorme alegria sempre que me deparo com quem exerce o seu ofício com prazer: é como se me estivesse a ser provado que os eixos da humanidade se estão a alinhar bem. Há, em quem ama aquilo que faz, uma certa dose de brilhantismo que supera as competências e o profissionalismo. Há, no trabalho dessas pessoas, uma dose de instinto amoroso que inspira e toca os demais.
Creio que quem está neste encantador enquadramento tem também uma responsabilidade acrescida: a de demonstrar a quem anda à deriva que é possível viver assim, maravilhado com cada novo dia de trabalho, mas que não foi o acaso que se encarregou de tudo... É que passar o máximo de tempo possível a fazer o que nos faz feliz, implica esforço, noção de prioridades, perseverança e uma força de vontade que, às vezes, vai para além do compreensível.
Para chegarmos a passar a vida assim é preciso fazer concessões, saber trabalhar para "aquecer" e saber (às vezes durante demasiado tempo) viver com muito pouco dinheiro. Mas, por outro lado, também não há dinheiro que pague uma vida mais feliz.

Ana Amorim Dias


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17.11.13

Amar e deixar viver

Amar e deixar viver

- Sabes onde estou??-
- Sei. Algures em Itália, numa esplanada, a beber uma cerveja com os teus amigos...-
- Vá lá! Tenta! Se acertares, levo-te uma prenda!-
Fiquei realmente feliz com todo aquele entusiasmo.
- Desisto, diz-me tu.-
- Estamos na praça de São Marcos, em Veneza!
Os amigos, ao fundo, confirmavam o facto.
- Ohhhh pááá... Que bom!!!- exclamei, com um sorriso rasgado.

No dia anterior, depois de aterrar em Bolonha, o Ricardo ligou-me com uma vozinha triste:
- Está a chover... Tenho saudades tuas. É tão bom viajar contigo... És tão divertida... é diferente.
- Deixa de ser parvo! Temos o resto da vida para conhecer o Mundo. Agora vai divertir-te e aproveitar a companhia dos teus amigos, palerma!-

Amar é deixar viver. É potenciar as experiências do outro mesmo quando não estamos nelas. É ficar feliz com o enriquecimento do outro como se acontecesse connosco.
Poderia dizer também que amar bem é deixar partir, mas estaria a falhar uma das premissas mais básicas: ninguém é dono de ninguém para se arrogar o direito de permitir ou proibir o que quer que seja.
Amar é deixar viver. E é proporcionar um apoio feliz a cada nova partida. Só assim o nosso par entende todo o nosso valor e regressa não só mais rico e belo ... como a morrer de saudades.

Ana Amorim Dias

Sem facebook

Sem facebook

No fim da tertúlia sobre redes sociais, houve um senhor que rematou com uma pergunta incisiva:
- E quem seria, hoje, a Ana Amorim Dias sem o Facebook?-
Como já não havia tempo (e eu queria pensar bem no assunto), garanti-lhe que a resposta chegaria na crónica de hoje.

Quando, há quatro anos, comecei a escrever, percebi rapidamente que, nos meses em que não estava a escrever nenhum livro, sentia um vazio profundo nos meus dias. Nos primeiros meses de 2011 entrei para o facebook e, sem ter uma ideia precisa do que iria acontecer, habituei-me a escrever e publicar uma crónica quase todos os dias...

Raras são as coisas que não têm alguma sombra a acompanhar-lhes a luz. Redes sociais incluídas. Mas, da mesma maneira que manejar um carro ou um fogão implica riscos, também os novos veículos de comunicação podem ser perigosos, a menos que tenhamos maturidade e inteligência para os converter apenas em nossos aliados.
Escrever faz-me feliz; usar constantemente a criatividade reconecta-me à vida; aceitar o desafio de escrever sempre, e sobre tudo, obriga-me a uma atenção, curiosidade e coragem, que me conferem um maior entendimento de tudo. Mas é o retorno que os leitores me dão que tem feito de mim melhor pessoa; que me tem humanizado de uma forma muito prática e consistente. Não sei se inspiro, se dou o exemplo ou se sou formadora de opinião. Apenas sei que vocês, que aí estão desse lado, me transmitem talvez mais do que eu vos dou a vocês.
Agora já lhe posso responder, Jorge, que a Ana Amorim Dias, sem o facebook, talvez fosse apenas uma Ana Dias mais incompleta, mais imatura e menos preocupada em ser uma pessoa melhor.

Ana Amorim Dias

Princesa atómica

"Princesa atómica"

Arranjei finalmente meia hora para "pensar" no que vou dizer no debate de logo à tarde (a importância das redes sociais sob a perspetiva de uma escritora) e na palestra de amanhã (testemunho de uma empreendedora enquadrado na ousadia e na criatividade).
No caso da palestra de amanhã à tarde, no Teatro Municipal de Portimão, tenho que me render ao óbvio: precisaria de umas dez horas para conseguir fazer justiça ao tema, o que significa que, para o espartilhar em menos de uma hora, terei que escolher os tópicos mais importantes...

Gosto de me preparar bem para as coisas e tenho uma certa inclinação para a busca do perfecionismo, o que sempre me obrigou à rigorosa preparação de todas as intervenções deste tipo. Mas, desta vez, algo me tem estado a travar.

Passei pelo facebook ainda há minutos e li dois comentários à crónica de ontem. Espero que não se importe, querida Liceria Lobo, que os transcreva agora, aqui: "Bom dia (PRINCESA, atómica)! Tenho quase a certeza que faz tudo certo para ser feliz... Não imagina como me dão força para acreditar, as palavras com que nos presenteia e falam de si :)!" ; "Fiquei na dúvida se devia apagar o (Princesa atómica) mas saiu-me tão natural como se estivesse a falar com os meus filhos ou netos... Espero que não se ofenda... Foi a especial ternura que sinto pela sua escrita!"

Li isto e derreti. Ser chamada de "princesa atómica", de forma espontânea e, ainda por cima, como se faz a filhos ou netos, é uma espécie de três-em-um divinal. E o mais maravilhoso é que, com isto, me chegou também a resposta ao dilema que tinha em mãos: não vou prepara-me racional e exaustivamente para a palestra de amanhã. A vida e a atitude que optei ter perante ela têm-me preparado o suficiente para dar um testemunho absolutamente genuíno e espontâneo que, acredito, terá um impacto muito mais produtivo no que considero ser a minha missão de "princesa atómica": inspirar!

Obrigada, Liceria, pela resposta que, tão carinhosamente, me trouxe!

Ana Amorim Dias

Despertares

Despertares

Acordei a refilar.
- Mas o que é que tu tens?- perguntou o Ricardo, apesar de estar habituado a certos humores matutinos.
- Quero muito ouvir duas músicas, mas não as consigo encontrar porque não me lembro nem dos nomes das canções nem dos nomes dos cantores!!-
Assim que terminei a frase, como que por magia, fez-se luz na minha cabeça e gritei bem alto: "Le Vent m'a dit"!!
Ele deu o habitual suspiro (resignado à excentricidade?) e eu fiz soar a cantiga.

Meia hora depois, ao entrar no café, não quis acreditar no que estava a acontecer... a outra música que eu desejava ouvir, "Sex on Fire" dos Kings of Leon, estava a soar na rádio. Fiquei com um sorriso tão estupidamente rasgado que me devem ter tomado por louca.

Quando cheguei, há pouco, a casa, tinha uma encomenda de um amigo virtual (Obrigada, Luís Quinta, pela encantadora obra!): um livro de fotografia com uma dedicatória deliciosa. E, logo a seguir, atendi um telefonema: - Olá querida- disse-me aquela voz doce que reconheci de imediato. Fiquei a pensar quantas pessoas serão assim tratadas pela assistente do dentista, a confirmar a consulta.

Enquanto guio, lembro-me da sinceridade encantada com que o João ontem me disse "Tu és tão bonita, mãe!"; lembro-me também da magnetizada admiração com que o Tomás me olhou, enquanto eu cantava completamente feliz, a letra inteira de "Lá vem o alemão" dos Mamonas Assassinas (música que, até segunda à tarde, lhe era desconhecida)...

Os pequenos, mas colossais, milagres sucedem-se, e deixam-me a pensar na plena consciência matinal que nos traz à memória coisas que queríamos lembrar e não conseguíamos. Será que existe nisso algum exemplo escondido de que podemos praticar diariamente um "acordar" mais consciente para a vida e para a atitude que devemos ter perante ela?
Olhando para tudo o que me acontece, só me resta acreditar que devo andar a fazer bem as coisas: todos os dias acordo com a consciência fresquinha e pronta... e todos os dias desperto um pouco mais para a maneira mais eficiente de encarar a vida. Deve ser por isso que ela me traz todas as "melodias" que desejo.

Ana Amorim Dias

Leitinhos

Leitinhos

- Mamãhã...-
- Diz Tom.-
- Tens que comprar mais leitinhos, já estão mesmo no fim!-
- Ai isso é que não estão! Olha aqui: um pacote inteiro!-
- Eu sei que esses estão aí, mãe. Mas esses são os de reserva... até comprares mais, gastam-se!

A minha avó tinha uma expressão engraçada, que usava quando via alguém a comer com apetite voraz: "Assim mais vale manter um burro a pão-de-ló!" Tenho a leve impressão que o diria se conhecesse os meus filhos. Felizmente!
As pessoas que não gostam de comer causam-me um certo transtorno. Respeito quem não gosta de comidas quase nenhumas. Aceito quem apenas ingere o estritamente necessário para se manter em pé. Mas o certo é que não me consigo sentir plenamente à vontade com pessoas assim. Diz-se que quem não presta para comer, não serve para trabalhar. Nunca confirmei se isto é ou não verdade porque normalmente lido com "bons garfos". Aliás, receber em minha casa (sentido lato, entenda-se: de casa e quinta de eventos) "passarinhos" que apenas debicam, com ar enjoado, as iguarias que apresento, deixa-me com uma irritação apenas explicável por já ter compreendido que sou uma "alimentadora" nata. Gosto de empanturrar quem me rodeia. Tenho um prazer enorme em alimentar, de comida e vida, todos os que, de forma mais permanente ou mais passageira, fazem parte dos meus dias. Fico feliz ao ver os outros comer e, se o fazem com prazer, ainda mais realizada me sinto.
A leitura destes factos é, no fundo, muito simples: o profundo amor que sinto por (quase) todas as pessoas, revela-se nesta necessidade de lhes colocar comida na boca e lições no coração. Posso não saber cozinhar como um Chefe gourmet e posso não ter muito para dar, mas hei-de abraçar sempre este impulso de nutrir corpos e almas... talvez na constante esperança de que não só se alimentem como saboreiem também.
E desengane-se por favor quem pense que isto é muito altruísta pois tenho a certeza segura de que, ao alimentar os outros, me alimento ainda mais a mim!

Agora vou desenhar um asterisco na mão para não me esquecer de comprar mais leitinhos!

Ana Amorim Dias

Somewhere we belong

Somewhere we belong

O ritual do despertador com quinze minutos de avanço tornou-se uma instituição. Só assim é possível chamar a filharada toda para a grande cama e ficar por ali, uns momentos, a distribuir mimos pelos três como se não houvesse amanhã.
Hoje decidi que acordariam ainda com mais loucura: dei um salto da cama, pus a tocar o "wake me up" dos Avicii, e comecei a dançar pelo quarto.

Inventamo-nos todos os dias. Ou pelo menos temos a possibilidade (e obrigação?) de o fazer. A todo o momento temos a escolha nas mãos: sentirmo-nos felizes pode passar por uma decisão consciente.

"Não sei onde acabará esta viagem, mas sei onde começámos-la" (...)
"A vida passará por mim se eu não abrir os olhos" (...)
"Estive todo este tempo a encontrar-me...Sem saber que estava perdido" (...)

Eu ia dançando, sentindo a música, traduzindo e apreciando o poder daquelas palavras. Enquanto isso, os miúdos iam regressando à consciência, com um sorriso nos lábios.

Quase no fim da música, uma personagem diz a outra:
- Acorda e faz a mala!-
- Para onde vamos?-
- Para onde pertencemos...-

A música foi a repetir-se todo o caminho até às escolas. Há quem continue sem saber onde pertence. Mas eu tenho sorte: sei que pertenço àquela cama de mimos...e à missão de ir lembrando, todas as manhãs, que nos está a ser dada uma nova hipótese de acordar!

Ana Amorim Dias

A balada de Hill Farm

A balada de Hill Farm

Se me perguntassem qual era a série policial da minha vida, só poderia responder: a "Balada de Hill Street". Nenhuma outra chegou a ter o mesmo sabor, som e valor. Nenhuma outra marcará tanto.
Foi aliás esta série que me ambientou muito depressa a Lisboa quando, com 18 anos fresquinhos, fui para lá viver sozinha. As sirenes, que em Faro nunca se ouviam, traziam-me um emocionante travo a ação que me encantou desde o início.
Quando finalmente, alguns anos depois, aterrei pela primeira vez no JFK e me dirigi para Manhattan, o som da balada acompanhou-me por dentro...

Creio que foi há duas noites que um helicóptero voou mesmo por cima da Quinta do Monte. Eu estava a deitar-me quando o aparelho rasou tão perto que toda a casa estremeceu.
- Mãe? Ouviste isto?-
O Tomás apareceu, alarmado.
- Sim, era um helicóptero. Volta a dormir, está tudo bem.-

Na Quinta do Monte ouvem-se os animais e a brisa a soprar nas árvores, ouvem-se carros a chegar e partir, ouvem-se as vozes felizes, a música, os aspersores a regar a relva e camião do lixo às segundas e quintas à noite. O que não é costume escutar são sirenes nem aeronaves rasantes.

A vida também é som. A sua compreensão e nuances também são feitas pelo sentido da audição. E há pequenos ruídos que nos transportam não só ao passado como ao entendimento do que levamos dentro, guardado bem cá no fundo. Amo os sons do meu dia a dia, mas não posso negar que os sons da ação me despertam os sentidos e me devolvem a consciência deste amor pela aventura.

Termino esta crónica a sorrir com a coincidência. HILL, em português, é colina, mas também pode ser Monte. Escrevo ao som das baladas: não de Hill Street, mas de Hill Farm!

Ana Amorim Dias




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Unhas de gel

Unhas de gel

Tinha decido debater comigo mesma a razão pela qual nunca fiz unhas de gel. Ter um gosto tendencialmente monocromático e não apreciar perder o meu tempo com "mariquices", são justificações menores. O verdadeiro motivo para nunca ter cedido a esta crescente tendência é outro: não gosto de usar nada que não possa controlar e tirar eu mesma!
Não digo que não as haja bonitas, porque realmente há! Mas o problema surge quando os dias passam e a imaculada obra inicial dá lugar a um desmazelo ao qual a pessoa não sabe acudir por si só.

Vi na internet as notícias sobre o furacão Haiyan, um dos mais fortes alguma vez registados. Horrorizada com os números de vítimas e as imagens da calamidade que se está a viver nas Filipinas, perguntei-me por que raios haveria eu de, logo hoje, escrever sobre algo tão fútil como unhas de gel.

Neste momento o sol brilha. Pelo menos onde eu estou. Oiço as vozes despreocupadas dos comensais que hoje vieram fazer a sua festa aqui à quinta. Penso no desespero e traumas de quem, lá longe, terá que aprender a viver com a devastante experiência e suas consequentes perdas. De que me serviria não escrever sobre as fantásticas unhas a que nunca me rendi só porque não as sei corrigir e controlar? A verdade é que, perante forças como a natureza ou o destino, nada podemos. O que podemos sempre tentar controlar é a nossa vontade de não nos tornarmos demasiado insensíveis a todos os lutos do mundo. O que podemos tentar controlar é a nossa tendência de dar problemáticas importâncias a coisas que não importância rigorosamente nenhuma!

Se calhar um dia destes ainda experimento as tais unhas de gel (de uma só cor e sem desenhitos!): é que a decoração das unhas é algo com uma importância tão reduzida que nem vale a pena tentar controlar.

Ana Amorim Dias

O homem que não quer nada

O homem que não quer nada...

Nos raros dias em que não tenho algo que me inspire a crónica, vou ao bloco de notas do telemóvel e espreito os pequenos apontamentos que vou registando sempre que algo me faz pensar.

Nota de 3 de Setembro:
- Quanto é que vamos ganhar por esta merda?- disse um.
Lembro-me que anotei as falas de uma cena de um filme, na qual dois bandidos contratados iam fazer alguma maldade.
- Um homem que não quer nada é invencível!- respondeu o outro.

Normalmente registo o que não entendo à primeira; ou o que pode ser alvo de várias interpretações; ou ser base de analogias; ou me faz rir, emocionar... Bem, vocês estão a perceber a ideia.
Já tinha lido o apontamento das falas deste filme várias vezes, mas a sua hora não tinha chegado... Até ontem.

- Mãe, o que é isto?-
O João estava entretido numa das suas "expedições de armário" e apareceu-me com vários desenhos e pinturas na mão.
- Quem é que fez este cavalo mãe?-
Abri um sorriso.
- Eu.-
- E dás-me? Para pôr no meu quarto?!?-
- Claro, amor.-

Desenhei o "cavalo espantado" quando tinha onze anos, há vinte e oito, portanto. E ainda consigo lembrar-me, com todo o pormenor, do que senti ao fazê-lo: exatamente o mesmo explosivo prazer que se produz em mim durante cada processo criativo. Quando se precisa deste género de alimento, passem os anos que passem, nada muda!

Nunca me passou pela cabeça quanto é que vou receber por um livro, uma crónica, um poema. Sempre que crio, estou sintonizada no mais absoluto prazer e não em projeções de lucros.
É claro que quero sucesso, mentiria se não o admitisse. Mas sucesso sem consistência, arte e prazer, nada mais é do que uma bola de sabão.
Ocorre-me, à semelhança do que disse o enigmático bandido do filme, que se um homem que não quer nada é invencível, aquele que apenas quer o prazer criativo talvez consiga ser imortal.

Ana Amorim Dias

Muitos milhares de manhãs

Muitos milhares de manhãs

Tentei conter-me e não comentar as observações infelizes da escritora cor de rosa. Criticar e julgar não são as minhas actividades favoritas; gosto de dar o benefício da dúvida, reclamando que, se calhar, se explicaram mal ou houve alguma falha no entendimento. Perante o "tareão" que a colega estava a levar, até senti vontade de a defender... mas primeiro quis ver a tal entrevista.
Realmente a culpa do estado da nação não pertence só aos cabecitas (ia escrever cabecilhas mas nem vale a pena) de agora. Vem de há muitos, muitos anos, e reparte-se por tanta gente que, a serem responsabilizados, teríamos que criar muitos mais "postos de reclusos VIP". Mas um escritor (UM ESCRITOR!!!) acreditar na falta de civismo e inteligência de quem reclama os seus direitos??? A incredulidade invadiu-me! A questão ultrapassa classes, a meu ver. Mesmo quem é privilegiado, por sorte ou trabalho árduo, e continua a ter alguma qualidade de vida, não pode fechar os olhos, inerte, a tanto desgoverno e injustiça! Pelo contrário, é quem tem mais voz e alicerces que se deve insurgir e apoiar quem se insurge.
Estou com todos os que, sacrificando-se um pouco mais, aderiram hoje à greve. Estou com todos os que, sem se poderem sacrificar mais, optaram por não a fazer. Mas não posso defender quem, do alto do seu conforto, se "borrifa" para as pessoas! Sobretudo se é escritor(a); sobretudo se pertence àquele conjunto de seres para quem as PESSOAS devem ser o princípio, o meio e o fim de toda a sua existência.

Dou-me conta que, em breve, chegarei ao milhar de crónicas. Tenho-as escrito diariamente ao longo dos últimos anos, quase sempre de manhã. E hoje acordei a lembrar-me da Xerazade, que contava as suas histórias à noite, todas as noites, para salvar as suas compatriotas.
Quantas manhãs terei eu? Quantas mais crónicas escreverei? Alguma vez me faltará voz à pluma? E que efeito têm elas, essas palavras sentidas que a cada amanhecer me dão um renovado entendimento de tudo? Talvez não salvem a vida a ninguém, como acontecia com as histórias da Xerazade... Ou talvez ajudem muitas pessoas a ser um pouco mais felizes, não sei...
As pessoas e a vida, são o barro dos escritores, mas apenas as pessoas são o derradeiro destino das obras que deles nascem. Como pode um escritor não saber ser tolerante, compreensivo e amante de cada Ser? Não entendo. Ainda. Porque, pelas minhas contas, tenho pela frente muitos milhares de manhãs!

Ana Amorim Dias

Uma noite no deserto

Uma noite no deserto

Ainda há pouco, quando estava a pôr queijo nos croissants matinais das minhas tropas, vieram-me à memória os dois triângulos de queijo creme que comi há uma semana, mais ou menos à mesma hora...

Eram seis e dezassete quando o Moha chamou por nós.
- Se querem ver o pôr do sol, têm que se despachar!-
Eu tinha caído no mais profundo dos sonos, depois de todas as emoções do dia anterior. A resistência de ambientação àquele entorno agreste e à humilde tenda que nos acolheu, depressa cedeu lugar a uma forte lição de vida que recebi com gargalhadas.
- Ainda bem, ainda bem, ainda bem!!- dizia o Ricardo, sem parar, ao ver onde iríamos passar a nossa noite no deserto.
- Mas "ainda bem" o quê?-
- Ainda bem que foste tu a marcar isto... porque se tivesse sido eu já tinha a cabeça desfeita com tantas reclamações.-
- Eu já te expliquei que mudei, Ricardo! Mudei muito!!- disse, a rir.

A noite não foi fácil. Pernoitei vestida, imóvel, a ouvir as tenebrosas rajadas de um impressionante vento que parecia querer levar tudo pelos ares. "Depois disto qualquer hotel vai ser bom!", comecei por pensar. E depois o pensamento mudou, satisfeito por ter um abrigo a proteger-me dos elementos: "...estou bem e vou ficar ainda melhor, mais forte e preparada para tudo...", ocorreu-me antes de cair no habitual sono de defunta.

Na noite anterior, enquanto jantávamos a deliciosa tagine que o Ricardo ajudou o Moha a preparar, conversámos os três muito tempo.
- Vou contar-vos algo incrível.- disse o Moha - Os japoneses ofereceram-se para fazer um túnel a atravessar o Alto Atlas...com a condição de ficarem com tudo o que encontrassem no subsolo!-
Fi-lo repetir aquilo para ver se tinha entendido bem.
- E Marrocos aceitou?- quis eu saber.
- Não.-
Não sei se é verdade ou não, o que o meu amigo berbere nessa noite nos contou, mas fiquei impressionada.

Enquanto distribuía os croissants pelas "tropas", antes de sairmos de casa esta manhã, dei com o sentido daquilo que o queijo me trouxe à memória: quando estamos dispostos a escavar túneis na dura rocha da nossa resistência ao desconforto, descobrimos os minérios interiores que nos compõem. Tenho agora a certeza que foi aquela ventosa noite no deserto que me revelou alguns dos diamantes que trago dentro: a capacidade de aprender com tudo; neste caso com a humildade do chão de uma tenda que me protegeu de uma tempestade de areia. Há coisas que, parecendo nada valer, são de um impressionante valor!

Ana Amorim Dias

Ps- Quando forem para os lados do deserto de Merzouga, não se esqueçam de passar pelo site do Moha : www.nirvanacameltreck.com
e marcar uma noite no deserto... pode muito bem suceder que também descubram preciosos minérios em vós!

Pontualidade e paisagem

Pontualidade e paisagem

O treino do Tomás começava só às seis, mas às cinco e pouco já ele estava a dar-me pressa.
- Não podes ir mais depressa?-
- Temos mais de meia hora para fazer três quilómetros. Estamos a ir de carro: importas-te de não ser tão histérico com as horas?-

Sei que em parte (ou será totalmente?) a culpa é minha! Tanto me empenhei em incutir-lhe a pontualidade que o pobre rapaz agora sofre com o todo o excesso que integrou em si.

Parei o carro junto ao ginásio e vi-lhe um esgar de aflição.
- Oh pááá... Esqueci-me da mochila do treino na escola, mãe!-
- Sem stress, baby. Vamos buscar.-
Fizemos o caminho de volta, entre Vila Real de Santo António e Castro Marim, para depois regressar. E ele, muito atrapalhado com o transtorno que pensava estar a causar-me, ia alternando as desculpas com resmungos contra si próprio.
- Importas-te de parar, filho? Já te disse que não há problema: vamos buscar a mochila, regressamos a tempo e ainda me deste um presente!-
- Hã? Um presente?-
- Olha para a esquerda, amor...-

Adoro passar nesse bocadinho de estrada, especialmente naquele sentido e à hora do pôr do sol. Há qualquer coisa inexplicável na felicidade que sinto ao percorrer aquela mágica distância em que o sol se reflecte na água, emoldurada por colinas ao fundo. Desisti de tentar justificar o fenómeno, optando apenas por subir ligeiramente o volume da música e me deixar levar pelo estado nirvânico.

No regresso estendi-lhe o iPhone.
- Tira fotografias, Tom, para a crónica de amanhã.-
E ele tirou, talvez rendido também ao misticismo do sol a esconder-se no sapal.

Tenho que arranjar maneira de lhe arrancar o sofrimento do excesso de pontualidade. Ser pontual é uma riqueza pessoal, desde que não nos deixemos tomar pela sua escravidão. Há muitas situações em que uns minutos de atraso são mais que justificáveis pela alegria sentida ao observar a paisagem...

Ana Amorim Dias