(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

14.11.12

A “cuz”



   Se algum dia me virem por aí e eu estiver parada na rua, com a cabeça enfiada na mala,  à procura das chaves, isso só pode estar a acontecer por duas razões: ou estou mesmo a procurar as chaves ou estou a disfarçar o caso enquanto oiço alguma conversa inspiradora.
   Ontem de manhã aconteceu a segunda versão.
- …  ela já tinha noventa e seis anos mas até nunca foi de grandes doenças… - Dizia uma senhora de idade a outra.
- Pobrezinha. Vá lá que teve quem olhasse por ela, nós se calhar não teremos essa sorte… -
- É a vida… - Tornou a primeira.
   E, de repente, a vozinha infantil do pirralho que as acompanhava, soou: - A vida é uma “cuz”! – Exclamou convicto.
Mas a coisa não se ficou por ali porque as senhoras foram prontas no apoio da afirmação.
- Pois, meu querido, e todos a carregamos desde que nascemos! –
- E ás vezes é bem pesada! – secundou a outra.
   Nesse momento afastei-me. Já sabia que me tinham traumatizado por um bom tempo! Passei o resto do dia a repedir “uma cuz… a vida é uma cuz!” Não sei se fiquei mais escandalizada por ouvir um miúdo,  que nem três anos devia ter,  a proferir tal obscenidade  ou por o terem apoiado com tão veemente convicção.   Quem é que, no seu juízo perfeito, incute tal falácia num ser que devia ainda viver no paraíso sagrado da existência?  Como é que pode corromper assim uma infância?
De tanto repetir que a vida é uma “cuz”, percebi que teria de escrever sobre o tema, para o exorcizar de mim.
   A vida é mesmo uma “cuz” ou somos nós que assim a vemos? Todos temos que carregar a tal pesada “cuz” ou podemos escolher fazer com que seja de esferovite ou transportá-la num atrelado?  Se Jesus teve que enfrentar a “cuz” por nós, porque raios temos que a continuar a carregar?
   O assunto é delicado, mas penso que se resolve com um golpe de perspetiva. Se olharmos para as dificuldades e dores das nossas vidas como uma cruz que estamos condenados a carregar, é nisso mesmo que se transformam. Mas se os virmos como uma fonte de oportunidades, fortalecimentos,  aprendizagens e aperfeiçoamentos, as tais cruzes nada mais são que o complemento vitamínico da nossa sabedoria.
   Uma coisa é certa ( e isto percebi-o  esta manhã enquanto, com canções de rimas inventadas,  fiz os meus filhos rirem à gargalhada todo o caminho para a escola)  jamais a uma criança deve ser dito que a vida é uma “cuz”!
Ana Amorim Dias