(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

27.10.13

Prazer e arte

Prazer e arte

Mandei-o ler o texto todo e responder às questões. Nada melhor do que a prática para nos preparar para os testes.
- Mas mãe... São sete páginas!- respondeu.
- Só podes estar a gozar comigo, Tomás! Isso não é nada! Vá, ataca!-
Passados alguns minutos, e vendo-o a patinar em seco, decidi dar uma ajuda.
- Vá lá... Aproveita que eu vou ler isto de uma forma interessante e divertida. Mas presta toda a atenção para depois responderes às perguntas de interpretação!-
Animou-se um pouco e eu comecei.
Um parágrafo. Dois. Três. Vi logo quem era o responsável pelos bocejos dos dois: Alexandre Herculano em "Lendas e narrativas". Optei por disfarçar o caso e continuar a tentar tornar a leitura interessante, mas regressei à minha adolescência e à entediante tortura que foi para mim, naqueles anos, ler "Viagens na minha terra" do Almeida Garrett. É que dos cantos de "Os Lusíadas" até gostei, assim como do "Amor de Perdição" ou de "Os Maias". Mas a obra "Viagens na minha terra" traumatizou-me ao ponto de quase colocar em causa a minha paixão pela leitura.

A sério: não deviam fazer isto aos miúdos! Quer dizer, revelar-lhes, num afloramento ligeiro, os grandes mestres da literatura pura e dura, é uma coisa; submetê-los a intensas terapias de aversão à leitura, é outra. Ainda mais quando temos contemporâneos de tão boa qualidade literária e capazes de despertar muito mais emoção e interesse!

Jamais poderia criticar o valor literário, intelectual e artístico dos grandes mestres, mas nada me impede de manifestar as minhas impressões enquanto consumidora dos mesmos... Sou da opinião que os verdadeiros criadores devem ser como os mais perfeitos amantes: tão atentos ao seu prazer como empenhados no prazer alheio. A erudição, a perfeição e a genialidade têm um elevado valor. Mas a arte, desculpem-me o atrevimento, é mais que isso; é conseguir tocar o outro dando-lhe o mais intenso prazer...em vez de o fazer bocejar!

Ana Amorim Dias

Ironias

Ironias

Procurei por todos os sítios possíveis mas, como é óbvio, não encontrei nenhum. É o que dá quando temos aversão a algo. Mas chovia a cântaros e, farta de levar com chuva no lombo a semana inteira, decidi render-me momentaneamente ao óbvio.
Conduzi debaixo de um dilúvio até Castro Marim e, como tinha oito minutos até ao toque de saída do Tomás, parei à porta da loja e comprei um guarda-chuva. Cinco minutos depois a natureza mostrou-me a língua: o céu limpou e um sol radioso iluminou uma atmosfera límpida e vibrante.

Às vezes dou por mim a rir das ironias da vida. Por exemplo: como é que uma pessoa que tanto ama viajar, detesta tão intensamente fazer malas? Ou porque é que, tanto amando as pessoas em geral, tenho uma necessidade tão gritante de, constantemente, estar a sós?
Serão as ironias da vida, lições que temos de decifrar? Servirão realmente elas para nos ensinar alguma coisa, ou existirão simplesmente para zombar das nossas vontades?
Quase aposto que as ironias, como tudo o resto, existem para nos fazer aprender algo mais. O que ainda continuo a tentar decifrar é o que é que cada uma em si encerra para me fazer evoluir.
Entretanto, enquanto vou pensando no caso, terei que ir fazer a mala!
...Ou então fica para depois: é que não me apetece mesmo nada e ainda tenho tempo!

Ana Amorim Dias

Janela e espelho

Janela e espelho

A certa altura quase deixei de a ouvir. Quer dizer, estava a escutá-la com a consciência e o cérebro, mas a minha alma, embalada pelo Billy Paul a cantar "Me and ms. Jones", abraçava aquela partilha com uma tal emoção que me confirmou mais um dos meus amores eternos.
Não saíamos juntas e sozinhas há muitos meses, mas recuperámos totalmente o tempo perdido com as mesmas infindáveis horas de ininterrupta conversa e sentidas gargalhadas que sempre nos recordam as razões desta paixão.

- E isso foi a melhor coisa que te aconteceu na vida...- disse ela quando a deixei em casa.
Começar a escrever foi tudo isso e mais, realmente.
- A "melhor coisa que já me aconteceu na vida" foram tantas coisas, em tantos momentos diferentes... E uma delas foste tu!- respondi-lhe com toda a verdade.

Voltei para casa a ouvir a "Canção de mim mesmo" dos Black Mamba. "...sou janela e espelho por onde te vês...sou o sol que depois da chuva, brilha outra vez..."
A amizade é isto, pensei, completamente feliz.

Ana Amorim Dias

Fecundar emoções

Fecundar as emoções

- Mãe, põe mais alto...-
Fiquei toda contente. Normalmente sou eu a querer a música aos gritos no carro e são eles a reclamar.
"Mas espera, Ana... O João está a gostar assim tanto da SINFONI DEO dos Era?!..."

Isto aconteceu depois de o ir buscar à porta da escola enquanto caía uma chuvita convicta. Durante os sete minutos que durou a espera, tive vários simpáticos convites para partilhar o abrigo de sombrinhas alheias e tive até direito a uma cara de espanto/incompreensão com uma pitada de piedade (não foi Luísa? :) ).
Acontece que gosto de andar à chuva. E até de estar parada sob ela. Acho uma delícia entregar-me plenamente aos elementos, desde que com alguma segurança e conforto, claro. Até entendo que algumas pessoas temam a chuva como quem teme uma rega de ácido sulfúrico misturada com essência de doninha e veneno de cascavel mas, se a temperatura está amena e nos podemos secar em breve, porque não havemos de nos deixar levar pelo momento?
"Quem anda à chuva, molha-se!" diz a popular sabedoria, esquecendo que a chuva é só água. Está bem, molha, e depois? É tão bom estar molhado (podem interpretar como quiserem que a ideia também é essa).
Regressem lá da gargalhada que isto ainda vai a meio. "Quem anda à chuva, molha-se" faz-me sempre lembrar uma receita de anti-vida: "Não arrisques, não te mexas, olha que vai dar sarilho!", e depois?? Não estamos aqui para experimentar, sentir, errar e aprender com cada molha? Existirá algo mais fecundo que estas metafóricas chuvadas que nos fazem brotar as sementinhas da alma?

- Mãe, põe outra vez a musica de ontem...- Pediu o João ainda agora, enquanto o levava para a escola.
Fiz-lhe a vontade e recordei a sensação que tive ao ouvi-la, há uns anos, depois de uma semana em que poderia ter morrido de três maneiras diferentes. Depois de experimentar um abalo sísmico, uma explosão na cozinha e a queda do teto de um centro comercial mesmo por cima de mim, ouvi esta música e pensei: "Caneco, vou viver tão intensamente esta vida!!"
- Porque é que gostas tanto desta música, filhote?-
- Hum... Não te sei explicar. E tu, mãe?-
- Porque é emocionante... E tu sabes que eu adoro emoções!-
- Sabes? Acho que é por isso que eu também gosto.-

Ana Amorim Dias

A tristeza tem razões que a própria razão desconhece

A tristeza tem razões que a própria razão desconhece

Nem dei por ela a chegar. Veio, sorrateira, e instalou-se descaradamente em mim como se eu fosse a sua casa.
- O que é que tu tens hoje?-
- Sono.- Como podia confessar-lhe uma tristeza que não saberia, depois, como justificar?

Dei voltas e caminhadas pelas ruelas da razão. Procurei por todos os becos, espreitei portas e janelas que nem tenho por hábito abrir...e nada! Não encontrei absolutamente nada que pudesse justificar uma tristeza tão absoluta, invasiva e intensa. Recordei fases passadas em que me empenhava em estar triste; lembrei-me da emocionante intensidade com que já senti a tristeza e a forma como ela me conduziu à arte que me dá o pleno sentido à vida. Encerrará a tristeza, em si mesma, uma das poderosas forças que nos faz avançar?

A certa altura desisti de pensá-la e de a tentar racionalizar. Os sentimentos nem sempre precisam de um atestado justificativo. Basta que os aceitemos em toda a sua imensa plenitude, fazendo dessa intensidade o nosso maior combustível, para que a força nos chegue. E, de repente, a razão conseguiu mostrar-me que até os mais sofridos sentimentos, desde que bem encaminhados, podem fazer de nós invencíveis sobreviventes.
E foi assim, completamente vencida pelo ensinamento que trouxe, que a tristeza me deixou, entregue a melhores sensações.

Ana Amorim Dias



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Alegoria da urgência

Alegoria da urgência

A encomenda chegou finalmente. Os livros que encomendei com urgência (duplamente paga) há vinte e dois dias (sim: vinte e dois) foi hoje por mim levantada (como a Quinta do Monte não tem número de porta, todos os árduos esforços para a encontrar foram inglórios) no posto de correios mais próximo.
Poderia maldizer a wook e os serviços expresso dos ctt, mas prefiro, sem qualquer ponta de ironia, agradecer-lhes. Passei por fases de incredulidade, indignação e ação (averiguar o estafeta em causa revelou-se impossível: parece que os ctt expresso gostam de encobrir a incompetência dos seus) até chegar à iluminação. Gosto de tentar reagir às contrariedades extraindo-lhes algo de bom... E esta contrariedade trouxe-me a alegoria da urgência.

Podemos lutar, correr, ter a maior das pressas e agir em conformidade: o facto é que as coisas só nos chegam quando têm que chegar. De pouco serve madrugar se o sol só nasce à sua hora. De nada serve ter urgência e de, muitas diferentes maneiras, tentar pagar o que ela vale pois tudo tem o seu tempo, por mais que nos pareça excessivo.
Quando queremos algo há que lutar e trabalhar por isso. Um dia a "encomenda" acaba por nos chegar...mesmo que tenhamos que calar a nossa urgência e esperar muito mais tempo do que seria aceitável.

Ana Amorim Dias

Lutando com monstros

Lutando com monstros

- Depressa, mãe!-
- Hã?- estava a ouvir música com fones e não o escutei à primeira.
- Passa-me aí o comando! Tenho que mudar depressa, mãe!-
Assim que levantei os olhos entendi-lhe o pânico: era a casa dos segredos.

- Tu já viste isto?- perguntou-me uma amiga, à espera de opinião sobre como lidar com uma pessoa complicada que lhe acabara de mandar uma mensagem feia.
- Ignora, querida. Em absoluto. Caso contrário só estás a fazer mal a ti mesma e a alimentar a insanidade alheia. Não respondas!-

Lutamos constantemente com todo o tipo de monstros e, de facto, durante cada batalha, temos que estar bem vigilantes por forma a não nos tornarmos, nós também, um pouco monstruosos.
É tão fácil deixarmos que a raiva, a frustração, a inveja, o desalento e mil outras monstruosas características nos invadam e comecem a dominar desde dentro que, se não nos acautelarmos, depressa fazem de nós seus reféns.

O ideal é conseguir evitar contactar com monstros, tal como o Tomás sabiamente ontem fez ao mudar de canal. Mas quando os monstros se colocam mesmo à nossa frente, fazendo com que a luta seja inevitável, mais vale que usemos a única "arma" eficaz: uma monstruosa inocência!

Ana Amorim Dias

20.10.13

Marcar pontos

Marcar pontos

Assisti uma única vez aos treinos de futebol do Tomás. No final disse-lhe:
- Meu amor? Não tens jeitinho absolutamente nenhum! Devias mudar de desporto...-
Apesar de me terem chamado a atenção para tentar não colocar os factos de uma forma tão crua, tenho a certeza que agi bem. Se ele não servia para aquilo não era melhor confirmar-lhe uma certeza que ele se calhar até já tinha?

- Mãe... ok, eu deixo-te assistir ao jogo... Mas por favor: não comeces com as tuas loucuras!!-
Estou sentada a ver o jogo. O mais sossegadita que posso. Acabei de receber o sorriso rasgado de um filho feliz, veloz e ágil que, para o basquete, já tem jeito.
E não posso impedir-me de pensar que a frontalidade mais crua é, muitas vezes, a que vem a potenciar que mais e melhores pontos se marquem.

Ana Amorim Dias

Terapia de choque

Saí esta manhã de casa e lá estavam eles: a cheirar tudo com uma curiosidade espantada que o barulho dos meus tacões assustou. Embora tenha ficado com pena por não ter conseguido captar a imagem cómica dos foragidos porquitos, agradeci-lhes em silêncio a visita... É que foi ela que me potenciou um poderoso regresso ao passado.

Passou-se há muitos anos. Quando eu era ainda uma citadina criatura, completamente inadaptada às duras realidades campestres.
- Vamos capar porcos, queres vir?- perguntou o avô João.
Passei muitos anos a tentar perceber as razões daquele meu "sim". Teria sido para o tentar impressionar? Teria sido obra da constante vontade de perceber como tudo funciona? Ou apenas a consciência do enorme poder das terapias de choque?
Momentos depois estava dentro das pocilgas com eles. O Ricardo a agarrar o porco; o avô a "tratar" do assunto e eu a dar assistência. A certa altura, no meio de desinfeções, cortes e guinchos, o avô João, por não ter mais onde o colocar, estendeu-me o órgão ovalado e ainda quente que, por instinto, recebi na minha mão.
Poderia deter-me aqui e fazer uma série de analogias interessantes quanto ao facto de se conseguir ter túbaros na mão. Mas não. O importante foi saber deter-me naquele momento específico (que até poderia ter sido traumático) e conseguir abraçar todo o seu grande valor mesmo sem o entender por completo.

Hoje, tantos anos depois, vejo como a menina da cidade se soube adaptar aos desafios do campo e compreendo a razão de ser daquele meu "sim". É que eu, mesmo sem saber, já sabia que a vida tem que ser mais que "enfrentar o touro pelos cornos"; tem que ser também agarrá-la a ela pelos túbaros.

Ana Amorim Dias

Das trevas para a luz

Das trevas para a luz

Liguei-lhe ainda antes das dez da manhã. Não sei há quantos meses não falávamos. Há muitos...
- Ana!! Passa-se alguma coisa? Eu vou já para baixo!!-
- Calma, querida! Não se passa nada. - ela quase não me deixava falar.
- Nem precisas de dizer o que é! Eu arranco já para o Algarve e vamos resolver o problema!
Por esta altura já eu estava engasgada em gargalhadas.
- Sim, Angela, eu sei: há as pessoas que criam os problemas e as que resolvem os problemas...
- ...e nós resolvemos problemas!- terminámos em coro.
A hora seguinte foi, como sempre, de uma cumplicidade, alegria e entendimento para lá do explicável e, no entanto, tão comuns como o são (felizmente que para isto ainda não criaram imposto) as grandes amizades.

Hoje acordei a pensar em ti. O cheiro extasiante da terra molhada e o encantador paradoxo do sol a desfazer o nevoeiro, trouxeram-me à memória muito do que vivemos juntas. Ao som das músicas que sempre me banham os dias, realizei um filme mental de uma beleza ímpar. E detive-me num momento, fraturado no tempo, há tantos anos atrás que parece ter sido numa outra vida qualquer...

Entraste no meu quarto, com o entusiasmo de sempre, a falar sem parar. E de repente gelaste: eu chorava copiosamente, já não me lembro porquê. A tua aflição por veres a "rocha de alegria e força" a chorar, foi tão grande e genuína que não pude impedir-me e comecei a rir por entre as lágrimas. lembras-te?

A amizade é isto! É ir ao cabo do mundo sem precisar de saber a razão. É uma amálgama de paradoxos incríveis que nos faz duvidar de toda a lógica. É a paixão incorpórea mais genuína e valiosa; aquela nos faz entender que existe quem nos consiga fazer voltar das trevas para a luz... com apenas um olhar.

E sabes que mais? Que se lixem os erróneos entendimentos! Eu amo-te!

Ana Amorim Dias

Fora do horário letivo

Fora do horário letivo

Com um filho de cada lado, consegui estender o braço até à mesinha se cabeceira. Peguei no comando para que a aparelhagem fizesse soar, aleatoriamente, uma música. E o Jorge Palma começou a narrar, com excelente melodia e ritmo, "Jeremias, o fora da lei".
- Mãe, põe outra vez!-
Não se nega boa música às criancinhas. Soou de novo e de novo e de novo até que, ao vestir-me, o espírito de fora da lei havia tomado conta de mim e as calças eleitas foram as mais rasgadas.

- Escolhe aí um CD, Tom.- pedi, quando entrámos para o carro.
Estendeu-me um dos DOORS e os meus olhos brilharam. "Ainda o dia mal começou e já conspiras a meu favor, Universo?"
- O quê, mãe?-
- Nada, nada...-
Fui todo o caminho para a escola a falar-lhes um pouco do Jim; inspirá-los com a genialidade que o som testemunhava e a tentar explicar-lhes porque é que há pessoas que não sabem lidar com a "atração do abismo". E agora, enquanto escrevo, percebo que da mesma maneira que nunca outras músicas foram tão capazes de fomentar a liberdade da alma... também nunca nada será tão poderoso, para a formação de uma criança, como as "aulas" que os pais lhes conseguem dar, fora do horário letivo.

Ana Amorim Dias

Esgrimir o tédio

- Bom dia, meninos!...Buon giorno... E dzień dobry!
Nesta altura começaram logo a bater palmas; ninguém estava à espera de um bom dia em polaco (desculpem mas sou incapaz se dizer "polonês")
Queria transmitir àqueles miúdos, nem que fosse só um bocadinho, a noção da importância da comunicação e o que ela pode fazer por nós.
Atirei-me de cabeça na conquista daquele difícil e mesclado público que me ouvia numa língua não materna.
- Vou-vos contar a história de como me transformei numa super-heroína...- comecei.
Agora que me lembro da cara de alguns, garanto-vos que me farto de rir. Ficaram tão embasbacados que tiveram de decidir depressa se estavam a entender mal ou se eu era apenas uma louca que ali entrara por engano. Mas prendi-lhes a atenção. ...Bem, pelo menos durante um bocado.

Estava no escritório, a imprimir uns documentos e, por obra do acaso, olhei para cima de um armário. E lá estava ele! O meu sabre desaparecido!
Levantei-me de rompante, saí para a rua e, mesmo ali no meio da quinta, perante o olhar estupefacto de algumas pessoas, comecei a esgrimir "em seco" contra inimigos imaginários.

Saí um pouco triste da palestra que, há dias, fui dar àqueles adolescentes: a falta de entusiasmo que lhes senti, por pouco não me contagiava. Como é que se pode ser tão jovem e inocente sem estar absolutamente entusiasmado pela vida? Serão a falta de empenho, energia e entusiasmo, algumas das maiores catástrofes do mundo atual? Fiquei triste, desiludida e preocupada. Estaremos a viver numa sociedade assim tão aborrecida que faz de todos meros recetores de produtos acabados que desconhecem o prazer dos processos criativos?

Passei largos momentos a matar saudades do sabre e a deixar sair, livre, o samurai que há em mi. Super-heroína ou não, sei que assumi o compromisso de esgrimir eternamente contra o invisível tédio... O meu e o alheio!

Ana Amorim Dias


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Em inglês

Em inglês

- E sabe falar inglês, não sabe? É que a língua oficial deste evento é o inglês.-
- Não se preocupe. Falarei em inglês.- tinha acabado de aceitar o convite para dar uma pequena palestra sobre o meu ofício a adolescentes de várias nacionalidades.
- Esteja cá na terça, por volta das dez e vinte.
- Combinado.

Daqui a pouco são dez e vinte e surgem-me duas questões.
Como é que miúdos polacos, italianos e portugueses me vão entender em inglês?
O que é que lhes vou dizer durante uma hora?
As duas questões fundem-se e são de muito simples resposta. Não posso perder de vista, nem por um segundo, a mais inflamada necessidade que me norteia sempre: inspirar os outros a viver uma vida mais emocionante e significativa. Quanto às barreiras linguísticas que o seu parco entendimento do inglês possa acarretar, isso só me vem ajudar; é que quando a comunicação por palavras se torna mais complicada, temos que acionar de verdade toda a energia interior para passar a nossa mensagem... e ela ainda se propaga melhor.
Jamais voltaria as costas à oportunidade de falar para um grupo de adolescentes. Quer me compreendam bem ou me tenha que "esfolar" por isso, vou fazê-los entender que, quando nos reinventamos como nossos supremos heróis, a vida se torna épica.

Ana Amorim Dias


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Mulheres da minha vida - A fábula -

Mulheres da minha vida - a fábula-

Ao contrário do que aconteceu no domingo anterior, ontem "vesti-me" de fada e, munida de música como varinha de condão, dei uma tal "reviravolta" à casa que ela ficou a parecer um palácio das mil e uma noites.
No fim da tarefa, enquanto esperava pelos meus três meninos para irmos almoçar, sentei-me na bancada da cozinha a degustar maçã com queijo e a ver velhos álbuns de fotografias. Até que me deparei com esta e pensei: "olha, as mulheres da minha vida..."

Continuo a ver a minha mãe com os meus olhos de criança maravilhada: como um Ser etéreo, demasiado magnífico para poder ser real; como a princesa mágica que deslizava pela casa com o seu robe de seda salmão, a parecer uma visão fantástica. E lembro-me de ficar a olhar para aquela mulher alta e lindíssima, fascinada pelo facto de a ter como mãe.

- Tu vais ser escritora!- disse-me a minha irmã, sentada no almofadão do quarto, debatendo-se com um livro de matemática e um pacote de batatas fritas, enquanto ouvíamos os "Police".
- Eu? - perguntei na incredulidade dos meus seis anos.
- Sim. Tenho a certeza! Além do mais, tu podes ser tudo aquilo que sonhares...

Os anos passam. A vida muda. A visão fica.
A colossal influência das mulheres da minha vida continua gravada em mim em forma de bênçãos. Incontáveis. Valiosas. Inexplicáveis. Talvez seja daí que me chega a certeza de que as verei para todo o sempre como dois Seres fantásticos que, embora reais, só podem ter vindo do mais encantador dos reinos da fantasia.

Ana Amorim Dias

A mensagem

A mensagem

Estávamos os dois na sala, espalhados pelos sofás, sem prestar muita atenção à televisão.
O telefone soou com convicção.
- Isto é o som do teu?-
- Não. E do teu também não...-
Olhei melhor. Estendi a mão, peguei no telefone do Tomás e li: tem 1 mensagem nova de "menina x" (a menina X tinha nome, mas prefiro manter-me em "segurança" e não o escrever aqui). Passei o telefone ao Ricardo que sorriu e o colocou de volta no sítio.
- Já começa...- foi tudo o que disse.

Quando entrou em casa, o Tomás agarrou no telefone e atirou-se para o sofá... e eu a observar a cena com olhos de predador. Olhou. Pousou. Inclinou a cabeça para trás e esboçou uma amostra de sorriso corado. Voltou a olhar mas sem abrir a mensagem.
- Tomás! Tomáhás! Quem é a "menina X"? - perguntei como se fosse sua irmã mais nova.
- OH MÃEE!!- e riu-se, feliz.

Curiosamente não me estou a lembrar de nenhuma analogia, alegoria ou metáfora na qual possa introduzir este episódio. Se calhar é mesmo assim; se calhar há situações e momentos em que nada mais há a dizer: basta ficar num silêncio feliz... a observá-los a crescer.

Ana Amorim Dias

Fora da caixa

Fora da caixa

"Pensa fora da caixa" está muito visto, banalizou-se. A expressão perde a sua coerência de grande sabedoria no simples facto de as pessoas, por regra, pensarem "fora da caixa". Pensar é fácil, quase tão fácil como sentarmo-nos a sonhar; o complicado mesmo é existir. EXISTIR FORA DA CAIXA. Como é que isso se faz, afinal? E, muito importante, o que é a caixa? É uma vida monótona e sem grande sentido? É o nosso corpo? São os grilhões que aceitamos que nos prendam?
Tentando colocar as coisas de uma maneira tão simples como sempre, vou partir do princípio que pensar fora da caixa é ver mais além, é sonhar e perceber que existe mais, muito mais, para lá daquilo que nos rodeia. E existir fora da caixa? A resposta parece-me óbvia e, embora possa parecer paradoxal, faz sentido. Existir fora da caixa é existir no plano da própria essência, do que há de mais intrínseco em nós. É existir para o encontro profundo connosco e com todo o "grande desconhecido" que em nós se encerra. Existir fora da caixa é seguir instintos e impulsos; é deitar a língua de fora aos medos e rir de quem goza com a nossa "inconsciência". Existir fora da caixa é conseguir encarar cada dia como uma aventura incrível; é deixar marcas nos outros de tanto deixar que eles nos toquem; é ver para lá do visível e dizer para além do dizível; é sentir o nosso divino interior numa sintonia universal.
Pensar fora da caixa, sim, mas saindo dela de facto...

Ana Amorim Dias


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11.10.13

Avô surfista

Avô surfista

- Mãe?-
- Hum...-
- Eu já posso ter sido outra pessoa?-
- Se considerarmos a reencarnação como uma hipótese válida, sim.-
- Hã?-
- Os budistas, por exemplo, acreditam que cada Ser vai voltando em novas vidas, uma e outra vez, até aprender todas as lições.-
- Mãe?-
- Hum?-
- Eu posso ter sido teu pai?-
- Não João, que disparate. Não te lembras de brincar com ele? Como é que podiam estar os dois vivos ao mesmo tempo?-
- Pois.-
Repousa numa meditativa pausa e recomeça.
- Mãe? Tu não tinhas um avô escultor?-
- Sim, o pai do meu pai.-
- Hummmm, então é por isso que eu também sou escultor: eu já fui o teu avô!-

Vá lá que agora já se esqueceu, mas quase desesperei ao longo dos dias seguintes...

- Mãe traz-me água!-
- Vai tu buscar.-
- Tens que fazer o que eu digo porque eu já fui teu avô!-

Ana Amorim Dias


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One way ticket

One way ticket

O destino não é longínquo. Nem sequer muito exótico. Não deixa a antecipação entusiasta da excitação, mas não deixa de ser interessante (quando "embarcamos" no/com o espírito certo, tudo pode revelar interesse).
Como tornar, então, uma primeira ida a Marrakesh, numa experiência um pouco mais desafiante e enriquecedora? Ir na companhia de alguém leve, divertido, minimalista, e de espírito aberto. E ir sem data nem bilhetes para um regresso que será, em si mesmo, a viagem. Não sei quando volto, nem como, nem por onde. Nem me importa.
E isto leva-me à questão da preparação. Segundo o meu pai, por exemplo, as viagens têm que ser preparadas, estudadas, planificadas ao máximo. Eu costumava achar o mesmo. Mas fui descobrindo que o excesso de planificação lhes rouba a espontaneidade, a possibilidade de súbitas mudanças de rumo; desvirtua-lhes muito o sabor por espartilhar sem razão, e pode conduzir-nos à perda de experiências únicas. É preciso partir, preparado e conhecedor sim, mas leve de bagagens e imutáveis planos.
As viagens continuam a ser, para mim, um dos melhores temas para as analogias à vida. Tento não espartilhar demasiado a minha, não a formatando com os planos que vejo toda a gente fazer. Não quer dizer que os novos desafios e mudanças de rumo que aceito tomar não me coloquem um frio no estômago, acelerando o coração. Mas penso sempre que, depois de transposta cada nova barreira, outras maiores podem vir que saberei superá-las, construindo-me um pouco mais.
Se pensarmos bem, a vida é um bilhete só de ida em que o "regresso" ao grande desconhecido é a própria viagem. E não posso impedir-me de pensar que, por mais que a tentemos preparar, ela só faz sentido se nos prepararmos a nós mesmos para o mais absoluto imprevisto.

Ana Amorim Dias


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Precisava do livro

Precisava do livro rapidamente. Encomendei na wook e paguei a taxa de urgência. De imediato recebi por mail a confirmação de pagamento e a informação de que estava a ser expedida.
No dia seguinte, quase às dez da noite, ligam-me dos ctt de Albufeira.
- Tentámos proceder à entrega de uma encomenda para a morada (...) , mas precisamos do número da porta e nome da rua.
- A morada está correta e completa. Isto é uma quinta, não tem nome de rua e muito menos número de porta.- respondi.
- Dê-nos o seu contacto telefónico para nos prestar mais informações amanhã.-
- Meu senhor... Está a ligar para mim. Certo?-

Uma semana depois, e ainda sem o livro, continuo a tentar perceber o que se passou, apesar de me explicarem desta forma os factos:
"Acusamos a receção da sua mensagem que desde já mereceu a nossa melhor atenção.
No seguimento do seu contacto relativo à encomenda nº 1945254 verificamos que a mesma foi expedida no dia 01/10 com o nº de objeto EA651416675PT; existiu uma tentativa de entrega sem sucesso nos dias 02 e 03/10 por motivo de "Endereço incorreto ou insuficiente".
Nesta situação, o procedimento a ser efetuado pelo estafeta, de acordo com os parâmetros do serviço ?tipo de envio" deverá ser proceder à devolução imediata; a encomenda não fica avisada na estação na estação dos correios, um vez que o estafeta não teria conhecimento do local onde deixar o aviso na caixa do correio.
Pelo exposto, a encomenda encontra-se em processo de devolução; quando chegar às nossas instalações será notificado por e-mail relativamente ao procedimento de reenvio."

"Morada incorreta e insuficiente"? Querem ver que ando, há anos, a receber correspondência e encomendas devido às artes divinatórias de quem as entrega??
"Parâmetros de serviço"? De que me interessa essa merda se, mesmo pagando a taxa de urgência, estão a proceder como se eu estivesse escondida num mosteiro perdido nos confins do Nepal?

Há muita gente a exercer as suas funções com esforço, competência e diligência, mas também há muitos que apenas gozam com as entidades empregadoras e seus clientes.
Não faço ideia quem foi o estafeta/besta que não "conseguiu" entregar uma encomenda numa morada correta e completa, mas sei que, se trabalhasse para mim, hoje já poderia dormir até mais tarde.

A incompetência natural é triste. Mas a incompetência propositada, essa, é um flagelo contra o qual nunca devemos deixar de lutar!

Ana Amorim Dias


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Em modo criança

Em modo criança

A gritaria que vinha da casa de banho estava a ser abafada pelo alto som da aparelhagem da cozinha.
Enquanto eu partia o pão, o Tomás passou a correr, todo nu. O João chamou-me, da banheira. As gargalhadas eram agora mais sonoras que a música.
- O que foi João?-
E então, ao entrar na casa de banho em derrapagem, percebi que mais valia ter calçado as galochas...
- O Tomás anda a "pregar-me" sustos...- respondeu, com o chuveiro em riste, meio escondido atrás das cortinas.
- E tu defendeste-te com chuveiradas, já vi!- chão, paredes, móveis: tudo parecia ter estado numa tempestade.
Tive que pensar depressa. "Passo-me ou não??"
E, de repente, vi-me em versão criança, a saltar convicta nas poças que a chuva deixava...
- Vá, já chega de banho. Vistam-se e venham para a mesa.- "É só água, e a água seca!"

Muitas vezes a melhor forma de lidar com crianças é lembrarmo-nos de quando o éramos plenamente; entrar no seu mundo e ficar um pouco por lá. Talvez seja por me ter lembrado bem disto que, ainda há pouco, consegui convencer o João a despachar-se num ápice: fiquei à porta do seu quarto com ar de desafio. Quando tive a sua atenção, tirei, com ar teatral, um carrinho do meu bolso e passei-o pela porta.
- Tu! E eu! Daqui a cinco minutos no chão da sala! Escolhe o teu carrinho, que o meu já está escolhido!-
Os olhos dele brilharam.
- Mas só se estiveres completamente pronto para ir para escola...-

Sim, a melhor maneira de os "vencermos" é mesmo juntarmo-nos a eles!!

Ana Amorim Dias

Segunda de manhã

Segunda de manhã

Gosto de fórmulas simples para medir coisas complicadas. A fórmula de segunda feira de manhã é uma delas. Talvez a leitura do que se segue vos venha a deixar com algum aperto no coração mas, pelos meus cálculos, se ficarem a pensar no caso, é bem possível que, num futuro mais ou menos próximo, isso venha a dar alguns frutos.

- O que é que queres fazer todos os dias da tua vida?- é o que, ultimamente, ando a perguntar a toda a gente.
- Hã? Que raio de pergunta é essa?-
- Vá, diz lá. Qual seria a ocupação que te faria levantar feliz cada manhã?-
- Olha... Não sei...-
"Pois, o problema é esse!"
- Então despacha-te, descobre e começa a lutar por isso!-

Às vezes tenho a sensação que sou uma réplica de Hércules. O trabalho nunca me assustou e abuso. Abuso e abuso. Abuso feliz porque não trabalho, vivo! Há labutas que me ocupam os dias e que trazem o dinheiro. E há labutas que me ocupam os dias não trazendo qualquer rendimento. Faço tudo. Feliz. E, fartando-me de trabalhar, nunca tenho a sensação de o fazer.

Mas desculpem! Devem estar curiosos. Voltemos à tal formula!
"Quem vive a segunda feira de manhã com o mesmo júbilo da sexta à tarde, não anda a desperdiçar a vida!" É simples!

Assim que saí da faculdade e casei e precisei de começar a sustentar-me, percebi que teria de lutar heroicamente para conseguir criar as condições certas para ganhar dinheiro sendo feliz. Felizmente tal princípio nunca deixou de nortear os meus passos, as minhas escolhas. Considero-me sábia, corajosa e sortuda por isso.
É mesmo preciso coragem... e estar preparado para enfrentar a escassez. É preciso nunca perder a noção do real valor do dinheiro; saber viver com quase nada; saber perder... Mas, bem feitas as contas, no balanço destes dezasseis anos de vida ativa, posso garantir que sempre adorei as segundas feiras. E as terças. E todos os dias da semana. Sempre adorei as manhãs, as tardes e as noites. Posso ter muito, pouco, ou estar no limiar do colapso financeiro, mas não me afasto nunca do fundamental: ser feliz no que faço. Posso comandar equipas e brilhar em competência, ou posso enfrentar a sós, só com uma pá e vassoura, centenas de metros quadrados de chão, mas faço tudo com a mesma felicidade inebriante de quem se deleita com cada passo do caminho.

Desculpem se vos deixo alguma angústia, mas é para e pelo bem! É que ser capaz de adorar cada manhã de segunda feira, é uma das maiores conquistas da vida. Fiquem a pensar nisto, por favor!

- Diz lá: o que é que queres fazer todos os dias da tua vida?

Ana Amorim Dias

Uma casa de pantanas

Uma casa de "pantanas"

Percorro o corredor com preguiça. Espreito o quarto do Tom e abano a cabeça à desordem. Continuo a andar e passo pelo quarto do João. Estremeço com o caos. Finalmente, ao chegar ao meu, começo-me a rir.
"O teu está quase tão mau como o deles, Ana!"
"E depois? Que se lixe a arrumação! Hoje é domingo e haverá paz...mesmo com tudo de "pantanas"!"
Atiro-me para cima da cama desfeita e suspiro, feliz. O que me importa é que, dentro de mim, seja domingo ou outro dia qualquer, costuma estar tudo arrumado...

Ana Amorim Dias


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Como funciona

Como funciona

Estava a conduzir e fui atingida. O pensamento chegou como o primeiro relâmpago de uma forte trovoada.
" E se tivesses que explicar como funciona o Mundo? "
" Hã!? "
" Sim. Imagina que estavas a ser entrevistada por um extraterrestre e tinhas que explicar, em poucas palavras, como é que o Mundo funciona!"
" Ai caneco!..."

A tempestade começara! Continuei a guiar sabendo que já não podia sair dela. Entrei na rotunda, com atenção e cuidado, dei pisca, saí e, com a consciência plena das ações do meu corpo, permiti que a imaginação fosse para o espaço.

O extraterrestre tinha um ar bastante simpático e o ambiente era confortável. O único problema era a questão que me estava a ser colocada.
- Ana Amorim Dias, muito obrigada por ter aceite o nosso convite. Gostaríamos que explicasse ao nosso povo como é que o vosso planeta funciona.-
- Eh... pois. O nosso planeta...-
" És mesmo maluca! Tu metes-te em cada uma...!!

Reparo que todos os carros me estão a ultrapassar. Volto ao ritmo normal.

- O nosso planeta funciona com as mesmas regras físicas e químicas que o vosso. É um planeta muito belo em que a natureza, ao sair dos eixos, tem os seus próprios e eficazes métodos de regressar à harmonia...-
- E a vossa espécie? Como funciona?-
- A história da humanidade está quase toda na internet, é só irem lá consultar, o que posso fazer é dar uma opinião muito geral...-
- Parece-me bem. - comentou o encantador ser.
- A humanidade anda esquecida de como ser feliz. Desligou-se da natureza e higienizou-se demais, tornando-se muito indefesa. Os Homens vendem a vida em profissões de que não gostam, a troco de dinheiro que usam para comprar coisas de que não precisam e que, ao adquirir, lhes acentuam a sensação de vazio. Vendem a vida por dinheiro sem tentar sequer perceber qual é o ofício da sua alma. Trocam o SER pelo TER e, com isso, ganham inimigos, guerras, doenças e mutilam o seu íntimo com sentimentos absurdos. Passam o tempo a sonhar com o "depois" à espera que a plenitude lhes chegue, na forma de algo ou alguém, e ignoram por completo a responsabilidade de serem plenos no "agora"...
- Oh céus... Precisam da nossa ajuda? Ainda há esperança para vós?-
E aí vem-me o sorriso.
- Há cada vez mais gente no Mundo a saber tudo isto com uma certeza ancestral. E depois temos um poderosíssimo aliado!...-
- Quem!?-
- O amor. O mais puro e profundo amor, a nós mesmos e ao próximo!-
- Waow!!!- disse o extraterrestre enquanto eu estacionava o carro, sã e salva, cá na Quinta.

Ana Amorim Dias

O espaço da paixão

O espaço da paixão


Saímos do restaurante e eu vinha a fazer um teatro tão cómico que ele, instintivamente, abraçou-me.

- Estou cada vez mais apaixonada por ti!- digo-lhe, de vez em quando, ao admirar este pequeno matulão com quem sinto uma cumplicidade enorme e crescente...
Se for pensar bem no caso, faz-me um certa confusão como é que um Ser, concebido há treze anos por esta altura, já me passa o braço por cima dos ombros e me fala com uma voz que começa (também ela!) a tomar corpo.
- Eu sei, mãe!- costuma responder com orgulho.

Uma coisa é certa: não fazia a mínima ideia da maravilhosa experiência que é ser mãe de um adolescente. Nunca, nem nos meus mais utópicos sonhos, considerei a hipótese de viver um relacionamento tão intenso, significativo e enriquecedor. Sinto-lhe o orgulho e encantamento por mim. Sinto-lhe a compreensão de quem sou, do que quero e da forma como funciono. Sinto uma conexão forjada em genes e alicerçada num diário "trabalho" de criação de uma relação abençoada.
Dizem que o ambiente familiar é crucial para se crescer feliz. Sem dúvida. No meu caso, a nossa vida a quatro tem que ser sólida e amorosa para se conseguir algo assim. Mas começo a perceber que o tempo que cada progenitor passa a sós com cada um dos seus filhos é também fundamental para a construção de cada um!

Às vezes fugimos só os dois, o Tomás e eu. Não importa para onde nem durante quanto tempo nem a fazer o quê. Fugimos para o porto seguro um do outro; para aquele espaço só nosso, onde, com gargalhadas soltas e olhares cúmplices que dispensam palavras, vamos construindo esta paixão que cada dia é maior.

Corro o risco de ser invasiva mas, ainda assim, atrevo-me a sugerir a quem tenha filhos, que experimente "fugir", a sós com cada um deles, para um espaço temporal só dos dois: para aquele espaço mágico em que as paixões ganham forma.

Ana Amorim Dias

Para nos lembrar

Para nos lembrar

Quando me apercebi, aquele telefonema já não era apenas o breve momento em que ela me perguntava pelas novidades.

- Ai, Ana! Fico tão feliz! Ainda bem que pude ajudar.- disse-me, toda contente.
Conhecemos-nos desde miúdas e, embora longos períodos passem sem que as nossas vidas se cruzem, não quer dizer que não se toquem. E que não nos emocionemos com isso.
Avançámos para o habitual mar de disparates, piadas e gargalhadas em que tão bem nadamos juntas... até que a conversa ganhou novos rumos, como que com vida própria.
- A melhor maneira de começares a arrebitar, querida, é perguntares a ti mesma: "Como quero que seja a minha vida?", "qual é a minha missão?"- disse-lhe eu.
- Pois. Isso eu ainda não descobri...-
- Nem tu nem oitenta por cento da população mundial. Por isso não fiques triste. Mas também não desistas da busca...-
- E tu, Ana? Como queres a tua vida?-
Rompo em gargalhadas. Como começar a explicar-lhe??
- A minha grande vantagem é saber isso com uma nitidez de alta definição! Quero escrever e emocionar-me, escrever e emocionar-me, emocionar-me e escrever!! Quero poder fazê-lo e partir por aí, pelo mundo, tendo sempre para onde voltar; quero conhecer muita gente porque é esse o meu barro; trabalhar com pessoas despertas e criativas... O que me move não é o dinheiro, e muito menos a fama. Mas batalho todos os dias por conseguir habitar, cada vez mais, numa vida emocionante e repleta de novas experiências.-
Nesta altura já não conseguia parar. A grande vantagem de ter interlocutores inteligentes é o facto de nos desafiarem a descobrirmos-nos enquanto falamos.
- A verdade é simples, Diana: ser rico não é ter muito dinheiro, é viver os dias todos como se fossem a realização dos nossos mais incríveis sonhos; é ter a força anímica de lutar para que assim seja; é desejar aprender sempre mais, conhecer sempre mais. E, se me perguntares, a pobreza mais profunda é a da imobilidade. Quem se rende ao desânimo, à inércia e à falta de curiosidade, pode ter todo o dinheiro do mundo mas é como se já estivesse morto... -

Bastante tempo depois, ao desligar o telefone, prometemo-nos voltar a falar em breve. E eu prometi-me lutar por nunca esquecer que estou aqui para nos lembrar...

Ana Amorim Dias

Chaves universais

Chaves universais

- Obrigada mais uma vez por este bocadinho, Ana!-
- Mas porquê?- perguntei-lhe espantada.
- Uma pessoa com uma vida tão cheia, que anda sempre a mil à hora, e que vem tomar um café, assim demorado, com alguém que nem conhecia... Fico grata.-
- Nada disso, eu é que fico!-
..." Quem usa o seu tempo a ler o que escrevo e a conhecer um pouco de mim e das minhas ideias, merece conhecer-me em pessoa. Faz sentido." Pensei.
- Sabes Dani, isto significa tanto para ti como para mim! Enriquecemos as duas! - só não lhe expliquei foi porquê...


- Explica-me lá outra vez o que são chaves universais.-
E o pai explicou-lhe.
Fiquei a ouvi-los a debater os usos de tais chaves e, instantaneamente, assumi que todos temos uma dentro de nós. Uma chave colossal. Universal. Mestra. E que pode fazer de nós mestres. Uma chave feita de alma e coração, de energia e atenção. A nossa chave mestra é feita de tempo e vontade. É a chave do olhar e da entrega.
A chave com a qual conseguimos entrar no coração dos outros.
A chave mestra capaz de fazer de nós mestres...

Ana Amorim Dias


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Canais

Canais

À tarde já tínhamos falado bastante mas, à noite, apeteceu-me ligar-lhe de novo.
Falámos de tudo e de nada. De coisas importantes e de outras, sem importância alguma. Rimos. Partilhámos. Namorámos.

- Estive a dar muito mimo à minha mãe...-
- E porquê?-
- Faziam anos de casados hoje, ela e o meu pai... Foi como um presentinho dele para ela, sabes? ... Através de mim. - um curto silêncio uso a mais sentida voz de beicinho: - ...tenho saudades dele...-
- Como te entendo. Mas não te esqueças: mimares a tua mãe é como mimá-lo a ele!-

Sei que sim. E sei que muitas vezes apenas somos canais de mensagens fortes que inspiram a um novos alentos. Quer saibamos ou nem por isso, fazemos parte de uma vasta cadeia de transições amorosas que talvez apenas digam: "Não me vês mas estou aqui. E Amo-te...tanto como sempre foi e será."

Ana Amorim Dias
(Foto: Nelspruit, lua de mel)


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Super vilã

Super vilã

Ter que castigá-lo estava a partir-me o coração. Íamos ao centro comercial, o que alicia qualquer consumista criaturinha e, ao ver-se na iminência de ser obrigado a ficar em casa, usou de todos os expedientes para me demover da decisão.
- Já disse que ficas de castigo e não vais, João! E é bom que entendas as razões! No fim de semana passado deixaste os trabalhos da escola para segunda de manhã e este fim de semana nem sequer trouxeste os livros da escola para casa?? Tens que compreender que estás no mau caminho e é bom que te habitues à ideia de mudar depressa essa tua postura!-
- Mas mãe...- e abraçava-me muito, o pequeno manipulador!
- Já te disse, amor: não vais porque tens que começar a sentir as consequências das tuas más escolhas!-
- Pois fica sabendo que TU és uma Super Vilã!!!-
Quando se deu por vencido e lhe estalou o verniz da esperançosa simpatia, tive que me conter muito para não romper em gargalhadas.

Encantou-me a imagem de super vilã, confesso. E fui pronta na resposta:
- Sabes quem faz os Super Heróis, meu amor? São os Super Vilões! Estes é que lhes despertam os seus super poderes! Por isso agora põe-te a estudar e até logo!-

Não consigo manter muito tempo a minha capa de super vilã... Mas sei que a envergarei sempre que ela se revele crucial para activação dos surpreendentes poderes dos meus mais amados heróis!

Ana Amorim Dias


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Horário de voo

Horário de voo

Domingo. Dez da manhã. O Gordon Haskell canta-me "al capone" diretamente aos ouvidos para abafar o som dos cartoons com que os putos se entretêm, a "jiboiar" no sofá.
Estou a trabalhar no computador desde as oito e pouco. Tenho sono mas ignoro-o. Olho pela janela. Perco-me no verde banhado pela luz do outono. Perco-me na graça que vejo nos irónicos episódios com que os dias nos presenteiam...

- Já decidi: vou definir o meu horário de trabalho. Por exemplo, das nove às cinco, como qualquer pessoa normal, e depois fico livre!-
- dizia-me, ontem, o Ricardo.
- Pois, somos ambos livres de o fazer, realmente... Mas como se pode espartilhar o horário de voo de um pássaro?...
- É uma simples questão de organização, Ana.-
- A vida é tua, o horário é teu, acho bem. Quanto ao meu, não posso nem quero alterá-lo: desde que acordo até que adormeço!

- Baixem o som da televisão, não volto a repetir!!-
A música do iPad também me está a irritar. Noto que o vidro está sujo. "Admite, Ana: estás com birra de sono!"

Ele entrou no quarto um pouco depois das duas.
- Não chega, já?- perguntou cuidadosamente, para não despertar a fera que por vezes nasce em mim quando me arrancam do limbo da criação.
Ignorei. Continuei. Não me apetecia parar. "Dormir é para os fracos".

Volto a olhar pela janela. Várias aves bailam, completamente felizes, por entre suaves sopros de chuva.
"Não se pode condicionar o voo das aves livres, mas elas quando têm sono, dormem, Ana!"

Ana Amorim Dias



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Trabalho e sorte

Trabalho e sorte

- Sabes? Eu não acredito muito nisso da sorte...-
- Como assim?-
- As pessoas não chegam ao sucesso e à concretização pessoal por sorte; chegam lá com esforço e muito trabalho!-
- Sim, está bem, mas a sorte ajuda!- contraponho.
- Não percebes que sem trabalho, a sorte não acontece?-
Não respondo, fico a pensar.
- Aquilo a que as pessoas chamam de "sorte" é necessariamente a soma do trabalho, do génio e das hipóteses que se agarram! - continua ele.
- Mas por exemplo, tudo o que temos criado juntos... Deve-se à sorte de ter visto um dia a tua fotografia! Se não fosse isso não havia biografia, nem documentários, nem entrevistas, nem o futuro filme...- replico.
- Lembras-te de já te ter falado da teoria do azar concorrente, do Lezama Lima, certo? -
- Sim, claro...-
- Veres a fotografia não foi sorte. Milhares de pessoas já a viram e não fizeram nada, percebes? O que já criamos juntos vem de todo o meu trabalho e da tua grande dedicação e busca permanentes; vem das nossas escolhas e ações; vem dos nossos génios!-
- Eric?-
- Hum?-
- Agrada-me essa ideia... e sinto-me tão criativa que vamos estar cheios de sorte! Obrigada!
- De nada, "cerebrozito fértil".

Ana Amorim Dias


Enviado do Writer