(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

2.9.13

'Bora que eu vou-vos ganhar!

'Bora que eu vou-vos ganhar!

- André! André!!-
E o puto nada.
- André! Anda mais para aqui!-
O pai bem lhe gritava, meio aflito, para que se aproximasse mais da areia, mas o miúdo só queria estar com água pelo peito, onde já se apanhavam bem as ondas.

Olhei para aquele quadro pai/filho e comparei-o com o quadro pais/filhos que eu estava a protagonizar com a minha pequena tribo. Eu e o Ricardo com o Tomás e o João. Várias pranchas. Ondas fantásticas e uma temperatura de mar que nos permitiu estar três horas seguidas dentro dele.

Olhei para o pai do André que, já com uma considerável irritação, (como é possível estar-se irritado ao pé do mar?) insistia em chamar pelo André, que não lhe ligava nenhuma. E olhei para os meus filhos, felizes e seguros, a divertirem-se como loucos enquanto apanhavam ondas e competiam com o pai e com a mãe.

Não conheço o André de lado nenhum, e o pai muito menos, mas não hesitei em mandar ao puto um daqueles sorrisos que inspiram a mais rebeldia. Não sei se o garoto sentiu que enquanto nós estivéssemos por perto ele estaria em segurança, o certo é que foi deslizando nas ondas, a fazer ouvidos moucos ao pai.

Só desisti do mar quando os meus descendentes não aguentavam mais. O que acho que nunca vou desistir é de os acompanhar nas atividades que mais gostam enquanto a minha participação os fizer assim felizes. É bom acompanhá-los de bicicleta, saber dar-lhes as dicas no ski, discutir táticas de street surf (para quem não saiba, é o skate de duas rodas) e gritar para levantarem bem a frente da prancha de bodyboard para não se enrolarem nas ondas. É bom experimentar o surf com eles e, quem sabe, virmos a guiar cada um a sua mota. O que eu não vou querer nunca é demitir-me de viver, gritando para que voltem e não vivam eles também o que a vida tem de mais divertido e intenso. Não, decididamente não vou desistir de experimentar vivências para assim podermos divertir-nos todos juntos. Não vou desistir de lhes ensinar, de aprender com eles e nem de partilhar tantos momentos incríveis.
Só espero saber manter sempre o espírito de lhes continuar a dizer:
- Tomás! João! 'Bora, que eu vou-vos ganhar!!-

Ana Amorim Dias


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O complot

O complot

Às vezes fico com a impressão de que existe um complot inter-galáctico (ou de qualquer outro tipo) determinado a fazer com que a parte mais negra dos Homens se exponencie.
Não nos estou a tirar as culpas da mesquinhez, avareza, violência e raivas, transferindo-as para quaisquer outras entidades, energias ou organizações. Também não tenho a mínima veleidade de nos desresponsabilizar pela mais bárbara inércia de que podemos ser capazes: demitirmo-nos de pensar!
Tenho a vaga ideia (ou talvez o insano sonho?) de que, ativando o pensamento com uma seriedade consciente, se ativariam também todos os nobres sentimentos que correspondem à nossa verdadeira essência.
Imaginem um Mundo em que todas as pessoas ganhassem o hábito de pensar: todos entenderiam (porque é lógico) que o ódio só se detém com amor; que o perdão sincero é o único caminho para solucionar conflitos; que ganância gera perda e que a posse é uma ilusão. Se pensassem, as pessoas entenderiam que nada tem muita importância; que não há motivos para ter medo; e que a única lei que realmente é válida é a do amor. Se todas as pessoas pensassem com o cérebro inteiro sobre meia dúzia de coisas, isso faria com que o seu entendimento dos outros, da vida e de si mesmos fosse o verdadeiro.
Não sei se o tal complot existe ou não, mas estou segura de que, no momento em que a humanidade inteira se atrever a pensar, o salto evolutivo será assombroso.

Ana Amorim Dias

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Posso deitar-me contigo?

- Posso deitar-me contigo?-
- Claro que sim, meu amor!- como conseguiria resistir àquela vozinha doce e olhar amedrontado? - Vá, mas toca a dormir!
Alguns minutos de silêncio.
- Mãe? Que barulho foi este?-
- Os gatos.-
- Não, mãe! Estas pancadinhas, não ouviste?-
- Sei lá, deve ser o teu irmão no quarto dele.-
Fiquei incomodada por senti-lo com medo. Impôs-se uma pequena conversa.
- Óh João, tu sentes que eu tenho medo?-
- Não! Tu não tens medo!-
- Então porque é que tu tens medo? Não te sentes seguro ao pé de mim? Não sabes que aqui ninguém te faz mal? -
- Sim, eu sei... Mas às vezes tenho sonhos maus...-
- Ohh, meu bébé!- abri um abraço e aconcheguei-o bem junto ao meu peito.-
- Tens razão, agora ninguém me faz mal, isso era "entigamente", não é?-
- Sim, meu anjo. Isso era "entigamente"...
Adormeceu num instante, e eu fiquei a vê-lo dormir no meu abraço enquanto pensava em todos os mistérios da(s) vida(s).

Ana Amorim Dias

Comoventes angústias

Comoventes angústias

Eu estava deitada na cama, com a atenção no iPad, quando ela entrou. Percebi de imediato que alguma coisa não estava bem.
- O que tens?-
- Uma angústia... -
- Conta.- endireitei-me um pouco e dediquei toda a atenção a esta amiga de há tantos anos.
Narrou-me que tinha acabado de ver uma pessoa com quem deixou de se dar e que a expressão corporal dessa pessoa tinha sido a de: "Estou aqui, pronta para falar contigo se tu falares comigo..."
- E então?- quis eu saber.
- Não consegui. Não fui falar com ela.- respondeu-me.
- ...E agora sentes-te mal contigo mesma, é isso?-

Sou uma eterna apaixonada pelo Ser Humano. As pessoas, de todos os credos, cores, géneros, idades, raças (e por aí fora) atraem-me os pensamentos, ativam-me a curiosidade e propulsionam-me os sentimentos. A necessidade de escrever transforma-se quase em compulsão quando entro no campo da infinitude de nuances da humanidade. E o que mais me atrai é a capacidade que o Homem tem de me comover e emocionar com milhares de intrigantes manifestações da sua complexa composição interior.

- Sim, não fiquei bem comigo... Estou com uma angústia enorme.- confessou-me.
O meu sorriso condescendente e feliz confundiu-a. Apesar mais nova, fui tão maternal e apaziguadora quanto sempre consigo ser quando as situações assim exigem.
- Mas tu estás a rir-te de quê? -
- Oh querida... Não percebes? A tua angústia é uma coisa maravilhosa: é a garantia de que estás pronta e que na próxima oportunidade serás capaz de falar com essa pessoa!-
- Sim. Vou falar, podes estar certa!-

Sou apaixonada pelo fabuloso Ser Humano. Serei sempre. Não pelas pessoas irrepreensíveis e imaculadamente corretas, mas por todas as que deixam fermentar em si as angústias que lhes permitem perdoar e evoluir. Não me sinto atraída por quem não tem dúvidas e cumpre todas as regras, mas não sei resistir a quem é espontâneo, impulsivo e vive a constante guerra interior de tentar ser melhor.

Talvez a angústia da minha amiga se tenha esbatido. Mas querem saber a verdade? Espero que não. Espero que se tenha ativado ao ponto de procurar ela mesma a tal pessoa para tomarem um café e darem o mais carinhoso abraço.

Ana Amorim Dias

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Como se

Respira como se cada inspiração fosse eterna.
Sorri como se o teu rosto refletisse a mais completa alegria.
Ouve como se tudo fosse encantadora música.
Cheira como se tivesses o mais apurado faro.
Saboreia como se cada garfada te saciasse para sempre.
Fala como se a tua voz transportasse a sabedoria do universo inteiro.
Move-te como se o teu corpo planasse sobre paisagens incríveis.
Caminha como se fosses para uma festa no Olimpo.
Pensa como se todos os cérebros estivessem ligados ao teu.
Sente integralmente como se tudo aceitasses.

Quem ousa agir, pensar e sentir assim, acaba por descobrir alquimias inimagináveis.
Atreve-te a tentar

Ana Amorim Dias






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Tocar para quem se toca

Tocar para quem se toca

Quando eles se posicionaram em frente à nossa barraquinha, eu disse ao Tomás:
- Vês, baby? Vieram tocar para mim!-
- Êh! Lá estás tu com as tuas coisas! Não vieram nada tocar para ti!-
- Ai não? Eu já te provo que sim!

A primeira vez que ouvi os "Le Condor" foi há muitos anos, lá em cima, no castelo, numa das iniciais edições dos Dias Medievais de Castro Marim. Em todos os anos seguintes, as sensações causadas pelo flautista com ar de Cristo e pelos seus acompanhantes voltaram a repetir-se: um encantamento enigmático e uma alegria pacificadora, capazes de me fazer transpor os limites do tempo e entrar em sintonia com tudo.

Alinhado à nossa frente, com o flautista com ar de Cristo exatamente no meio, o numeroso grupo fazia a sua magia. E eu deixei que a música me transportasse para além dos portais da razão, afinal eles estavam a tocar para mim. Perante o ar embasbacado (também maravilhado?) do meu filho mais velho, embalei nas asas das melodias e sorri para os intérpretes, deixando talvez que se apercebessem que estavam a tocar o mais nevrálgico centro de alguém.

- E isto o que é?- perguntou o flautista com ar de Cristo, algumas horas mais tarde, apontando para os pãezinhos.
- Música para a tua boca.- respondi com um sorriso enquanto lhe estendia um pão que não o deixei pagar-me.
Devolveu o sorriso e deliciou-se enquanto trocávamos algumas palavras.

Passou-se mais algum tempo e o flautista voltou. Trazia companheiros para comprarem a delícia que tinha provado e trazia também um CD, que alegremente me ofereceu.
- Oh mãe... Eles tocaram mesmo para ti, não foi?!?- questionou o Tomás.
- Sabes, meu amor? Os artistas tocam sempre para quem se deixa tocar pela sua arte...-

O cd continua no rádio do carro. A tocar. A tocar-nos.

Ana Amorim Dias

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Estado original

Estado original

No meio de toda aquela confusão, consegui arranjar dois minutos para conversar um pouco com ele. Devido à forma como o diálogo começou a nascer, pressenti que talvez algo importante estivesse prestes a ser-me revelado. Como nunca quero correr o risco de perder "pitada" da vida, decidi esquecer tudo o resto e dedicar-me apenas a ouvi-lo.
- Somos todos peixinhos fora de água, sabe?-
- Peixinhos fora de água? Como assim?- perguntei, decidida a não o levar muito a sério.
- Sim! O nosso estado normal é em espírito e isto aqui no Mundo é muito violento para nós! Nascer, viver, morrer; tudo implica dor e sofrimento, coisas que não existem na nossa forma original. As pessoas estão é demasiado apegadas a tudo, até à dor, e não se apercebem que o seu estado normal é apenas em espírito.-

Horas depois, de forma completamente aleatória, apertei um pão e reparei na maneira como, ao largá-lo, readquiria a sua forma original. E então a lembrança das palavras do estranho homem invadiu-me o espaço interior.

Há uma tendência universal para tudo voltar ao seu estado original, para readquirir, após a pressão, a originária forma essencial. E nós? Qual é o nosso estado original? Presos às dores da vida? Ou ligados à invencível alegria do espírito? Haverá alguma ligação causal entre a consciência dessa alegria intrínseca e a activação de condições de vida mais aprazíveis? O esquecimento dessa alegria e perfeição essenciais tornará as existências mais difíceis? Estarão aqui encerradas as respostas que justificam a insatisfação de muitos que tudo têm e a alegria consistente de tanta gente humilde?

"Tudo tende a regressar ao seu estado original" repeti em voz alta, para me ouvir melhor. "O nosso estado original é pureza e alegria". Sorri e voltei ao rebuliço, completamente feliz.

Ana Amorim Dias



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