(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

30.7.14

Cafés, plágios e inspirações

Cafés, plágios e inspirações

Mandei a meia-de-leite para trás. Não aprecio incomodar ninguém, mas se há coisa que não suporto são meias-de-leite clarinhas. Tem que ser escura e todos o sabem. Pelo menos quem me costuma atender nos cafés que frequento.
Com a chegada do verão e dos recém contratados jovens em todas as esplanadas, forço-me à melhor explicação do meu desejo: "uma meia de leite escura e não demasiado quente, por favor." Aos funcionários habituais nem preciso de dizer nada: se chego até às dez da manhã ou ao fim da tarde, basta o cumprimento sorridente e sabem o que fazer; se é depois de almoço, não há que enganar, é só o café.
Chegada a cafeína à mesa, em qualquer das suas fórmulas, é começar a escrever.

Ao ler "Paris é uma festa", descobri que o Ernest também se esquecia do "cafe au lait" após as primeiras goladas e, absorvido pela criação dos parágrafos sublimes, o deixava arrefecer até ao ponto do intragável. Depois, como me acontece constantemente, já não o bebia ou tinha que mandar vir outro. Também era escritor de rua, de cafés, de instintos e de irritações, quando alguma companhia lhe impunha a sua presença, não o deixando trabalhar. Não há nada mais horrível que estar na vertigem da criação e ser impedido de dar curso ao impetuoso fluir das ideias. Ou melhor, talvez haja....

Se há coisa que qualquer escritor deve temer com pavor, creio, é a eventualidade de o seu trabalho se assemelhar demasiado ao de qualquer outro. A possibilidade de ser considerado plagiador, nem que por uma vez ou quanto a uma frase que seja, é o único monstro suficientemente abominável para competir com aquele outro, o que devora a inspiração deixando atrás de si o vazio estéril das páginas em branco.
Por mais que o dom das palavras assista a quem do seu bailado faz o oxigênio que respira, destas duas bestas nenhum de nós pode dizer estar a salvo.
Percebi tudo isto quando me ocorreu poder vir a ser considerada plagiadora do "cafe au lait", eu que o tomo reverencial e necessitadamente desde os tempos que a minha memória alcança...

A meia de leite esfriou. Está imbebível. Mandarei vir outra, enquanto ladaínho o desejo de que ela sempre arrefeça por me perder na palavras mas que nunca, jamais, plágios ou desinspirações me assistam.

Ana Amorim Dias

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