(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

30.7.14

Selvagens

Selvagens

Há mais de uma semana que não começava o dia a escrever. O que existe na manhã que faz dela uma incondicional aliada da produtividade? O que transforma a confusão das ruidosas esplanadas numa abundante nascente de ideias ordeiras? Não tenho a resposta. Talvez a obtenha daqui a instantes, devolvida pelas palavras que se plasmarão no ecrã. Talvez entenda também porque me disse ele aquilo...

- A culpa é tua...
- Culpa? De quê?
- De não saber regressar a uma vida normal. Receio não poder regressar nunca a uma existência normal, sabes?
A princípio pensei que estivesse a usar de uma boa quantidade de humor, misturada com aquele tipo de ironia gozona que quer deixar os outros confusos. Depois percebi que talvez estivesse a falar a sério, mas sem perceber ainda que o que dizia era falso.
- Acho que não te estou a entender: não podes voltar a um quotidiano regrado, a um emprego, a dias sempre iguais?
- Sim. É isso. Mostraste-me a todos como um herói. Obrigaste-me a ver-me assim, como um homem que vive coisas incríveis numa existência demasiado afastada de tudo o que é normal. Temo transformar-me num selvagem, num eremita, num aventureiro cujas experiências não serão entendidas por ninguém por serem tão alheadas de toda a normalidade que são capazes de entender.
- Estás a dizer que não sabes voltar à formatada vida de um escritório imobiliário e que a responsabilidade é minha?
- Sim, é isso que estou a dizer.

Acordei a pensar no que disse. Percebendo que crê de facto naquilo que afirmou. Acordei a perguntar-me até que ponto é fácil culpar os outros por opções que não aceitamos abraçar como o resultado acabado daquilo que a nossa alma pede. Será possível determinar tão violentamente as escolhas alheias? Será que temos a responsabilidade total das marcas indeléveis que vamos deixando nos outros? Até que ponto já influenciei as escolhas de vida de tanta gente com quem já me cruzei? Devemos ser mais contidos nas influências que a nossa passagem pode deixar? Saberia eu viver assim, sem marcar?

Ele pode não o saber ainda mas as escolhas são sempre de quem as faz, nunca de quem mostra o caminho através de tantos sinais diferentes. Se se sente selvagem, alienado, apartado de qualquer hipótese de uma existência comum, é porque o seu destino assim o quer. Tudo o que podemos ser é um espelho para os outros. Um espelho capaz de os fazer ver-se melhor. E quanto às nossas próprias escolhas, essas apenas de nós dependem.

A esplanada continua ruidosa e eu vou regressar à casa cheia que, por esta hora, já deve estar a escutar o despertar de muitas vidas selvagens e pouco dadas à normalidade.

Ana Amorim Dias


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