(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

30.7.14

Os bons vizinhos

Os bons vizinhos

Primeiro os olhos humedeceram-se. Depois foram-se formando as lágrimas. Tentei impedir-me mas não encontrei razões para o fazer, e então comecei a chorar.
Assim que ele percebeu o que se estava a passar, pegou no comando da televisão e mudou do noticiário para um canal de música.
- Pronto, não vamos ver mais estas coisas más, está bem?
Fiquei, por momentos, mergulhada num misto de indignação e carinho: como pode tratar-me como uma miúda de quatro anos? Não é por mudar de canal que os problemas do mundo se evaporam nem a impotência triste nos desampara o peito. Mas acho sempre ternurenta a forma como me quer proteger das lágrimas, tentando oferecer-me um mundo mais musicado e colorido.

Na Palestina continua tudo na mesma. Toda a vida me lembro de ter sido assim. Há milénios que é assim e nunca mais aprendem.

Ao fim da tarde, antes de ir trabalhar, costumo sentar-me em silêncio no alpendre. E desde há algum tempo que o faço com a companhia invisível dos melhores vizinhos do mundo. A casa deles fica a uns quatrocentos metros da minha, talvez mais. Vejo-a bem ao fundo, por detrás das frondosas copas de muitos pinheiros mansos. E não os saberia reconhecer na rua porque acho que nunca os vi. Mas todos os dias, ao fim da tarde, durante o meu breve momento meditativo, fazem soar o mais encantador jazz e músicas dos anos vinte que me transportam no tempo para aventuras imaginadas que talvez um dia vos escreva. Ontem à tarde, ouvindo as encantadoras músicas que me fazem sentir a sua presença, pensei em tudo o que é necessário à boa vizinhança; perguntei-me se algum dia milhares de anos de inferno poderão ser substituídos por convivências harmónicas, discretas, pacíficas...

Espero que nunca me faltem as lágrimas para chorar os horrores que não sei combater. E espero que nunca me falhe a sensibilidade para saber sentir e agradecer as presenças invisíveis da harmonia humana.

Ana Amorim Dias

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