(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

5.5.14

Todos nascemos para amar

Todos nascemos para amar

- Todos nascemos para morrer!
Engasguei-me com a meia de leite.
O senhor estava na mesa do lado, na esplanada do café, e eu não pude deixar de ouvir. A senhora com quem falava ainda contrapôs qualquer coisas mas ele estava mesmo convicto. Senti pena da criatura por não perceber nada do que cá anda a fazer e reservei a frase para quando me fizesse falta.

- Já reparaste que muitas vezes as pessoas vão para missões humanitárias, lá longe, e há tanto para fazer mesmo à nossa beira? Podemos fazer tanto bem com tão pouco esforço, se nos dedicarmos a isso: podemos adotar com afetos, alimentar sem dinheiro, cuidar com atenção e curar feridas com o nosso tempo e carinho...
- Muitos desses famosos que vão para África "brincar" aos bonzinhos, fazem-no pela projeção e publicidade que isso traz à sua imagem.
- Não importam os motivos, desde que se faça o bem, Ricardo! - e contei-lhe a história de Sam Childers, que começou por salvar imensas crianças no Sudão e, com a projeção obtida com o seu livro e filme (Machine Gun Preacher), conseguiu meios para ampliar significativamente a sua maravilhosa missão.- Há pessoas extraordinárias que o são só por compaixão e mais nada!

O Joãozinho, que estava no banco de trás a ouvir a "discussão", veio mais tarde dizer-me:
- Concordo contigo, mãe!
- Hã?
- Que há pessoas que fazem bem só por ser bom, sem ser para ter nada em troca. Ser é mais importante que ter, mãe! Eu não me esqueci!
- Tu és lindo!
- Mãe? Contas-me melhor a história do Sam?
Expliquei-lhe que era drogado, traficante, criminoso condenado e que, um dia, decidiu mudar a sua vida tornando-se num bem sucedido empresário da construção civil. Contei-lhe que uma vez, na missa, se tocou com o testemunho de um missionário e aceitou o desafio de ir ajudar na reconstrução de escolas no Sudão e que, lá, descobriu a dantesca realidade de crianças contra quem os mais odiosos crimes eram (continuam a ser) cometidos.
- E os maus matavam os pais das crianças e obrigavam-nas a ser soldados. Muitas vezes até obrigavam as crianças a matar os próprios pais, João.
Horrorizado respondeu que, em semelhante situação, teria o sangue frio e a pontaria para matar quem o tentasse obrigar a tal coisa.
Passei a meia hora seguinte a explicar-lhe noções legais de ilicitude e culpa. Falei-lhe das causas de exclusão da ilicitude, como o estado de necessidade ou a legítima defesa. Expliquei-lhe a culpa, o dolo e a negligência, até que, por palavras dele, me conseguisse demonstrar que tinha entendido tudo.

As missões humanitárias começam em casa, ao falar horas a fio com quem nos compete formar. As missões humanitárias começam com quem nos rodeia, com quem não tem mais ninguém e se sente só. Começam com o tempo que usamos junto a quem precisa de atenção e carinho. Começam com o "olha, estou aqui para ti. Posso não ter nada para te dar, mas estou a ouvir-te e quero-te bem". As missões humanitárias não nos obrigam a passar meses fora de casa nem a hipotecar os bens. Basta querer dar um pouco do nosso amor a quem o não tem de outras fontes. Basta mostrar que nos preocupamos de facto e que "Tu contas, para mim!"

Queria encontrar de novo o senhor que ouvi falar, há uns dias, na esplanada do café. Queria ler-lhe esta crónica e dizer-lhe baixinho: "Vês? Ninguém nasce para morrer! Todos nascemos para amar!"
Não sei porquê, mas dá-me ideia que estaria em plena ação humanitária.

Ana Amorim Dias

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