(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

5.5.14

"Snaice"

"Snaice"

Subi as escadas em média fúria.
- Da próxima vez que decidirem fazer o jantar, esqueçam! Eu faço!
Olharam-me espantados, com a pasta de dentes a saltar-lhes da boca.
- Fui ajudar-vos às oito e só saí da cozinha agora! E olhem: são dez e dez!
- Vá lá, não sejas assim...
- Ainda por cima olhem para as minhas unhas!
Riram-se e nem se atreveram a comentar o verniz todo falhado.

Sentei-me na bancada que dá da cozinha para a sala. Televisão desligada e jazz na aparelhagem. À minha frente, ainda intocado, o copo de vinho tinto do jantar. Comecei a tirar o verniz e a limar as unhas. Com toda a calma. Como todo o tempo do mundo, a apreciar a minha exclusiva companhia. Lembrei-me do telefonema do fim da tarde.
- Cunhadinha? Como estás?
- Triste. Todos lhe sentimos a falta... Era um cão muito especial...
Consolei-a como pude.
O Ice, a quem eu chamava sempre "Snaice", era o meu "sobrinho" canino, um matulão muito meigo que adorava babar-me as calças e depois me olhava de lado enquanto eu ralhava com ele. Vasculhei o iPhone, certa de lá encontrar alguma recordação dele. E depressa regressei ao dia em que lhe coloquei um lenço na cabeça para me rir um bocado.

Pintei as unhas entre pensamentos agridoces. "Porque era especial, aquele cão?", perguntei-me. Porque era especial o Samba, um gato que tive e que continuo a recordar com carinho? O que faz com que amemos certos animais e lhes permitamos o estatuto de membros da família?
No silêncio apenas cortado pela suavidade do jazz, pintando uma unha atrás da outra, percebi que todos os seres são especiais quando conseguem amar e despertar o amor.
Fica bem, Snaice, foste um "sobrinho" canino à maneira.

Ana Amorim Dias

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