Mistérios da madrugada
Olho para esta fotografia, tirada pouco depois de lá chegar. Fico indecisa: "talvez seja um pouco estúpido usar uma selfie com sorrisos apatetados mesmo em frente à imagem de sofrimento que vem sobre o andor."
Nessa altura eu ainda não tinha entendido nada.
- Anda connosco, Ana!
- Para procissões? Esquece, a sério.
- Mas aquilo em Ayamonte é muito giro! E há tascas por todo o lado!
Quando me quiserem convencer a algo, usem a palavra "tasca". Eram umas três e meia da manhã quando lá chegámos.
"Mas esta gente será toda louca? Multidões infindáveis nas ruas para ver passar os andores?" Ocorreu-me que Jesus é que foi um derradeiro mestre do marketing: mais de dois mil anos depois e continua tão presente como se ainda estivesse vivo. Admiro-o por isso e por tudo o que soube ser, claro. Pena que a mesquinhez humana tenha arrastado a religião para épocas históricas tão negras servindo-se do seu nome. Mas bem, também é inegável que a igreja tem feito bem muitas coisas.
Divagava eu pelos meus pensamentos, quando os andores passaram por mim. O ritmo da batida de bastões de metal no solo, marcava o compasso da marcha. Rostos suados, sofridos, quase em transe, coroavam os ombros que suportavam o peso.
"Bolas! Quantas centenas, milhares, de carregadores estafam as costas, por estes dias, em vários países do mundo? E porque o fazem? Remorsos? Culpa? Esperança de recompensas? Para expiar o pecado original que ninguém na verdade tem?"
O entendimento de tudo aquilo chegou-me numa subida inclinada. Já passava das cinco da manhã e as ruas continuavam cheias. Os carregadores dos andores paravam no início da subida, para ganhar ímpeto e força, e depois subiam a rua inteira de um só fôlego, a um ritmo tão picado que todo o andor se abanava. Do lado de cima o povo puxava e, do lado de baixo, um bando de gente, de mãos postas nos ombros da frente, ajudava a empurrar.
Por instinto comecei a bater palmas. E comovi-me. Muito. Cada um dos carregadores saberá porque ali está. Da mesma forma que cada uma das pessoas que passa a noite na rua para ver passar os andores, tem o seu próprio motivo. Desconheço-os e não me importam. O que me comoveu, entendi-o nessa subida, foi a força do Homem enquanto grupo. A energia que se produz quando estamos todos em sintonia na produção de algo bom, é tão poderosa e palpável que nos faz querer voltar. E foi quando esta energia toda me trespassou que compreendi o mistério desta madrugada.
Ana Amorim Dias
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