(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

5.5.14

Mistérios da madrugada

Mistérios da madrugada

Olho para esta fotografia, tirada pouco depois de lá chegar. Fico indecisa: "talvez seja um pouco estúpido usar uma selfie com sorrisos apatetados mesmo em frente à imagem de sofrimento que vem sobre o andor."
Nessa altura eu ainda não tinha entendido nada.

- Anda connosco, Ana!
- Para procissões? Esquece, a sério.
- Mas aquilo em Ayamonte é muito giro! E há tascas por todo o lado!
Quando me quiserem convencer a algo, usem a palavra "tasca". Eram umas três e meia da manhã quando lá chegámos.
"Mas esta gente será toda louca? Multidões infindáveis nas ruas para ver passar os andores?" Ocorreu-me que Jesus é que foi um derradeiro mestre do marketing: mais de dois mil anos depois e continua tão presente como se ainda estivesse vivo. Admiro-o por isso e por tudo o que soube ser, claro. Pena que a mesquinhez humana tenha arrastado a religião para épocas históricas tão negras servindo-se do seu nome. Mas bem, também é inegável que a igreja tem feito bem muitas coisas.
Divagava eu pelos meus pensamentos, quando os andores passaram por mim. O ritmo da batida de bastões de metal no solo, marcava o compasso da marcha. Rostos suados, sofridos, quase em transe, coroavam os ombros que suportavam o peso.
"Bolas! Quantas centenas, milhares, de carregadores estafam as costas, por estes dias, em vários países do mundo? E porque o fazem? Remorsos? Culpa? Esperança de recompensas? Para expiar o pecado original que ninguém na verdade tem?"

O entendimento de tudo aquilo chegou-me numa subida inclinada. Já passava das cinco da manhã e as ruas continuavam cheias. Os carregadores dos andores paravam no início da subida, para ganhar ímpeto e força, e depois subiam a rua inteira de um só fôlego, a um ritmo tão picado que todo o andor se abanava. Do lado de cima o povo puxava e, do lado de baixo, um bando de gente, de mãos postas nos ombros da frente, ajudava a empurrar.
Por instinto comecei a bater palmas. E comovi-me. Muito. Cada um dos carregadores saberá porque ali está. Da mesma forma que cada uma das pessoas que passa a noite na rua para ver passar os andores, tem o seu próprio motivo. Desconheço-os e não me importam. O que me comoveu, entendi-o nessa subida, foi a força do Homem enquanto grupo. A energia que se produz quando estamos todos em sintonia na produção de algo bom, é tão poderosa e palpável que nos faz querer voltar. E foi quando esta energia toda me trespassou que compreendi o mistério desta madrugada.

Ana Amorim Dias

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