(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

9.10.14

O desgosto de amor

O desgosto de amor

Contou-me uma amiga que, ao frequentar o Conservatório, assistiu ao exame de piano de um virtuoso colega. Ao terminar uma execução perfeita, as palavras do examinador foram ainda mais sublimes:
- Tem talento e a sua técnica é excelente... mas falta-lhe um desgosto de amor!

- O nosso amor é único...
Soltei uma gargalhada sonora e simulei um convicto vómito. Quando vejo televisão ou cinema, adquiri o incomodativo hábito de, silenciosamente, criticar a previsibilidade e falta de originalidade de alguns argumentistas. "Credo, e pagam-lhes para isto?..." Entretanto recito em pensamento o rumo que eu teria dado às conversas das personagens. Estranho hábito, talvez, mas que se me tornou natural.
"O nosso amor é único", repeti. Que estupidez. E no entanto é a crença sonora de tantos seres mergulhados no intenso fogo de um apaixonado amar. "Que inocentes crianças... como pode alguém crer em tal tamanha falácia?" Ninguém detém a exclusividade da intensidade de amar; não existe casal, por mais que se ame, que o faça de maneira jamais antes sentida. Ou vivida.
Amar não são rosas e velas nem champanhe com morangos num pôr do sol sobre o mar. Amar faz-nos divinos e só por isso transmite a sensação de ser único no universo inteiro naquela intimidade que funde corpos e almas. Mas amar, por mais que nos queime inteiros enquanto o tempo e o espaço congelam, não é exclusivo e irrepetível. Nunca será. E o amor, aquele mesmo robusto, é feito de silêncios que falam, de discórdias que se superam, de perdões impossíveis que acabam por acontecer; é construído década após década, na certeza de se viver na luta de uma construção diária que dá o verdadeiro sentido a toda a nossa existência. Amor mesmo é aquele que é consciente, informado, maduro o suficiente para entender que todos os casais que se amam vivem os mesmos momentos.

E nós, enquanto seres mutáveis na nossa eterna (re)construção pessoal, jamais seremos inteiros até termos sofrido um devastador desgosto de amor.

Ana Amorim Dias
(26-8-2014)

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