"Selvagicalidade"
Acabei de reparar que os dias em que escolho guiar até um café mais distante, são os mesmos em que a crónica mais me entusiasma e desafia. Dou um tempo extra aos preliminares do deleite criativo, protelando o pináculo do prazer para que seja ainda mais intenso, numa lógica que, por certo, todos entenderão.
Foi ontem à noite que li esta bela questão: com que escritor escolheria jantar, se pudesse? Quem me lê sempre sabe a resposta. Ernest Miller Hemingway regressaria do grande desconhecido para partilharmos uma conversa sublime ao sabor de um enorme peixe grelhado, bom vinho e uns cubanos.
Sou fascinada por ele desde que me lembro. Mais por ele do que pelas obras, confesso. Mas, na minha visão dos factos, a obra de qualquer escritor vale tanto pela sua qualidade como pela personalidade apaixonante do seu criador. Os livros de escritores omissos, por mais excelentes que sejam, parecem-me algo apátridas e deixam-me um travo de orfandade que lhes retira valor. Livro que é livro, daqueles que marcam mesmo, precisa de trazer em si entranhado toda a intensidade e personalidade de autores só por si apaixonantes, caso contrário é só mais um.
- Gosto de pessoas com "selvagicalidade"- disse eu.
- Desculpa? Essa palavra existe?
- Não! Mas eu sou escritora, posso inventar palavras, se me apetecer!
Sempre admirei os escritores de uma forma tão absoluta que, ao constatar que era uma, a minha vida se tornou num constante sonho feliz. Nós, os escritores, podemos inventar e inventar-nos; podemos exagerar, subverter, criar irreais realidades. Nós, os escritores, somos de todos irmãos, pais, filhos, amigos e amantes. Nós, os escritores, somos magos capazes de transformar pensamentos, atitudes e vidas... tudo só com palavras e, claro, com a intensidade pessoal com que as fazemos bailar.
Passei muitos anos desiludida com o meu herói literário. Como é que um homem tão intenso e apaixonante se mata? Porque é que desistiu? Como podia eu explicar tão absurdo paradoxo? A resposta é óbvia, na verdade. Mas só ao assumir-me na plena intensidade de emocionada (e emocionante?) escritora, logrei compreender a equação. Quando se viu encurralado numa existência física e mental que não podia controlar com a "selvagicalidade" que lhe era natural, o Ernest fez a única coisa que podia ter feito para se respeitar a si mesmo. Não foi um paradoxo, foi uma inevitabilidade.
Mas eu só desejava jantar com ele. Nem que fosse uma torrada.
Ana Amorim Dias
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