(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

22.1.14

"Selvagicalidade"

"Selvagicalidade"

Acabei de reparar que os dias em que escolho guiar até um café mais distante, são os mesmos em que a crónica mais me entusiasma e desafia. Dou um tempo extra aos preliminares do deleite criativo, protelando o pináculo do prazer para que seja ainda mais intenso, numa lógica que, por certo, todos entenderão.

Foi ontem à noite que li esta bela questão: com que escritor escolheria jantar, se pudesse? Quem me lê sempre sabe a resposta. Ernest Miller Hemingway regressaria do grande desconhecido para partilharmos uma conversa sublime ao sabor de um enorme peixe grelhado, bom vinho e uns cubanos.
Sou fascinada por ele desde que me lembro. Mais por ele do que pelas obras, confesso. Mas, na minha visão dos factos, a obra de qualquer escritor vale tanto pela sua qualidade como pela personalidade apaixonante do seu criador. Os livros de escritores omissos, por mais excelentes que sejam, parecem-me algo apátridas e deixam-me um travo de orfandade que lhes retira valor. Livro que é livro, daqueles que marcam mesmo, precisa de trazer em si entranhado toda a intensidade e personalidade de autores só por si apaixonantes, caso contrário é só mais um.

- Gosto de pessoas com "selvagicalidade"- disse eu.
- Desculpa? Essa palavra existe?
- Não! Mas eu sou escritora, posso inventar palavras, se me apetecer!
Sempre admirei os escritores de uma forma tão absoluta que, ao constatar que era uma, a minha vida se tornou num constante sonho feliz. Nós, os escritores, podemos inventar e inventar-nos; podemos exagerar, subverter, criar irreais realidades. Nós, os escritores, somos de todos irmãos, pais, filhos, amigos e amantes. Nós, os escritores, somos magos capazes de transformar pensamentos, atitudes e vidas... tudo só com palavras e, claro, com a intensidade pessoal com que as fazemos bailar.

Passei muitos anos desiludida com o meu herói literário. Como é que um homem tão intenso e apaixonante se mata? Porque é que desistiu? Como podia eu explicar tão absurdo paradoxo? A resposta é óbvia, na verdade. Mas só ao assumir-me na plena intensidade de emocionada (e emocionante?) escritora, logrei compreender a equação. Quando se viu encurralado numa existência física e mental que não podia controlar com a "selvagicalidade" que lhe era natural, o Ernest fez a única coisa que podia ter feito para se respeitar a si mesmo. Não foi um paradoxo, foi uma inevitabilidade.
Mas eu só desejava jantar com ele. Nem que fosse uma torrada.

Ana Amorim Dias

Sem comentários:

Enviar um comentário