(...) e a confiança cega
que tenho na minha verdade
não a detém quem me nega
as asas da liberdade ...

Ana Amorim Dias

7.1.14

A gordura das pestanas

A gordura das pestanas

Estava no café com a minha mãe.
Ela agarrada ao "Olho Ubíquo", a rir alto de uma qualquer passagem, e eu a olhar para o iPad sem fazer a mínima ideia do tema da crónica de hoje.
Quis saber qual era a história que lhe estava a causar gargalhadas.
- Quando ele começou a comer caviar às colheradas, num aeroporto russo...- e depois ficou a olhar para mim e mudou de assunto:- Ah, olha, também estás a ficar cheia de brancos deste lado!- e continuou a ler, muito tranquilamente.
Fixei os olhos no iPad desligado, a ver nele o meu reflexo, sem confessar à minha mãe que o tema de hoje teimava em não me chegar.

Durante a ceia de Natal fartei-me (como é costume) de rir com o meu irmão. A ligação genética do nosso humor continua a ser insuperável. Até porque, quando o gozo até à exaustão, ele simplesmente aceita e junta-se a mim nas gargalhadas.
- ... E, claro, não se pode encostar o olho à lente!- ele estava a falar de uma lente super especial que comprara para o seu enorme telescópio.
- Mas não se pode encostar o olho à lente porquê, Miguel? - inquiri, enquanto me recordava que o meu professor de fotografia nunca me chamara a atenção para o facto.
- Para não sujar a lente com a gordura das pestanas!-
Não sei como é que o pedaço de rabanada que eu tinha na boca não me saltou disparado pelo nariz. Tive que me levantar da mesa porque as gargalhadas me roubaram o ar todo dos pulmões. Foi de tal ordem, o ataque, que nem me recordo se os outros também riram muito e se a minha cunhada fez o costumeiro ar de "vês o que eu aturo?"
- Ilda, Ilda! Temos que começar a comprar champô específico para pestanas gordurosas!- comentei quando a voz me voltou.
- Tu estás para aí a gozar mas não se pode pôr gordura nas lentes.- retorquiu, sem qualquer sombra de amuo perante o meu gozo cerrado.
Fiquei a pensar como é que ele, com todo o seu elevadíssimo QI, se sai com tiradas tão brilhantes.

Voltei ao meu reflexo no iPad desligado, em busca de mais cabelos brancos e da gordura nas minhas pestanas.
"Como vais escrever todos os dias, Ana? Como vais conseguir manter o teu prazer e o interesse de quem te lê?"
Acho que nunca tinha colocado assim os factos: como um desafio.
"Como vais fazer quando o tema te faltar e ficares assim, quase três minutos a olhar para o teu reflexo?"

E depois voltou-me a gargalhada das pestanas gordurosas, e a de ter mais cabelos brancos. Vai dar tudo ao mesmo: são só células mortas, não importa a sua cor nem oleosidade! O mais importante são as células vivas do nosso fantástico cérebro. O mais importante é saber continuar a beber no nosso manancial de felizes gargalhadas. O que realmente me interessa é que todos entendam que a idade não se prende com a cor branca dos cabelos: a nossa idade é simplesmente tão avançada quanto a nossa sabedoria e tão jovial quanto a nossa inocência.

Ana Amorim Dias

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